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    Locke, John [Dicionário Global]

    Filósofo inglês (1632-1704) cujos trabalhos incidiram especialmente sobre a Teoria do Conhecimento e a Filosofia Política e produziram um profundo impacto sobre o desenvolvimento do constitucionalismo ocidental e do Estado de Direito contemporâneo, representando uma das mais marcantes referências das experiências constitucionais britânica e norte-americana.

    Filho de um advogado e educado numa família puritana e profundamente religiosa (calvinista), os seus estudos iniciais em Oxford passaram pela Teologia e pela Medicina, antes de se fixarem definitivamente na Filosofia.

    Começando por colaborar com alguns políticos influentes da época, especialmente com o Conde de Shaftesbury, viu-se obrigado ao exílio na Holanda, em 1683, quando viu a sua vida e liberdade ameaçadas durante a trajetória de Carlos II rumo a um novo período de absolutismo. Esse exílio mostrar-se-ia decisivo para o desenvolvimento do seu pensamento político e filosófico, fruto do contacto com as ideias liberais da época, consolidando a sua crença na necessidade de um governo limitado e protetor de direitos inalienáveis do homem. A germinação dessas ideias permitiria a Locke, no regresso a Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, apresentar a sua obra política fundamental – Two Treatises of Government –, sustentando uma monarquia constitucional limitada, marcada por uma separação de poderes e por uma primazia da lei parlamentar – mas simultaneamente negando o carácter absoluto à própria lei, a qual se encontraria proibida de lesar os direitos inatos ou inerentes à pessoa humana, incluindo os direitos à vida, à liberdade (incluindo liberdade física, de consciência, de pensamento e religiosa) e à propriedade privada.

    A prioridade concedida por Locke à fundamentação de um governo moderado e protetor da liberdade individual torna-se mais notável se se tiver em conta que os pressupostos a que recorreu para a sua proposta constitucional não seriam facilmente compatibilizáveis com as conclusões que ele próprio alcançou no âmbito da sua Teoria do Conhecimento – o que redundou num debate, que até hoje se mantém entre os seus comentadores, sobre se Locke seria um verdadeiro crente no empirismo. Pode dizer-se que Locke preferiu renunciar a uma perfeita coerência do seu sistema de pensamento em benefício do apoio ao Liberalismo e ao fortalecimento dos direitos individuais.

    Com efeito, do ponto de vista da Teoria do Conhecimento, a sua obra filosófica fundamental (An Essay Concerning Human Understanding) apresentou uma construção que tinha como antepassada remota a escola de Demócrito e como antepassados recentes Bacon e Gassendi, segundo a qual qualquer ideia humana seria imputada a duas fontes alternativas – (i) a sensação e (ii) a perceção da operação da mente do sujeito cognoscente, a qual, porém, também assentaria na experiência anteriormente adquirida pela sensação. Tal implica que nenhuma ideia (inata) existiria antes da obtenção da experiência sensorial, dando origem à célebre imagem que representava a mente como mera folha de papel em branco, na qual nada fora escrito e nenhuma ideia jazeria (An Essay…, liv. I, cap. III).

    Ora, é certo que essa premissa inicial do seu pensamento podia, em si mesma, fundar algumas conclusões decisivas para os futuros sistemas de direitos fundamentais. Na ausência de qualquer ideia inata, nenhum valor, interesse ou opinião estaria dotado de um grau de certeza suficiente para que qualquer indivíduo ou força política pudesse descartar a possibilidade de se ter equivocado na formação das suas convicções. Isto permitiu-lhe combater o autoritarismo presente em propostas como a de Hobbes, que sustentavam a construção de um modelo político assente em premissas racionais e certas, em paralelismo com os processos racionais das ciências naturais ou matemáticas, justificando a imposição pelo governante de um projeto político coativo aos seus cidadãos, por conseguir, identificar a solução infalível para alcançar o bem-estar comum. Ao invés, Locke apresentou a falibilidade gnosiológica como fundamento para um princípio da tolerância mútua: cada indivíduo, consciente da incerteza inerente às perceções sensoriais com que adquirira os seus conhecimentos, deveria aceitar um espaço de autodeterminação do seu próximo na formulação dos seus padrões de conduta prática (An Essay…, liv. IV, cap. XVI).

    Sem prejuízo do seu impacto no plano da limitação do poder político, essa conclusão também valeria particularmente no plano das convicções morais e religiosas, onde Locke ofereceu alguns das reflexões mais significativas que já foram produzidas no pensamento ocidental para sustentação das liberdades religiosa, de culto, de pensamento e de consciência, designadamente em A Letter Concerning Toleration (1689).

