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    Lutero, Martinho [Dicionário Global]

    Martinho Lutero nasceu em Eisleben, atual Lutherstadt Eisleben, localizada nos então territórios pertencentes aos condes de Mansfeld, no Sacro Império Romano. Filho de João Luder, ou Ludher, um modesto mineiro promovido pelo seu esforço próprio a membro do conselho da cidade, e de sua esposa Ana, Martinho foi batizado a 11 de novembro de 1483, logo no dia seguinte ao seu nascimento.

    Raro para a época, o jovem fruiu de um percurso escolar notável, passando por escolas em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach. Em 1501, ingressou na Universidade de Erfurt, onde se tornou bacharel em Artes logo no ano seguinte. Almejando seu pai que Martinho prosseguisse a carreira jurídica, o jovem tornou-se mestre em Artes em 1505, mas uma crise espiritual acabaria por alterar a sua jornada académica, decidindo, ao invés, dedicar-se à vida religiosa consagrada. Para tal, Lutero ingressou no Convento de Erfurt, governado pelos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, frades observantes integrados numa “comunidade reformada” desta congregação, vindo a ser ordenado ao sacerdócio apenas dois anos depois. Sob orientação académica e espiritual de João Staupitz (1465-1524), vigário-geral da congregação na Saxónia, Lutero continuaria o seu percurso até, em 1511, ser transferido em definitivo para a Universidade de Vitemberga, instituição criada em 1502 pelo príncipe eleitor Frederico III (1463-1525), conhecido por “o Sábio”. O jovem agostinho viria a concluir o seu doutoramento em Teologia no outono de 1512, já em Vitemberga, passando ali a exercer funções docentes.

    Foi ainda durante o período de formação que Lutero realizou uma viagem a Roma ao serviço da ordem, entre 1510 e 1511, a qual viria a marcar indelevelmente a sua forma de olhar para a instituição romana, em particular para o papado e a Cúria. Ao assumir a cátedra bíblica em Vitemberga, transferida de Staupitz, Lutero começou por estudar e ensinar o Livro dos Salmos, seguindo-se-lhe as Epístolas de S. Paulo aos Romanos, em 1515-1516, aos Gálatas, em 1516-1517, e, ainda, aos Hebreus, em 1517-1518. As indulgências decretadas pelo Papa Júlio II (1443-1513), em 1506, renovadas pelo seu sucessor, Leão X (1475-1521), em 1517, com o principal objetivo de angariar fundos para a conclusão da Basílica de São Pedro, em Roma, tornaram-se o motivo inicial da contestação do frade alemão. A primeira manifestação sobre este tema, publicada por Lutero, surge ainda em 1516, com o texto De Indulgentiis, sendo, todavia, na sua mais extensa Disputatio pro Declaratione Virtutis Indulgentiarum, datada de 31 de outubro de 1517 e distribuída por Noventa e Cinco Teses, que Lutero convocava os seus colegas à discussão sobre a real eficácia de tais decretos papais. Produzido em latim, como se esperaria de um tratado académico, o documento acabou por ser traduzido para língua germânica e divulgado em larga escala, com recurso ao desenvolvimento tecnológico conferido pela prensa de caracteres móveis. A partir destes acontecimentos, a vida de Lutero experimentou significativas alterações.

    Logo no princípio de 1518, Lutero viu-se envolvido num conjunto de confrontações e de debates públicos, onde foi obrigado a defender-se; esperava-se a sua retratação, porém, isso nunca viria a acontecer. A primeira tentativa de conciliação foi mediada pelo seu mentor Staupitz, que promoveu a reunião que ficaria conhecida como a Disputa de Heidelberg, em julho de 1518, a fim de serem apresentadas aos irmãos agostinhos as grandes mudanças que estavam em curso no programa curricular de Vitemberga. Não aceitando retroceder, Lutero ficou livre dos seus votos monásticos, regressando, assim, à rotina académica em Vitemberga. Porém, em outubro desse mesmo ano, ocorre em Augsburgo um encontro com o legado papal Tomás de Vio (1469-1534), frade dominicano que passou a ser conhecido como cardeal Caetano.

