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    Maquiavel, Nicolau de Bernardo [Dicionário Global]

    O interesse pela obra política de Nicolau de Bernardo Maquiavel chega a nossos dias pela mesma razão controversa que seduziu leitores no século XVI: a análise causal, não a partir de princípios, da dinâmica dos eventos políticos. Maquiavel está atento ao que a experiência à frente dos negócios de Estado ensina sobre a disputa pelo poder e visa a instruir seu leitor sobre como vencê-la. Não pontifica, pois, a partir de ideais, mas da verità effetualle, isto é, da verdade real informada pelos fatos.

    Embora o caráter descritivo da teoria política do florentino pareça a muitos um atentado à moralidade e, em virtude disso, ao núcleo de sustentação ética dos direitos humanos, a efetivação de políticas públicas para o fortalecimento do respeito a esses direitos passa pelo conhecimento adequado da dinâmica das relações sociais. Para este fim, a obra de Maquiavel é imprescindível, dado que convida a uma cesso analítico à intrincada conjunção de causalidades, objetivas e subjetivas, que engendra o tecido social humano.

    Filósofo, historiador, político, diplomata e literato, Maquiavel nasceu em Florença em 3 de maio de 1469. Filho de Bernardo de Nicolau Maquiavel, advogado e membro da baixa nobreza florentina, recebeu a educação humanista típica da época, tendo estudado Gramática, Retórica, Filosofia e História. A influência dos antigos, gregos e romanos, sobre seu pensamento, sobretudo Aristóteles e o historiador Lívio, é marcante. O recurso à analogia histórica como método de análise dos acontecimentos políticos, assim como da Psicologia e Antropologia humanas lhe é típico e segue uma inclinação empirista que se afirmava na renascença italiana e consolidou-se na modernidade, em especial no Iluminismo escocês.

    Em 1498, Maquiavel foi nomeado segundo secretário de Chancelaria, tendo servido por catorze anos como diplomata e embaixador da República Florentina. Durante esse tempo, viveu intensamente o funcionamento das cidades-estados italianas, em frequente conflito e mesmo guerra umas com as outras, o que demandava permanente negociação a fim de reencontrar novos pontos de equilíbrio na relação entre elas. Esse contexto histórico e laboral está profundamente entretecido em suas obras políticas.

    A restauração do regime dos Medici em Florença no ano de 1512, mediante a vitória da família sobre os florentinos, com o apoio do Papa Julius II, mudaria em definitivo o curso da carreira e, finalmente, da vida de Maquiavel. Cercada a cidade, Soderini, então soberano, renuncia e a República de Florença termina. Os Medici haviam sido retirados do poder pelo governo republicano a que Maquiavel servira em seu tempo na Chancelaria e essa conexão o expôs à acusação de conspiração.

    Em 1513, já há meses afastado de suas funções, Maquiavel é acusado, preso e severamente interrogado mediante tortura pelo uso do Strappado. Após algumas poucas semanas, é liberado sem acusações e lhe é permitido retornar à propriedade rural de sua família nos arredores de Florença, lugar onde se dedicou a escrever suas obras políticas mais relevantes, O Príncipe e os Discursos, ambos publicados postumamente.

    Como literato, Maquiavel escreveu poesias, músicas e comédias cujas montagens agradaram o público. Não obstante, a política foi sem dúvida sua grande paixão e ele manteve por toda a vida aceso interesse pela política de seu tempo. Depois da queda da República florentina, contudo, não voltaria a ocupar cargos ou a se envolver diretamente na gestão pública.

    Maquiavel não é um pensador sistemático e, portanto, não é um filósofo, mesmo para os padrões de seu tempo. Não avança seu pensamento mediante categorias ou concatenações de aforismas, princípios e deduções. É, antes de tudo, um diplomata; um servidor para o qual bem divisar as circunstâncias para orientar os governantes e negociar em seu nome é essencial. Entendê-lo a partir de seu ofício ajuda a assimilar o que esse humanista da Renascença disse e ainda tem a nos dizer.

    Reconhecido por muitos como o pai da Ciência Política, o título lhe cabe em especial por ter justamente abdicado de um ponto de partida idealista – afeito à Filosofia moral – para tratar das relações de poder, tendo assumido uma perspectiva realista, naturalista, empirista, materialista e pragmática face aos eventos políticos.

    O título em latim de sua obra mais influente, De Principatibus, evoca bem a ideia de uma teoria sobre a forma de governo monárquico, cujo domínio seria um instrumento útil a seu dirigente, o príncipe. O texto, escrito em 1513, foi publicado em 1532, um ano depois da publicação de sua outra obra política de relevância, os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, escrita aproximadamente em 1517. Sua correspondência indica, contudo, que uma cópia do texto em latim de O Príncipe circulou logo depois de escrita.

