Língua – Direitos Linguísticos [Dicionário Global]
Língua – Direitos Linguísticos [Dicionário Global]
Porque é que a língua é um direito humano e porque é que devemos falar de direitos linguísticos?
A língua é inerente ao ser humano. É pela língua que nos identificamos como indivíduos e como seres sociais. É pelo uso da língua que nos expressamos perante o outro, o grupo, as instituições políticas, administrativas, sociais, económicas, desportivas, empresariais, que organizam o nosso quotidiano. É na língua, na nossa língua materna, que pensamos e nos pensamos, nos vemos e imaginamos. A língua é o nosso veículo para a aprender e compreender o mundo. Desde o início dos tempos encontramos na língua as palavras com que deciframos o mundo e o explicamos e passamos à geração seguinte, aquela a quem primeiro passamos a língua.
É na língua que o material, o imaginário e o espiritual encontram sentido, onde aceitamos e compreendemos o explicável e o inexplicável, o mistério, a fantasia, o sonho e a realidade, que sabemos o mundo em que vivemos e o que nunca vimos, mas compreendemos que existe. É na língua que buscamos argumentos para concordar e refutar, convencer e subverter. Sem a língua, a nossa língua, não saberíamos quem somos, o que fomos ou quem queremos ser.
A língua é simultaneamente pessoal e coletiva, única e múltipla, em nós e nos outros. A língua cresce com o ser humano, continua depois do indivíduo, noutros humanos enquanto um servir o outro.
Todas as línguas respondem plenamente às necessidades linguísticas do grupo social que as usa e ao seu modo de vida. Não há línguas melhores e línguas piores. As línguas em contacto enriquecem-se, apropriando-se de novas designações, de novas ferramentas, e tornam seu tudo o que antes era desconhecido.
Todas as línguas são igualmente imbuídas de dignidade, e todos os seus falantes imbuídos de respeito. O preconceito linguístico constitui um ato de violência exercido sobre os falantes, objeto desse preconceito.
Em 1996, em Barcelona, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Esta Declaração, adotada por iniciativa de várias instituições e organizações não governamentais, constitui o culminar de um percurso que muitos linguistas e muitos outros intervenientes e interessados, do Direito aos mais variados profissionais da escrita – escritores, tradutores, professores e organizações –, percorreram, como a Federação Internacional de Professores de Línguas Vivas. No entanto, já antes da apresentação da Declaração Universal do Direitos Linguísticos se defendia a língua como um direito humano e se pugnava pelos direitos humanos linguísticos. Em 1995, a obra Linguistic Human Rights (de Skutnab-Kangas e Phillipson) agregava a perspetiva de uma vintena de autores que partilhavam essa visão sobre a dignidade imanente dos falantes e das suas línguas.
Voltando às perguntas iniciais, e considerando as implicações sociais e pessoais ligadas ao pleno uso de uma língua pelos seus falantes, a língua não só é um direito humano, como constitui um direito humano básico, uma vez que constitui o elo que liga o falante ao seu semelhante e à comunidade que a fala. Por isso, face à desproporção de usufruto de direitos de uso da sua língua entre falantes de línguas maioritárias e línguas minoritárias, é fundamental que hoje se continue a falar de direitos linguísticos, dado que proteger e preservar os direitos linguísticos é basilar para eliminar o preconceito, a xenofobia sobre quem fala uma língua minoritária e o linguicídio, que revela uma forma de genocídio. Quando se age pela violência sobre uma população que fala uma língua minoritária, está-se a eliminar também a língua que essa população fala.
Existem vários obstáculos ao uso das línguas minoritárias, sejam elas ágrafas ou não. A História mostra como pretextos não faltam para retirar às línguas minoritárias os direitos fundamentais e, com esses pretextos, retirar aos seus falantes o acesso, na sua língua, ao ensino, à administração pública, à justiça, à informação nos media, à intervenção política, ao simples uso da língua para uma transação num espaço comercial. Cada uma das áreas atrás mencionadas constitui uma restrição ao uso de uma língua no espaço público, uma investida contra a autoestima do falante sobre a sua língua, uma forma de segregação e de redução do uso da língua minoritária ao uso familiar, muitas vezes a um confronto geracional entre velhos e jovens, entre o orgulho ancestral do uso de uma língua que expressava a explicação do mundo, um pensamento, um modo de vida e uma cultura e o questionar da utilidade de uma língua que torna o seu falante um indivíduo sem direitos, privado de um tratamento igual, segregado pelos falantes da língua maioritária, esmagados pelo seu poder.
Na Europa, as políticas fundadas no multilinguismo deveriam proporcionar voz aos falantes das cerca de 225 línguas faladas no continente. A ideia, do século XIX, de um Estado, uma nação, uma língua, ainda presente em muito discurso político autoritário e receoso da partilha, e de que a unidade nacional só pode ser conseguida pela imposição de uma língua nacional, é um obstáculo ao respeito pelas minorias e pelas suas línguas.
No século XX, o pós-guerra trouxe a independência do continente africano, bem como de colónias na Ásia e, nas Américas e Caraíbas, de territórios que não se tinham tornado já independentes no século XIX. No entanto, a ideia de coesão e unidade nacional de países resultante do desenho a régua e esquadro das antigas potências coloniais, separando nações naturais linguística e culturalmente mais homogéneas, levou, entre outros constrangimentos, à adoção da língua do colonizador – que com eles viajou e foi usada como forma de exercício de poder e de separação entre colonizadores e colonizados –, para, acreditava-se então, evitar a escolha de uma língua endógena que predominaria sobre as demais, criando conflitos etnolinguísticos, dando-se assim continuidade ao exercício do poder por quem já dominava a língua do colonizador, promovendo-se desta forma o que Phillipson (1992) designou de “imperialismo linguístico”.