    O ano de 1519 ficaria marcado pela Disputa de Leipzig, mas só no ano seguinte a rutura se tornou definitiva, através da bula papal Exsurge Domine, que garantia a Lutero um prazo de 60 dias para se retratar. Tendo tomado conhecimento do teor do documento só após o termo da tal garantia, o ex-frade organizou uma queima pública do mesmo, quando efetivamente o recebeu; a excomunhão de Martinho Lutero tornar-se ia definitiva em janeiro de 1521, pela bula Decet Romanum Pontificem. Ainda neste ano, Lutero viria a ser banido da sua pátria, após audição pelo recém-eleito cabeça do Sacro Império Romano, Carlos V (1500-1558), durante a realização da Dieta de Worms, por édito outorgado a 26 de maio de 1521. Tido como réprobo pela Igreja Romana e proscrito pelo império, Martinho Lutero só sobreviveu graças à proteção de Frederico “o Sábio”, que encenou o rapto do reformador, encarcerando-o de forma benigna no seu castelo de Vartburgo. Este retiro forçado permitiu a Lutero realizar, no espaço de poucas semanas, a tradução do Novo Testamento, do grego para a língua germânica, que foi publicada no ano seguinte; a tradução completa da Bíblia só ficaria concluída em 1534, com a colaboração de outros eruditos protestantes, para além do próprio Lutero.

    Foi ainda em 1520 que o reformador apresentou uma forte produção literária, na qual se incluem diversos sermões e os textos breves À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Do Cativeiro Babilónico da Igreja e Da Liberdade de Um Cristão. Entretanto, durante a sua ausência de Vitemberga, a liderança do movimento reformador foi assumida por André de Carlstadt (1486-1541), também docente na Universidade de Vitemberga, que pretendia realizar com maior velocidade as mudanças preconizadas, tanto ao nível do clero como no que dizia respeito a práticas litúrgicas e mesmo a matérias doutrinais. Porém, o regresso de Lutero a Vitemberga, em meados de 1522, acabaria por precipitar a rutura entre os companheiros e a posterior saída de Carlstadt de Vitemberga, em 1523. Praticamente confinado ao reduto saxão, Martinho Lutero viria a assistir a eventos marcantes neste processo de acelerada transformação ao longo da segunda década de Quinhentos. Nesse mesmo período, concretamente em 1525, contraiu matrimónio com Catarina de Bora (1499-1552).

    Mas foi só entre 1529, com o início da elaboração da confissão de Augsburgo, apresentada à dieta reunida nessa cidade, em 1530 – da qual Filipe Melâncton (1497-1560) liderou uma delegação protestante que apresentou tal manifesto ao imperador –, e 1537, com a conclusão dos artigos de fé de Esmalcalda, que foi tomando corpo o que se pode verdadeiramente chamar de teologia protestante, ou luteranismo, que, em bom rigor, só ficaria devidamente sistematizada e fixada no Livro da Concórdia, publicado pela primeira vez em 1580 – portanto, já umas décadas após o falecimento de Lutero –, embora muito do seu conteúdo, de modo direto ou indireto, seja da autoria do próprio reformador.

    Uma das raras saídas de Vitemberga por parte de Lutero ocorreu em 1529, quando aceitou encontrar-se com o reformador de Zurique, Ulrico Zuínglio (1484-1531), a convite de Filipe de Hesse (1504-1567), para debater os princípios reformistas que cada um defendia. A reunião aconteceu no Castelo de Marburgo, nos primeiros dias de outubro, tendo os reformadores chegado a acordo em grande parte dos pontos presentes em discussão, mas não quanto ao tema da eucaristia, já que Zuínglio não conseguiu aceitar a ênfase do ex-frade germânico na presença real de Cristo na Santa Ceia. Lutero sobreviveria por mais de década e meia ao encontro de Marburgo, tendo regressado a Vitemberga, onde continuou a exercer o seu magistério académico praticamente até ao dia da sua morte, a 18 de fevereiro de 1546, fortuitamente ocorrida na localidade onde tinha nascido mais de seis décadas antes.