    Discorsi Sopra la Prima Deca di Tito Livio, no título em italiano, é uma série de ensaios baseados nos primeiro dez livros do historiador Tito Lívio, Ab Urbe Condita, livros nos quais está em tela a história dos primórdios da Roma Antiga, em especial o período republicano. Faz sentido, portanto, considerar que em O Príncipe o acento recai sobre a monarquia, enquanto nos Discursos, sobre a república. Em ambos, porém, o tema é a arte de manter a unidade de um corpo político sob um poder soberano.

    Maquiavel faleceu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Seu legado tem sido tão duradouro quanto controverso. Lido por acadêmicos, mas também por leigos, monarcas e políticos modernos e contemporâneos, não há outro autor em ciência política sobre cuja obra haja tantas e tão díspares interpretações. Leo Strauss o considerou defensor do princípio de que os fins justificam os meios; Cassirer o tratou como um cientista objetivo e sem compromissos morais; Bacon o julgava o grande crítico das fantasias utópicas; Croce, um humanista angustiado e, Berlin, um pensador cuja moral pagã incomoda o ocidente. A lista não é exaustiva, mas muito vasta e crescente (cf. BERLIN, 2013). Maquiavel é interpretado e reinterpretado, e com tantas variações e nuances que parece temerário dizer que seja mal interpretado. Entretanto, pelo mero princípio de não contradição, ele obviamente o é. Se o uso político ou teórico de Maquiavel é da ordem do subjetivo, o que ele objetivamente diz merece crítica hermenêutica. E não há como discernir sua própria voz em meio a tanta exegese, sem recuperar a perspectiva a partir da qual ele fala.

    Maquiavel não escreve para homens cujas mãos não estejam chafurdadas nos negócios do Estado. Não escreve para observadores impolutos, mas para e desde a perspectiva de quem está no poder e precisa lidar com suas vicissitudes. Sobretudo, com a necessidade de manter o poder para seguir influenciando os destinos de outros homens: súditos, cidadãos, inimigos, clérigos, monarcas e governantes. Esse ponto de partida é chave para ler Maquiavel. Desde esse ponto de vista, seus ensinamentos, mesmo que em contextos históricos tão diferentes quanto é o conflito das cidades italianas na Renascença e o confronto dos poderosíssimos Estados democráticos e autocráticos contemporâneos, são atemporais; tal como o é o núcleo da natureza social humana.

    Onde quer que haja pessoas liderando outras e quem quer que já tenha ocupado a posição de líder, por aclamação ou designação, reconhecerá os perigos e dilemas que Maquiavel disseca para o príncipe. Ainda que os expedientes para a condução e resolução de conflitos no renhido embate pelo poder precisem ser atualizados (ma non tropo), aquele que o detém lida cotidianamente para mantê-lo. Enfrenta initerruptamente o desafio de manter-se importante e no centro das decisões para que elas dependam dele.

    Nos Estados democráticos de direito, não se manda matar a família dos dirigentes cujos postos de comando se almeja alcançar, mas se trama para que os concorrentes sejam alijados da disputa com os meios necessários, disponíveis e compatíveis com as circunstâncias. Nessas disputas, vale, tanto quanto em qualquer tempo, o uso da força e da astúcia (per forza o per fraude). Cada qual conforme o que for prudente e eficaz para se obter sucesso na empreitada.

    Desde essa perspectiva, é compreensível que Maquiavel não esteja concernido com efetivar valores morais. Não que ele não os reconheça, mas porque o curso da história mostra que não são decisivos para se conquistar ou manter o poder. Agátocles Siciliano chegou a rei de Siracusa não bem a despeito de seus crimes, mas em virtude deles. “Considerada, porém, a habilidade de Agátocles em entrar e sair dos perigos, e sua fortaleza de espírito no suportar e superar as coisas contrárias, não há nada que possa levar a julgá-lo inferior a qualquer dos mais ilustres capitães. Entretanto, a sua bárbara crueldade e falta de humanidade, e os seus vários crimes, não permitem que seja celebrado entre os mais ilustres homens da história” (MAQUIAVEL, 1977, VIII, 51).

    Embora falte-lhe mérito moral, abundam em Agátocles virtudes que lhe permitiram, a despeito das adversidades que o curso independente dos acontecimentos  – sua fortuna – lhe reservou, ascender a rei e manter-se como tal. Virtù e Fortuna, duas categorias fundamentais da teoria política de Maquiavel, não estão perpassadas pela moralidade. E isso não porque, frise-se, não reconheça valores morais, mas porque ele não tem em vista “repúblicas e principados que jamais foram vistos e nunca tidos como verdadeiros” (MAQUIAVEL, 1977, XV, 86), mas cidades e pátrias reais, nas quais os homens vivem como vivem e não como deveriam viver segundo os preceitos de filósofos ou clérigos: “Tanta diferença existe entre o modo como se vive e como se deveria viver, que aquele que se preocupar com o que deveria ser feito em vez do que se faz, antes aprende a própria ruína do que a maneira de se conservar” (MAQUIAVEL, 1977, XV, 86).

