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  • Literatura [Dicionário Global]

    Literatura [Dicionário Global]

    A história universal da literatura acompanha a história natural do desenvolvimento da perceção do belo. Quando descobrimos que era possível criar um discurso com um valor diferente de um simples ato de comunicação objetiva, fizemos nascer a literatura. Começámos pela transmissão oral de histórias exemplares de grandes homens, mulheres e deuses. Acrescentámos sempre algo mais aos factos conhecidos e transmitidos de geração em geração, e esse averbamento é aquilo que separa a literatura do que é apenas relato histórico. Quando chegamos a Homero ou a Píndaro, a literatura já serve para guardar a memória de algo que marcou a nossa história pessoal ou coletiva. E os temas que escolhemos para iniciar a história literária eram exatamente aqueles que melhor serviam para uma memória coletiva: as nossas perceções sobre justiça, liberdade, igualdade e dignidade humana.

    O estudo da interseção entre a literatura e os direitos humanos será sempre um exercício interdisciplinar captado em diferentes sociedades e períodos históricos. A liberdade, a igualdade e a justiça, por exemplo, são os temas maiores de textos clássicos que não teriam sobrevivido ao tempo se não representassem alguma forma exemplar de tratamento desses temas. A tragédia Antígona, de Sófocles, no século V a.C., ensina-nos as tensões que existem entre a lei moral e divina de Antígona e a lei humana de Creonte; na mesma época, em Medeia (431 a.C.), Eurípides aborda temas de justiça e vingança na construção de uma figura feminina, Medeia, que passou a significar a busca da justiça de forma extremada, sem olhar a normas sociais e morais. A literatura é edificante e, ao mesmo tempo, marcadora de costumes por muitas épocas e períodos, pois tais obras ganham a simpatia de leitores de todos os tempos, por tratarem de forma única os sentimentos mais nobres ou mais repugnantes que formam a natureza humana e que determinam o que cada um de nós deve e não deve fazer.

    A literatura, na sua definição essencial, é sempre um reflexo de experiências humanas e sociais traduzidas por histórias que nos ajudam a criar uma memória coletiva. Podemos ir à procura dessa memória em textos mais próximos, como 1984, de George Orwell (publicado em 1949), que nos surge como uma metáfora distópica para o perigo de um governo totalitário, num mundo onde a liberdade de pensamento é suprimida por um governo omnipresente liderado pelo enigmático Big Brother. A literatura serve muitas vezes para nos arrancar de uma certa inércia social, mostrando-nos o horror de um mundo no qual podemos cair e perder a nossa liberdade individual, caso não sejamos suficientemente justos na escolha de quem nos governa. E seremos capazes de catalisar mudanças sociais se a literatura também tiver a qualidade de tratar questões de direitos humanos com um foco tal que nos obrigue a formar uma opinião contrária a um determinado status quo social negativo. Vemos isso em To Kill a Mockingbird, de Harper Lee. Publicado em 1960, o romance aborda temas de racismo, injustiça, inocência e a moralidade da ação humana no contexto do sul dos Estados Unidos durante a Grande Depressão. Não serve para nos fazer esquecer as atrocidades da perda de liberdade e do sentimento de justiça social, mas sim para nos desalojar do conforto de esquecer aquilo que não vivemos na realidade. Pela literatura, todos ficamos responsáveis na denúncia de uma sociedade ou de indivíduos moralmente corruptos. Além de refletir a realidade do nosso mundo, qualquer que ela seja, a literatura tem o poder de moldar a consciência e o nosso agir perante os outros. Por exemplo, a representação da escravidão em Uncle Tom’s Cabin (1852), de Harriet Beecher Stowe, teve um impacto profundo na perceção da escravidão nos Estados Unidos e é frequentemente citada como um dos fatores que contribuíram para a Guerra Civil Americana.