    Talvez o principal esteio da teologia de Lutero seja o tema da justiça, tendo por base um consistente quadro hermenêutico fundamentado na Sagrada Escritura, a qual, para o autor, era a fonte exclusiva de autoridade espiritual – individual – e eclesiástica – coletiva. Para o reformador, a única mediação material da autoridade divina era, pois, a Escritura; porém, sola scriptura não significava que só a Bíblia e nada mais tinha valor, mas que a autoridade para o crente se encontrava única e suficientemente nela. Por essa razão, Lutero nunca propôs a substituição da autoridade papal por qualquer outra autoridade humana, espiritual ou temporal, ou sequer baseá-la em revelações pessoais inescrutáveis, mas considerou que a autoridade se tratava de algo concreto e validado pela História, nunca posto em causa pelos Pais da Igreja ou mesmo por papas e concílios: a Sagrada Escritura. Não se tratava, todavia, de uma inovação, pois esta “nova teologia” procurava tão-somente restaurar a intenção original de Deus ao revelar a sua vontade ao ser humano, expurgando tudo aquilo que tinha vindo a ser acrescentado por o que Roma designava como “magistério da Igreja”. No entendimento de Lutero, a Palavra estava cativa de sucessivas interpretações e demasiado arredada da vivência real do povo de Deus, necessitando de ser restaurada e revitalizada.

    A teologia da Reforma insistiu que a verdadeira Igreja era constituída pelos filhos de Deus, em direta comunhão com a cabeça, Cristo, não com o papa, pelo que a Igreja não podia ser compreendida a partir de uma base hierárquica. Ora, é esta visão horizontal do povo de Deus que, em grande medida, explica o conceito luterano de “dignidade humana”, plasmado desde os seus mais primevos documentos. Logo em 1520, no seu famoso opúsculo Da Liberdade de Um Cristão, dirigido ao “bendito pai” Leão X, pode-se vislumbrar a ideia-mestra de uma teoria da igualdade e da responsabilidade, embora em tudo dependentes da soberania de Deus. Construindo o seu argumento com base na ideia de uma comunidade desierarquizada, Lutero destacava-se dos ensinos cristãos medievais que faziam depender a dignidade humana da razão, classe ou vocação da pessoa. Mais de quatro séculos antes da Dignitatis Humanae, Lutero apresentava neste texto o seu grito de reivindicação pela liberdade humana, já que, segundo ele, todos os que povoam a cristandade – papa ou príncipes, nobres ou mendigos, homens ou mulheres, servos ou livres – são detentores de uma natureza dupla paradoxal que lhes confere uma dignidade ímpar: por um lado, todos são santos e pecadores; por outro, todos são também, em simultâneo, senhores, que não estão sujeitos a ninguém, mas também servos, que estão sujeitos a todos. Ou seja, a garantia da salvação do ser humano não advém do que é, mas apesar do que é, da sua natureza. Como tal, essa salvação só pode ser obtida através da fé e da esperança na Palavra de Deus, que para Lutero é o evangelho de Cristo. Compreende-se assim que a antropologia de Lutero não se pode separar da sua soteriologia, pois uma teoria da dignidade humana que não tenha em conta a depravação e a santidade da pessoa humana combinada é teológica e politicamente deficiente, se não mesmo perigosa.

    Esta perspetiva de total alinhamento da humanidade conduzi-lo-ia também a um conceito transversal a toda a teologia da Reforma, encapsulado no princípio do “sacerdócio universal de todos os crentes”, ou seja, a ideia de que cada cristão pode livremente realizar boas ações ao serviço do próximo e para glória de Deus. Neste sentido, o ser humano não vive apenas para si, mas sobretudo para os outros, sendo esta uma responsabilidade de todos, e não apenas de alguns, dos “escolhidos”. Este é um ponto absolutamente crucial no pensamento de Lutero, uma vez que deixa claro que cleros e leigos são fundamentalmente iguais em dignidade e responsabilidade perante Deus.