    Maquiavel não é, portanto, um pensador imoral, ou mesmo amoral, mas um pensador desinteressado do tipo de reino dos fins, para usar a expressão tornada célebre por Kant, a que os normativistas visavam (e visam) com suas teorias. Seu ponto de vista não está orientado a um mundo sobre este mundo; à construção de uma segunda natureza sobre a natureza que de fato adorna os humanos. Ele fala aos que têm de lidar com este mundo e liderar as pessoas que o habitam. É este tipo de objetividade com respeito ao que empiricamente se constata no confronto com as relações políticas que efetivamente existem que empresta à obra política de Maquiavel um caráter científico. Implica também um naturalismo comum às ciências da natureza, assim como um materialismo metodológico, quer dizer, o manter-se rente aos fatos para subir a regras, e não o contrário, tentar impor a eles princípios do que deveria ser o caso.

    A discussão de exemplos, contemporâneos a Maquiavel e retirados das mais bem sucedidas cidades antigas, dá conta dos fatos mediante os quais é possível dar recomendações práticas de como os soberanos podem lidar, a partir de suas próprias qualidades, com as circunstâncias nas quais governam. Daí que as regras de conduta que emergem das análises dos fatos históricos trazidos à baila por Maquiavel no Príncipe e nos Discursos são pragmáticas; têm caráter prudencial e se prestam ao objetivo, inerente a toda posição de comando como pré-requisito para a efetividade de seu exercício, de manter o poder tanto quanto convier ao soberano.

    No fim das contas, Maquiavel faz prescrições. Não, contudo, aquelas de tipo ideal e que deveriam ser seguidas para instaurar uma ordem no mundo que fizesse coincidir valores morais abstratos – racionais, universais, cristãos ou outros de mesma descendência metafísica – com o fluxo causal dos acontecimentos, de sorte que finalmente o ser e o dever ser se encontrassem. Suas recomendações são dadas para ajudar o soberano a afiar seu tino para tomar decisões ad hoc para situações diversas, mas com uma orientação firme: a manutenção da capacidade de continuar a influir efetivamente no curso da história.

    Nesses termos, Maquiavel, dada a perspectiva de onde fala, a verità effetualle, não responde à pergunta sobre o que o soberano deve fazer em geral, com universalidade e necessidade, mas, muito mais modestamente, à pergunta prática sobre como ele pode ascender ao poder e mantê-lo. Isaiah Berlin defende que Maquiavel esposa uma moral pagã, o que explicaria a dificuldade do Ocidente, fundamentalmente platônico e cristão, em absorvê-lo.

    Talvez não se precise concluir tanto. Basta, para se entender suas recomendações prudenciais ao príncipe, que se leve a sério sua despretensão normativa. Ela tem fundamento: sua descrença na possibilidade de falar com utilidade para quem incorpora o poder desde o ponto de vista do dever ser. Se essa posição se deve à adoção consciente de uma moral divergente daquela que é dominante no Ocidente, isso carece de evidências e parece ser uma explicação que toma como imprescindível justamente aquilo que a modernidade, conservando o cristianismo, teria legado aos contemporâneos: um fundamento racional último para uma decisão.

    O fundamento para decisões, nos ensina Maquiavel, não precisa ser metafísico. Pode ser prático, forjado, por exemplo, nos anos de labor diplomático ao longo dos quais, em infindáveis ciclos de tentativa e erro, ele teria entendido que o destino do príncipe depende de sua sorte e qualidades; numa proporção que não se consegue definir de antemão, porque a fortuna o assalta e muda tudo quanto estava antecipando, assim como torna inúteis ou essenciais virtudes que, se bem as pode treinar, são-lhe dadas – num círculo imanente – pela roda da fortuna.

    Bibliografia

    BERLIN, I. (2013). “The Originality of Machavelli”. In Against the Current. Essays in the History of Ideas. (2.ª ed.). Princeton: Princeton University Press.

    MAQUIAVEL, N. (1977). O Príncipe. Trad. T. Guimarães. São Paulo: Hermus.

    MAQUIAVEL, N. (2007). Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes.

    STRAUSS, L. (1958). Thoughts on Machiavelli. Illinois: The Free Press.

    Autor: Adriano Naves de Brito

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