    Até este ponto, as conclusões no plano político-constitucional não apresentavam qualquer dissonância com as conclusões no plano filosófico ou gnosiológico. Contudo, na estruturação do seu modelo político, Locke compreendeu que uma recusa absoluta de princípios seguros e acessíveis ao conhecimento humano, podendo descambar no niilismo, permitiria ao titular do poder encetar quaisquer iniciativas ofensivas da liberdade individual, visto que também esta última – tornando-se vítima da mesma relativização aplicável ao demais conhecimento humano – deixaria de constituir um fundamento suficientemente estável para bloquear atos ablativos do Estado. Numa palavra, a incerteza ou falibilidade gnosiológica voltar-se-ia contra a própria liberdade humana, que também deixaria de ser apresentada como razão bastante para limitar o poder.

    Foi neste contexto que Locke aceitou incorrer numa visível contradição em relação às suas premissas gnosiológicas, ao reconhecer a existência de uma “lei natural”, “que é a razão”, a qual “ensina toda a Humanidade que a consultar que, sendo todos os homens iguais e independentes, ninguém pode lesar outrem na sua vida, na sua saúde, na sua liberdade, nem nas suas posses”. E “por sermos dotados de faculdades iguais, e por partilharmos todos a mesma natureza, não se pode supor que exista entre nós uma subordinação que nos autorize a destruir outro homem” (The Second Treatise, cap. II, 6).

    Evidentemente, não existiria qualquer dificuldade em justificar este princípio lógico-racional no contexto de um modelo racionalista presente em Tomás de Aquino, Grócio ou Leibniz; porém, para um modelo que rejeitara o inatismo e limitara o conhecimento humano às sensações falíveis, antecipando também um perfil de utilitarismo, a presença de uma tal verdade absoluta fundada numa “lei natural” associada à “razão” não seria facilmente explicada.

    Essa dificuldade foi agravada pela circunstância de Locke, à falta de outro fundamento lógico-dedutivo proscrito no seu pensamento, precisar de recorrer a um facto bíblico – a criação do homem por Deus – para apoiar a natureza igualmente digna e igualmente sagrada de todos os seres humanos, em virtude da sua sujeição à lei natural desde o momento da Criação (The Second Treatise, cap. VI, 56 ss.), depois de, contudo, exigir que o conhecimento científico assentasse na separação entre a Revelação e a Razão para libertar a ciência de premissas metafísicas. Precisou, pois, de apresentar a lei natural como conjunto de preceitos acessíveis à razão através de uma sequência de raciocínios formados pelo exercício das faculdades implantadas pelo Criador, pela qual se apreenderiam os princípios práticos que guiam a conduta humana.

    Mas essa condição contraditória foi a que Locke aceitou cumprir para, a partir dela, assentar os seus pressupostos para um governo limitado e protetor da liberdade individual.

    Fê-lo, sobretudo, nos referidos Two Treatises of Government, publicados em 1689, meses depois de concluída a Revolução Gloriosa – o que durante séculos levou os seus intérpretes a crer estar perante um trabalho escrito com uma assombrosa rapidez para oferecer legitimação moral ao novo regime, até que as ulteriores investigações verificaram estar em causa uma elaboração de largo fôlego, preparada para crítica ao absolutismo vigente nos anos anteriores e meramente readaptada após a revolução para a sua sustentação teórica.

    Tendo o Primeiro Tratado um intuito essencialmente desconstrutivo, Locke escolheu a tese do patriarcalismo de Robert Filmer como principal alvo que lhe permitia provar a irracionalidade de uma fundamentação de direito divino do poder, a qual fora invocada para apoiar uma monarquia absoluta que herdaria um poder ilimitado concedido pelo Criador a Adão e aos seus herdeiros. Uma vez completado esse trabalho destrutivo, o Segundo Tratado pôde apresentar a fundamentação alternativa do poder – e, simultaneamente, as bases para o futuro liberalismo político.

    Para esse efeito, Locke começou por aceitar a premissa da fundação do Estado sobre um contrato que reuniria o consentimento da comunidade para a instituição de um governo comum. Ora, o recurso a um fundamento contratualista não oferecia novidades em relação às propostas de Hobbes e Pufendorf e, em certa medida, do próprio Suárez. Todavia, o salto qualitativo resultou do aproveitamento daquela tese que (embora não sem contradições em face dos seus postulados) Locke extraíra da lei natural: quando os homens haviam sido colocados no mundo pelo seu Criador e deixados num estado de natureza, em “perfeita liberdade”, a sua personalidade bondosa moldada à imagem de Deus permitia aos homens primitivos viver num “estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação”, e não num “estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua” (The Second Treatise, cap. II, 4; cap. III, 19).