    Há sempre um padrão ético nos grandes romances mundiais que tem como explicador comum o facto de a condição humana conhecer provações incríveis que nos levam a interrogar se não somos, enquanto humanos, o pior inimigo da nossa humanidade. Germinal, de Émile Zola (1885), aborda as duras condições de vida dos mineiros de carvão na França do século XIX e a greve que eles organizam, o que ajudou o mundo a conhecer as condições rudes da classe trabalhadora, tendo depois contribuído para a reforma das leis trabalhistas; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1881), trouxe-nos uma crítica mordaz da sociedade brasileira do século XIX, abordando temas como a escravidão, o egoísmo humano e as desigualdades sociais, o que obrigou a uma profunda reflexão sobre o tipo de sociedade que estávamos a criar naquele contexto geográfico e político; Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1938), e praticamente toda a literatura portuguesa neorrealista do século XX reforçam as imagens das duras condições de vida a que os seres humanos podem ser submetidos, sobretudo por ações políticas e sociais opressoras; Crime e Castigo (1866), do russo Fiodor Dostoiévski, explora profundamente a psicologia da miséria e do crime, influenciando o debate filosófico e ético sobre a moralidade e a justiça, quase obrigando a que exista uma outra forma mais justa de criar leis que protejam o comum dos cidadãos de qualquer arbitrariedade ou injustiça, o que fica ainda mais evidente n’O Processo, de Franz Kafka (publicado postumamente, em 1925), mostrando como pode ser tão frágil o conceito de “justiça individual” e como podemos ir demasiado longe quando queremos acusar alguém de um delito comum sem qualquer proteção dos seus direitos mais elementares.

    O direito à justiça é muitas vezes associado, na literatura universal, a um desafio maior do ser humano, como se este tivesse de provar ser merecedor de algo que deveria ser um direito natural. As tragédias gregas estão muito relacionadas com esta abordagem. Oresteia (458 a.C.), de Ésquilo, é uma trilogia sobre a justiça pessoal e vingativa num sistema de justiça cívica e legal, explorando o ciclo de vingança na família de Agamenon e culminando na criação de um tribunal de justiça em Atenas. O romance pastoral Arcadia, de Sir Philip Sidney (1590), ou a peça de Shakespeare The Merchant of Venice (1600) mostram cenas de tribunal onde se julga a capacidade humana de aplicação justa da justiça. Um autor como Shakespeare pode ser lido como um especialista em Direito Natural e direitos humanos, e em algumas das suas obras podemos encontrar tudo o que precisamos para estudar este tema: King Lear é um tratado sobre a justiça, a ética do cuidado, a solidariedade humana e a vulnerabilidade social;  Measure for Measure é um manual sobre justiça, moralidade, ética do poder, liberdade de expressão, abuso de poder e hipocrisia, todos eles elementos cruciais nas discussões modernas sobre direitos humanos; Hamlet pode ser estudado em qualquer curso de Direito sobre justiça, retribuição e tudo o que se relacionar com o direito a um julgamento justo e à questão da justiça extrajudicial. A literatura universal, ao longo dos séculos, ofereceu sempre reflexões profundas sobre a justiça, muitas vezes desafiando ou reforçando as noções contemporâneas de direitos humanos.