    Apesar de o pensamento protestante e reformado ter influenciado de forma significativa o desenvolvimento do edifício conceptual político e jurídico relativo aos direitos e às liberdades fundamentais do ser humano, construído ao longo dos séculos seguintes, a verdade é que, na tradição liberal, liberdade e igualdade assentam sobretudo na “soberania popular” e nos “direitos inalienáveis”. Note-se que a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) proclama que “estas verdades são evidentes, que todos os homens nasceram iguais, que foram dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”; por sua vez, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) afirma que estes são “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”; já a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) reiterou que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Por tudo isto, muitos protestantes se identificarão mais com as normas de liberdade e igualdade destes documentos do que com as teorias da soberania popular e dos direitos inalienáveis que geralmente lhes estão subjacentes. Para a teologia protestante, o cerne é a plena liberdade de consciência na sua relação exclusiva com Deus, independentemente do arbítrio de quaisquer poderes, inclusivamente o eclesiástico, sempre que ponham em causa esta liberdade divina.

    Todo o arrazoado teórico que serve de base ao pensamento de Lutero não permitiu, todavia, que o reformador concluísse ser possível implementar uma plena liberdade política na sociedade em geral exclusivamente com base na teologia da liberdade espiritual. Lutero ficaria ainda mais ciente da distância real entre esses dois paradigmas quando assistiu com dor às consequências trágicas da guerra dos camponeses, travada em 1525, e de outras experiências radicais que invadiram a Alemanha naquela época. Isto mesmo esteve também na origem do desenvolvimento da sua teoria dos dois reinos, em pleno reconhecimento da clara disparidade entre as dimensões temporal e espiritual, o que ajudou de igual modo a reformular a sua eclesiologia. Deve-se ainda notar que o pensamento hermenêutico de Lutero tem claras interseções com a compreensão atual dos direitos humanos no quadro da sua responsabilidade perante a sociedade, ou seja, os direitos só fazem sentido enquanto garantia dos deveres que lhes estão inerentes. Para Lutero, os deveres morais estabelecidos no Decálogo só fazem sentido na medida em que se traduzem nos correspondentes em direitos recíprocos.

    Como qualquer corpo doutrinal, também a teologia e a prática do luteranismo foram sofrendo desenvolvimentos diversos. Uma das etapas mais marcantes foi aquela que começou logo no início do século XVII, pouco depois da morte de Melâncton, período que ficaria conhecido como “ortodoxia protestante”. Esta tendência foi fortemente influenciada por correntes neoaristotélicas, trazendo assim o escolasticismo que Lutero rejeitara às agora universidades e seminários luteranos, ainda que não tenham rejeitado os princípios básicos do luteranismo, em particular o conceito de sola scriptura. Esta escola apresentou como seus principais promotores os pensadores João Gerhard (1582-1637), Nicolau Hunnius (1585-1643) e Abraão Calov (1612-1686), David Hollaz (1648-1713), entre outros. Uma das principais reações ao escolasticismo protestante foi corporizada no pietismo de Filipe Spener (1635-1705), consagrado na sua obra magna Pia Desideria (1675), e de outros, uma corrente teológica que teria uma forte expressão literária, particularmente nos textos do autor e pensador alemão João Goethe (1749-1832). Cansados do que diziam ser o intelectualismo árido dos ortodoxos luteranos, os pietistas deram particular ênfase à experiência espiritual do crente.

    No século XVIII, voltaram a surgir correntes racionalistas no seio do luteranismo, muito ligadas ao pensamento de Cristiano Wolff (1679-1754), que promoveu o deísmo, insistindo que nada podia ser apresentado sem provas. O pensamento teológico luterano teve também forte influência em filósofos e pensadores europeus, como o alemão Emanuel Kant (1724-1804) e o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), cujo lastro continuou, no século XX, com teólogos determinantes como Rodolfo Bultmann (1884-1976), Paulo Tillich (1886-1965) e Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), todos de tradição luterana. Também compositores como Johann Sebastian Bach (1685-1750) ou Joseph Haydn (1732-1809) abrilhantaram as celebrações litúrgicas luteranas com as suas notáveis criações.

    Bibliografia

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    Autor: Timóteo Cavaco

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