    Esta descrição do estado de natureza apresentava um contraste flagrante em face de um bellum omnium contra omnes pintado por Hobbes. E era justamente deste pressuposto distintivo que arrancava a justificação dos limites ao poder público. É verdade que a ausência de um poder coercivo havia convencido os homens do estado de natureza a aceitar a transição para um estado de sociedade e a submissão a um governo civil, visto que, sem este, a vida, a liberdade e a propriedade ficariam indefesas contra abusos decorrentes das paixões humanas. Através do contrato, cada parte contratante renunciaria ao seu direito de autotutela e procederia a uma delegação de poderes numa autoridade comum (The Second Treatise, cap. VII, 87 ss.). Contudo, a circunstância de os homens já terem conhecido uma alternativa à sua existência social permitia-lhes submeter o estado social a uma constante avaliação do seu desempenho; no caso de o governo civil não cumprir as funções de preservação da liberdade que lhe haviam sido cometidas, os contraentes mantinham uma solução viável para a sua sobrevivência.

    Por outras palavras: no caso de Hobbes, a descrição de um estado de natureza aterrorizador deixava a comunidade sem alternativas perante um poder absoluto; qualquer excesso do soberano não encontrava qualquer remédio, porque qualquer experiência desagradável em sociedade seria preferível à hipótese de retrocesso para o estado anterior ao contrato social. Em contraste, no caso de Locke, o estado de natureza formava uma alternativa, embora imperfeita, preferível a um poder absoluto (The Second Treatise, Cap. VII, 91). O contratualismo era concebido para proteção dos governados e não para tutela do governante.

    Assim, para a construção deste poder limitado, sublinhava-se que “a comunidade retém perpetuamente um poder supremo de se salvar das tentativas e desígnios de qualquer pessoa, incluindo os seus legisladores, sempre que forem tão tolos ou tão malvados que cheguem ao ponto de conceber e executar propósitos que ofendam as liberdades e a propriedade do súbdito” (The Second Treatise, cap. XIII, 149). Nenhuma delegação de poder poderia ser ilimitada no plano temporal (perpétua) ou no plano material (com supressão total da liberdade dos cidadãos). Se o homem não dispõe de liberdade para se destruir a si mesmo (The Second Treatise, cap. II, 6) e se nenhum homem pode transmitir a outrem os poderes que não possui (The Second Treatise, cap. IV, 23), os poderes constituídos no Estado não iriam além de uma imagem das faculdades que o homem já poderia exercer no estado de natureza. Portanto, se as duas faculdades mais notórias no estado de natureza consistiriam em (i) escolher fazer tudo o que é conveniente para a preservação própria e do semelhante, dentro dos limites autorizados pela lei natural, e em (ii) executar a lei natural e punir as transgressões praticadas contra esta, seria também assim que os poderes legislativo e executivo seriam concebidos e recortados no estado social (The Second Treatise, cap. XIII, 128). Qualquer exercício destes poderes sociais fora das finalidades que lhes foram confiadas representaria uma violação do próprio fundamento do contrato criador do Estado.

    E daqui decorriam duas consequências cruciais. Em primeiro lugar, a organização política seria estruturada segundo um modelo de separação de poderes, distinguindo os poderes legislativo, executivo e federativo, acrescidos de um poder de prerrogativa para momentos de exceção na conformação do bem comum. Justificando essa opção com uma fórmula que Montesquieu meramente replicaria, “seria uma tentação demasiado forte para a fraqueza humana, que tem tendência a abarcar todo o poder, que as mesmas pessoas que têm o poder de fazer as leis tivessem nas suas mãos o poder de as executar, podendo então isentar-se a si próprias da obediência às leis que fizeram, conformando-as, tanto na sua elaboração como na sua execução, segundo a sua vantagem particular” (The Second Treatise, cap. XII, 143).

    Mas a este pilar de todos os futuros Estados de Direito, Locke juntou uma segunda marca fundamental. Propondo um princípio de primazia da legalidade parlamentar, Locke identificou o poder legislativo – exercido pela assembleia que representa a comunidade – como poder “supremo”, responsável pela aprovação das regras que ordenariam a atuação do executivo (The Second Treatise, cap. XI, 129-130); contudo, intencionalmente utilizou esse conceito de “supremo” em vez do conceito de “soberano” – expressão que Hobbes preferira e Rousseau retomaria – porque pretendia sublinhar a sua natureza limitada e condicionada ao cumprimento dos deveres impostos pela comunidade que elegeu a assembleia. Em fórmula decisiva, “o poder legislativo não é, nem pode ser, absolutamente arbitrário sobre as vidas e as fortunas das pessoas: tratando-se da fusão dos poderes comuns de que cada membro da sociedade abdicou em benefício daquela pessoa, ou assembleia, que é o legislador, o poder legislativo não pode exceder o poder que as pessoas tinham no estado de natureza antes de entrarem na sociedade e o transferirem para a comunidade” (The Second Treatise, cap. XI, 135).