    O direito à liberdade é um dos grandes temas de sempre de todas as literaturas. Não por acaso os poetas de todos os tempos lhe dedicam alguns dos seus melhores versos. Sappho (630-570 a.C.), uma poetisa da Grécia Antiga, celebrou a liberdade e a expressão individual dessa liberdade em relação ao amor e à sexualidade, quase como se esta fosse um direito natural; William Wordsworth (1770-1850), um dos principais poetas românticos ingleses, explorou a ideia de liberdade em relação à natureza e ao espírito humano, inspirado pela Revolução Francesa e defendendo em versos inesquecíveis a dignidade do indivíduo, como em “Tintern Abbey” (1798); Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), poeta alemão, legou-nos a obra Fausto, que conta a história de um erudito insatisfeito com os limites do conhecimento humano e que faz um pacto com Mefistófeles, o demónio, trocando a sua alma por conhecimento e experiências ilimitados – esta obra será sempre um clássico literário de reflexão sobre os limites da liberdade do indivíduo na busca pela autodescoberta e pela autorrealização; o poeta chileno Pablo Neruda, em Canto General (1950), oferece-nos uma epopeia que abrange a história da América Latina, destacando a luta contra a opressão e a busca pela liberdade, sendo relevante o poema “Los libertadores”, como exemplo explícito da celebração dos heróis da independência da América Latina; Rabindranath Tagore (1861-1941), poeta indiano e o primeiro não europeu a ganhar o Prémio Nobel da Literatura em 1913, escreveu extensivamente sobre a liberdade, especialmente no contexto da independência da Índia, sendo evidente o desejo de liberdade espiritual e política no poema “Freedom”, onde tenta explicar o que significa ser verdadeiramente livre; Federico García Lorca (1898-1936), poeta e dramaturgo espanhol, foi corajoso no tratamento da liberdade no contexto da Guerra Civil Espanhola, legando-nos obras que exigem uma reflexão profunda sobre os limites morais das sociedades opressoras, como Romancero Gitano (1928), onde escreve sobre a vida e a cultura dos ciganos em Espanha, sendo o poema “Preciosa y el aire” um excelente exemplo do que pode e deve significar a liberdade individual, representada simbolicamente na figura de uma jovem cigana que resiste contra todas as restrições sociais de uma sociedade que não tolera nenhuma forma de liberdade; a poetisa portuguesa ä Sophia de Mello Breyner Andresen seguiu muitas vezes os passos de Lorca na sua poesia, como forma de resistência política, como podemos ler em No Tempo Dividido (1954), coletânea de poemas sobre a liberdade e a resistência. Estes exemplos são suficientes para traduzir o poder da literatura como ato de expressão estética individual que não deixa nunca de ter uma capacidade única de servir de expressão de um sentimento coletivo face a uma sociedade ou poder político que tenda a restringir os direitos humanos fundamentais.

    Podemos ter uma perspetiva universal sobre os direitos humanos através de obras de toda a literatura universal, porque precisamente o tempo já comprovou que essas obras transcendem fronteiras culturais e temporais, permitindo assim traduzir em forma literária os direitos humanos mais fundamentais. Incluem-se neste campo obras como Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo, que explora a justiça, a lei e o impacto da pobreza na França do século XIX, sem esquecer temas que podem incluir-se no conjunto dos direitos humanos universais, como a redenção, a justiça social e a luta contra a opressão social e política; Vidas Secas (1938), do brasileiro Graciliano Ramos, foca-se nas duras condições de vida no sertão nordestino, para nos fazer refletir sobre a pobreza extrema, a injustiça social e a luta pela sobrevivência; O Diário de Anne Frank (1947), de Anne Frank, diário escrito por uma jovem judia escondida durante o Holocausto, é um testemunho pungente das atrocidades cometidas contra os judeus na Segunda Guerra Mundial, podendo ser lido como um retrato realista da importância dos direitos humanos universais, especialmente em tempos de guerra e genocídio; Cien Años de Soledad (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, explora a opressão, a guerra civil e a exploração através da história de várias gerações de uma família na América Latina, podendo também servir como um manual literário de questões elementares de direitos humanos; O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), de José Saramago, pode ser lido como uma reinterpretação dos direitos humanos através da história romanceada de Jesus, mas não dispensando um profundo debate sobre ética e moralidade numa perspetiva filosófica e teológica; Terra Sonâmbula (1992), do moçambicano Mia Couto, ao explorar os impactos da guerra civil em Moçambique, permite rever e fazer-nos pensar em temas como a desumanização, a perda e a resiliência do espírito humano.

    As grandes narrativas que formam o cânone ocidental literário têm em comum a defesa dos direitos humanos a partir da criação de personagens individuais e coletivas que representam lições de humanismo através das quais devemos colher a consciência cívica que pode alterar o futuro das sociedades. Estas obras serviram de alertas sociais, muitas vezes com incidências políticas, mas também serviram e servem de memória histórica de momentos singulares de uma nação ou civilização que não queremos ver repetidos no futuro. O lado pedagógico destas obras literárias funciona, precisamente, pela lição que elas nos dão do que não deve ser a humanidade das pessoas e de como não se devem relacionar entre si. Também são, muitas vezes, lições políticas, porque nos denunciam o que não deve ser o exercício do poder, se queremos ver sempre respeitada a condição humana.

