Marx, Karl [Dicionário Global]
Marx, Karl [Dicionário Global]
O dia 5 de maio de 1818 marca no calendário o nascimento de um dos maiores pensadores do século XIX, cuja influência se propaga ainda na atualidade: Karl Marx. Nascido em Trier, na Renânia alemã, o filho de Heinrich Marx e Henriette Pressburg dava início a uma vida errante e profundamente comprometida com a vida, nas suas múltiplas dimensionalidades, e com a humanidade, nas suas mais diversas origens e particularidades. Nas palavras de Jorge Grespan, “apresentar a obra de Karl Marx (1818-1883) parece ser uma tarefa relativamente fácil” (GRESPAN, 2021, 9), uma vez que a sua predisposição assimilativa por parte das classes trabalhadoras, bem como a sua acuidade e atualidade, ainda sobredeterminam o espírito contemporâneo. Não obstante, fazer com que algo se torne simples não implica objetivamente a sua simplificação.
Após iniciar o seu percurso académico na Universidade de Bonn e de o concluir na Universidade de Berlim, onde começa a polemizar com “Jovens Hegelianos” – como Ludwig Feuerbach ou Bruno Bauer –, em torno das conceções da filosofia hegeliana sobre o Estado ou o Direito, Marx inicia uma carreira de jornalista na Gazeta Renana, dirigida por Arnold Ruge, com escritos absolutamente fraturantes e antiabsolutistas, que desagradavam sobremaneira às autoridades germânicas da época. Face ao seu inconformismo e combatividade, é obrigado a exilar-se em Paris no ano de 1843. Segundo José Paulo Netto, Paris marca “um antes e um depois na inteira trajetória de Marx”, ao serem-lhe apresentados “três encontros fundamentais […]: com o proletariado, com a economia política e com Friedrich Engels” (NETTO, 2020, 77-78). Para alguns filósofos marxistas do Estruturalismo francês, como Louis Althusser, Paris significava também um “corte epistemológico” entre o “jovem Marx” e um “Marx maduro”, uma vez que “a partir de 1845, Marx rompe radicalmente com toda a teoria que funde a história e a política sobre uma essência do homem” (ALTHUSSER, 1974, 233). Esta dissociação, caracterizada por György Lukács como “uma invenção do nosso tempo”, pois “a contradição que se procura em sua obra é fictícia” (LUKÁCS, 2020, 30), sinaliza a negação de um suposto humanismo quasi essencialista no “jovem Marx”.
No fio condutor de Althusser, a negação de um humanismo tipicamente marxiano pode indiciar que obras como O Capital. Crítica da Economia Política (1867) ou Para a Crítica da Economia Política (1859), escritas no decorrer da sua “fase matura”, espelhem uma visão mais “estruturalista” dos fenómenos político-sociais, económicos e culturais, em contraposição com um certo idealismo do denominado “jovem Marx”. Ainda assim, como apregoa José Paulo Netto, “O Capital não é apenas a críticas da economia política – é uma emocionada defesa da humanitas” (NETTO, 67, 1976), porquanto o conceito de “humanismo” não é estanque à possibilidade da sua gradual e dialética refundação. Ex nihilo nihil fit.
Ora, apesar do intento de clarificação que, designadamente na obra Para a Questão Judaica (1843), Marx dedica à questão dos “Direitos Humanos” na sua tríplice dimensão orgânica, jurídica e ideológica, tal problemática está longe de assumir uma evidente primazia e centralidade no interior do seu percurso intelectual e revolucionário, assumindo, ao invés, um carácter quase espectral. Ainda assim, tal dificuldade não deve inibir algumas considerações que, a título propedêutico, contribuem para um melhor esclarecimento da matriz que anima o espírito “humanista” do filósofo.
Desde logo, uma questão de relevo se impõe: poder-se-á falar em “humanismo” enquanto conceito operativo e subjetivamente revolucionário em Karl Marx? A resposta a esta pergunta transporta-nos ao ano de 1865, quando Marx é inquirido pelas suas filhas, Jenny e Laura, sobre a sua “máxima favorita” de Terêncio que o pai tanto prezava: “‘nihil humani a me alienum puto’, ‘considero que nada de humano me é estranho’” (BARATA-MOURA, 1998, 149). A negação desse estranhamento é sintomática de um perfil crítico-ontológico relativamente a um “humanismo” disruptivo. É que, para Marx, “a raiz, para o homem, é o próprio homem” (MARX, 2010, 151), e, nesse sentido, uma vez definido esse horizonte concreto e complexo, o “humanismo” não é um “ente” que jaz incólume sob a realidade em que é gerado e onde atua; antes é uma resposta cabal às especificidades do ser, bem como aos constrangimentos que impedem o Homem de o ser na sua totalidade objetiva e emancipada.
O “humanismo” em Karl Marx não irrompe, portanto, de uma abstrata moralidade normativa – e por isso, inelutavelmente, burguesa – gerada no contexto historicamente específico e condicionado em que estava enraizada; antes advém de uma apreensão imanente das problemáticas (políticas, sociais, económicas…) concretas, bem como da raiz estrutural e estruturante que as concebe como tais, enquanto movimento inexorável e superativo das mesmas. Nesse plano, o “humanismo” marxiano releva de uma crítica profunda e não de uma complacência (a)crítica: por um lado ele comporta a noção de superação através do entendimento da realidade fenoménica, ao invés da compreensão da realidade fenoménica através da superação do entendimento; por outro, representa a passagem do abstrato ao concreto, do particular ao universal, mas sem nunca subsumir as idiossincrasias dos primeiros às particularidades dos últimos; em suma, nele se configura uma ontologia materialista de índole dialética, crítica e radical. São bem conhecidas, aliás, as premissas a partir das quais Marx, na obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), afirma que “ser radical é agarrar a coisa pela raiz”, ou ainda “a arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma” (MARX, 2010, 151). Na esteira destas considerações, o “humanismo” em Marx espelha, pois, a procura de uma mundivisão radicalmente nova que postula a emancipação do homem pelo próprio homem.