    Daí que, estrategicamente, depois de ter reconhecido a sua natureza suprema, Locke empenhou o seu maior esforço na delimitação das balizas ao poder legislativo, e não aos demais poderes que, tendo uma natureza derivada ou subordinada, não ameaçariam de forma tão intensa a liberdade humana. Dito de outro modo, justamente por estar em causa o poder mais significativo construído em comunidade, ao poder legislativo – a ser exercido por representantes com mandatos temporários e não permanentes – teriam de ser impostas as maiores cautelas na tutela da pessoa humana. O sistema de separação de poderes de Locke escolhia um perfil contra-maioritário.

    Por isso, o exercício tirânico do poder legislativo foi apontado como “causa de dissolução do governo”: enquanto verdadeiro “trust”, “o poder legislativo atua contra a confiança que nele foi depositada quando procura invadir a propriedade dos súbditos ou quando procura fazer de si mesmo, ou de qualquer parte da comunidade, senhor ou árbitro que dispõe da vida, da liberdade e dos bens do povo”; “graças a este abuso de confiança perde o poder que o povo tinha colocado nas suas mãos para a prossecução de fins totalmente diversos destes, devolvendo esse poder ao povo, o qual recebe o direito de recuperar a sua liberdade originária e, através do estabelecimento de um novo poder legislativo (aquele que considere mais conveniente), cuidar da sua proteção e segurança, que constituem o fim pelo qual formaram a sociedade” (The Second Treatise, cap. XIX, 221-222).

    Nesta combinação entre o reconhecimento de direitos inalienáveis e indisponíveis para o Estado, separação de poderes e primazia da legalidade parlamentar, Locke assumiu a paternidade do Liberalismo e representou a primeira fonte inspiradora da modernidade constitucional para a construção de um Estado de Direito.

    Além de oferecer um fundamento de legitimação teórica para a Revolução Gloriosa que consolidou o sistema parlamentar britânico, o modelo de separação de poderes de Locke teve um superior impacto no constitucionalismo norte-americano, que, alertado para os abusos de maiorias parlamentares descontroladas, compreendeu a necessidade de construir um sistema contra-maioritário que cerca o poder legislativo com sucessivos freios e contrapesos, ainda que para tanto tenha precisado de fortalecer o Executivo.

    Contudo, para o constitucionalismo ocidental em geral, mesmo fora do contexto anglo-saxónico, as lições de Locke ensinaram à sua posteridade a necessidade de limitação de qualquer titular do poder, ainda que dotado de uma legitimidade democrática. Ao contrário do que Rousseau utopicamente proporia, a História veio a ensinar que a vontade da maioria não é critério de verdade e que todos os participantes do poder carecem de mecanismos de controlo que visam impedir a violação das competências fiduciárias que lhe foram confiadas.

    Essa perceção seria a premissa que inspiraria (i) a criação de futuras constituições escritas limitativas de maiorias constituídas, (ii) a consagração de direitos fundamentais protetores da igual dignidade de cada ser humano, colocados a salvo de qualquer vontade maioritária e, bem assim, (iii) embora Locke não o tivesse compreendido na sua época, a compreensão da necessidade de técnicas de fiscalização judicial das leis e demais atos do poder.

    Em suma, de Locke herdou o pensamento moderno a lição de que absoluto não é o Estado – nem mesmo o poder legislativo que nele assume uma posição “suprema” –, mas sim a pessoa humana para cuja vida, liberdade e propriedade o Estado foi constituído.

    Bibliografia

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    Como citar:

    SÁNCHEZ, P. F. (2022). “John Locke”. In J. E. Franco, P. Jerónimo, S. M. Alves-Jesus, T. C. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos. [ISBN: 978-989-9012-74-5]

    Escrito por -

    Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela mesma Faculdade, com tese intitulada «Lei e Sentença: Separação dos Poderes Legislativo e Judicial na Constituição Portuguesa». Investigador principal do Centro de Investigação de Direito Público da Faculdade de Direito de Lisboa. Advogado e jurisconsulto. Formador convidado pelo Governo Português e por outras entidades públicas e privadas para formação do respetivo pessoal nas áreas do Direito Constitucional e do Direito Administrativo. Autor de livros e artigos nas mesmas áreas.

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