Esta ideia da necessidade de uma língua única para um país, herdada do pensamento europeu, levou ao desprestígio das línguas nacionais dos países africanos, como já havia acontecido um século antes no continente americano, com as línguas dos povos originários cujos territórios deixaram de ser governados pelas potências coloniais para o serem pelos colonos, que se revoltaram contra os dominadores europeus, que, naturalmente, adotaram como língua nacional a língua que os seus pais e avós tinham trazido da Europa, ignorando os direitos linguísticos dos povos originários e, desta forma, garantindo o poder para os descendentes dos conquistadores feitos libertadores, segregando, e em muitos casos perpetuando, o genocídio daqueles povos e das suas línguas.
Um exemplo diferente sobreveio com o fim do Apartheid na África do Sul, que se tornou constitucionalmente um país multilingue com a adoção de 11 línguas oficiais, nove das quais línguas nacionais.
A introdução do ensino bilingue em muitos países africanos veio trazer uma esperança de respeito e de estatuto fortalecido com políticas de língua que reconheceram o direito de os falantes serem escolarizados na sua língua materna. A nova realidade promove a integração dessas línguas no tecido nacional, o que, ao contrário do que se julgou até então, pode fortalecer a unidade nacional e o sentimento de pertença desses falantes ao país e à organização do Estado. O risco é que o empenho no desenvolvimento de políticas de língua na educação não acompanhe com meios adequados a implementação, gestão e avaliação para seguir a formação de professores capacitados e a produção de materiais, servidos por um trabalho científico de grafização e normatização gramatical das línguas ágrafas consistente e perseverante, com meios técnicos e financeiros para que os resultados demonstrem as vantagens deste tipo de ensino e, desta forma, sejam promotores da integração e valorização social dos falantes de línguas nacionais de todas as gerações. Estes esforços de standardização, no entanto, não devem ser obstáculo para que uma língua ágrafa não seja incluída no sistema de ensino, uma vez que com ela se conserva uma tradição de transmissão de conhecimento e uma cultura de aprendizagem que preserva uma visão do mundo única aos falantes dessa língua.
A promoção das línguas minoritárias deve ser assegurada por via legislativa e por políticas e gestão linguística que permitam que os territórios onde são faladas usufruam de um estatuto que respeite os direitos humanos linguísticos dos seus falantes. A forma como as línguas minoritárias podem ser respeitadas e os seus falantes usufruir do seu uso não se limita à proteção e promoção por via legislativa. Os poderes instituídos e as organizações da sociedade civil podem ser proativos e não impedir o uso destas línguas em áreas da administração local e regional ou em eventos culturais e em todas as formas de manifestação artística que valorizem as línguas minoritárias.
O fenómeno migratório na Europa, que se tem manifestado com cada vez maior visibilidade e pressão social desde a década de 1990 – ainda que as migrações sejam uma constante na história da humanidade –, acrescenta mais complexidade ao leque de línguas em presença numa Europa já diversa. O desafio, que foi largamente ignorado nas décadas de 1960 e 1970 com as migrações intraeuropeias, não se tendo alguma vez incorporado as línguas dos imigrantes do sul da Europa, de Portugal à Turquia, renova-se neste século com as migrações oriundas de países extraeuropeus. O desafio é, agora como antes, a compatibilização dos direitos das línguas regionais minoritárias com os direitos linguísticos dos novos migrantes, numa abordagem que adote uma política de língua multilingue num ambiente social que, dada a pressão económica marcada pela crise das dívidas soberanas que se prolongou por vários anos, a que se seguiu uma pandemia que paralisou a economia e a que se sucedeu uma guerra no Leste europeu, tem criado um ambiente hostil para com os migrantes e levado ao crescimento do racismo, da xenofobia, da intolerância religiosa e, por arrasto, de quem fala línguas estrangeiras nas ruas e assume a diferença. Esta é uma complexidade social que precisa de ser enfrentada com clareza pelos responsáveis políticos, para que quem não se expressa na língua maioritária não seja objeto de violência e de supressão de direitos humanos linguísticos, sociais e políticos.
Por todo o mundo, hoje, se vive o perigo do linguicismo e do genocídio de falantes de línguas minoritárias que estão em risco, tanto nas Américas do Norte e do Sul, como em África, na Ásia e na Oceânia, ou mesmo na Europa, em particular das línguas das minorias étnicas que vivem fora das correntes políticas, culturais e sociais dominantes, e, por consequência, sem poder e sem voz.
Bibliografia
Impressa
FILIPE, M. (2008). “Cidadania europeia e direitos linguísticos e culturais”. In Atas da 11.ª Conferência da Academia Internacional de Direito Linguístico (474-480). Lisboa: Associação de Professores de Português/Academia Internacional de Direito Linguístico.
FILL, A. & MUHLHAUSLER, P. (eds.) (2001). The Ecolinguistics Reader, Language, Ecology and Environment. London: Continuum.
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PHILLIPSON, R. (2003). English-Only Europe? Challenging Language Policy. London/New York: Routledge.
SKUTNAB-KANGAS, T. & PHILLIPSON, R. (eds.) (1995). Linguistic Human Rights, Overcoming Linguistic Discrimination. New York: Mouton de Gruyter.
SPOLSKY, B. (2021). Rethinking Language Policy. Edinburgh: Edinburgh University Press.
Digital
Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996), https://www.penclubeportugues.org/comites/declaracao-universal-dos-direitos-linguisticos/ (acedido a 26.12.2023).
Autor: Mário Filipe Silva