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 10 de dezembro de 1948, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e a sua criação está diretamente ligada às atrocidades e ao sofrimento humano imensurável causados por esse conflito. O tema da guerra é um dos mais recorrentes na literatura universal e surge quase sempre como uma forma privilegiada de questionamento da complexidade da condição humana. A literatura que trata da guerra sempre funcionou bem como alerta de consciências coletivas para os problemas da humanidade, e podíamos começar pela Ilíada, de Homero, sobre a Guerra de Tróia; Guerra e Paz (1869), de Lev Tolstói, por exemplo, retrata-nos vivamente a sociedade russa durante as Guerras Napoleónicas, abordando temas como a moralidade da guerra, o impacto social e político dos conflitos e a busca humana por significado e paz; Gone with the Wind (1936), de Margaret Mitchell, oferece-nos uma visão da Guerra Civil Americana e da reconstrução do Sul, explorando questões de identidade, de sobrevivência e a transformação social decorrente da guerra; Catch-22 (1961), de Joseph Heller, é uma crítica violenta à irracionalidade da guerra, à burocracia militar, à repressão da liberdade de expressão e ao poder arbitrário que determina o valor da vida humana; Slaughterhouse-Five (1969), de Kurt Vonnegut, representa os horrores da guerra e da militarização violenta causadora de todo o tipo de traumas psicológicos e da forma como os mais elementares direitos humanos podem ser sacrificados sem uma explicação racional; As Cinco Máscaras do Dr. Blaumacher (1989), de Pepetela, aborda as questões do colonialismo e da Guerra de Independência em Angola, refletindo sobre os impactos sociais e humanos do conflito.

    Estes exemplos são suficientes para concluir que a literatura tem sido uma das mais eficazes artes ao serviço da denúncia das violações mais elementares dos direitos humanos, ao mesmo tempo que nos oferece matéria profunda para reflexão, se quisermos apurar a nossa consciência individual sobre o que devemos e o que não devemos fazer aos outros com quem formamos um coletivo social. A nível individual, tal consciência não deve afastar-nos dos exemplos maiores que a mesma literatura consegue canonizar de personalidades que sobreviveram a todo o tipo de violação de direitos essenciais e ficaram na nossa memória como heróis eternos: Odisseu, de A Odisseia de Homero, é o eterno herói que simboliza a resiliência humana e a busca pela justiça e pelo direito ao próprio destino; Medeia, a personagem central da tragédia homónima de Eurípides, representa um caso complexo em relação aos direitos das mulheres em sociedades opressoras, incluindo os direitos das crianças e o impacto das decisões dos adultos nas suas vidas; Hester Prynne, em The Scarlet Letter (1850), de Nathaniel Hawthorne, desafia as normas sociais e a hipocrisia, enfrentando o estigma social e a discriminação de género, representando a luta contra a opressão baseada no género;  Jean Valjean, de Os Miseráveis, de Victor Hugo, é um ex-prisioneiro que enfrenta a brutalidade do sistema de justiça criminal francês e se transforma num homem de grande moral e compaixão, dedicando a sua vida a ajudar os outros; as crianças de rua que sobrevivem na cidade de Salvador, na Baía, de Capitães de Areia (1937), de Jorge Amado; Siddhartha (1922), de Hermann Hesse, relata a odisseia de Siddhartha em busca de iluminação e explora o tema da liberdade espiritual e da autodescoberta, relevantes para os direitos à liberdade de pensamento e religião; Winston Smith, de 1984, de George Orwell, luta contra a opressão totalitária num estado de vigilância constante, representando a luta pela liberdade e a autonomia individual; Ivan Denisovich, de Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (1962), de Alexander Solzhenitsyn, representa a luta pela dignidade humana no meio das condições brutais de um campo de trabalho soviético; Celie, de The Colour Purple (1982), de Alice Walker, é uma mulher negra no sul dos Estados Unidos que supera anos de abuso e opressão para encontrar a sua própria voz e independência; ou Aminata Diallo, de The Book of Negroes (2007), de Lawrence Hill, uma mulher que é capturada como escrava em África e levada para a América, representando a resistência e a busca pela liberdade no meio da escravidão e da opressão. Todas estas personagens, provenientes de diferentes culturas e períodos literários, oferecem perspetivas únicas sobre os direitos humanos, cada uma delas encarnando lutas e desafios distintos que continuam relevantes na atualidade.

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    Autor: Carlos Ceia

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