Por outro lado, e recentrando a atenção na obra Para a Questão Judaica, convém ressalvar que a visão de Marx no tocante aos “direitos” – e mais concretamente na específica aceção de “Direitos do Homem” – é formulada no contexto de um ensaio que procura dar resposta a uma série de artigos publicados por Bruno Bauer em torno da denominada “questão judaica”. Sem nos atermos em demasia à querela que, a propósito, contrapôs os dois filósofos, a tese fundamental dos escritos de Bauer – militantemente imbuído do idealismo hegeliano – interroga e examina as condições de possibilidade da emancipação político-jurídica dos judeus perante um Estado (o alemão) que, pela sua mais ou menos explícita matriz confessional cristã, os privava ideologicamente dos mais elementares direitos cívicos e até existenciais. É nesse sentido que o autor apregoa a tese segundo o qual os judeus deveriam unir-se aos cidadãos alemães na procura de uma garantia plena de liberdade lato sensu, e que essa luta passaria pela superação do Estado confessional (cristão) e pela promoção de um Estado laico, o que irremediavelmente resultaria na deliquescência de todas as religiões e na emancipação político-jurídica de todas os homens perante o misticismo religioso, enquanto óbice fundamental a esse desígnio (FRESU, 2019, 74-75).
Em frontal e nítida dissonância com a abordagem baueriana, Marx contrapõe, por seu turno, que a abolição do confessionalismo, enquanto traço “intrínseco” do Estado moderno, não influi inevitavelmente na superação jurídica e político-ideológica da dimensão religiosa na vida social e política dos cidadãos. Ou seja, a emancipação político-jurídica dos judeus em particular não deveria depender tão-só da génese religiosa do Estado e, por consequência, da sua negação material, mas ao invés deveria decorrer da superação do próprio Estado. Por outras palavras, na conceção de Marx, Bauer limita-se apenas a criticar o confessionalismo sem daí extrair a exigência de criticar a instituição que material e idealisticamente o legitima enquanto tal: o Estado per se. Assim sendo, nos termos em que é exposta, a posição teórica baueriana desemboca, segundo Marx, numa contradição insanável entre emancipação política e emancipação humana: “o limite da emancipação política aparece logo no facto de que o Estado pode libertar-se de uma barreira sem que o homem esteja realmente livre dela, [no facto de] que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, 1997, 73-74).
Sem perder o fio condutor da desconstrução do enredo teórico de Bauer, Marx empreende uma crítica de fundo à noção de “Direitos do Homem” enquanto materialização político-jurídica dessa contradição. De facto, no que ao processo de emancipação humana diz respeito, o pensador alemão assinala uma imperativa passagem do particular (judeus) ao universal (humanidade) cuja viabilidade colapsa num beco sem saída: “nenhum dos chamados direitos do homem vai, portanto, além do homem egoísta […]” (MARX, 1997, 86), motivo pelo qual, reposicionando-se no horizonte teórico do debate sobre a “questão judaica”, Marx encerra a obra sobre o tema em causa, produzindo a desconcertante afirmação de que “a emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade relativamente ao judaísmo” (MARX, 1997, 97). Dito por outras palavras, o salto qualitativo que se opera entre “emancipação política” e “emancipação humana” não se esgota, de acordo com o pensamento marxiano, na dimensionalidade religiosa enquanto deterministicamente singular e abstrata, nem muito menos como postulado de uma só religião, mas numa abrangência universal e concreta de toda a humanidade: a proclamação dos “Direitos do Homem” emerge, ipso facto, como efeito subliminar e diferido dessa clivagem fundamental.
Posto isto, duas considerações podem ser extraídas no que concerne à aplicação prática e à forma jurídica à luz das quais a ideia (traduzida como ideal ou ideário) de “Direitos do Homem” pode ser plasmada. Primeiramente, os “Direitos Humanos” exibem, para Marx, a herança genética do espírito das luzes e, subsequentemente, da Revolução Francesa, correspondendo, por isso, a uma reprodução orgânica, ao nível jurídico-político, das lógicas funcionais da classe burguesa em ascensão e, por via disso, a um instrumento político-jurídico apostado (ideológica e materialmente) em instaurar e assegurar o domínio e os interesses da mesma na estrutura social: com efeito, não há como escapar ao princípio enunciado pelo próprio Karl Marx e seu compagnon de route Friedrich Engels, segundo o qual “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (ENGELS & MARX, 2020, 53). Em segundo lugar, Marx critica não só a abstração, mas sobretudo a subsunção, que dissolvem cada “citoyen” no imenso oceano dos “droits de l’homme”, inibindo-lhe a possibilidade de uma apreensão (auto)consciente e (auto)apropriada de emancipação de todos os homens concretamente oprimidos, e não dos homens como um todo universal discretamente opressivo (MARX, 1997, 90). Mais do que isso, a dissociação – politicamente manuseada e enviesada – entre “homme” e “citoyen”, a que Marx atenta em Para a Questão Judaica, releva de uma iníqua assimetria, pois ao primeiro seriam outorgados os “direitos naturais”, enquanto ao segundo os “direitos do cidadão”, só que, neste caso, na qualidade de “pessoa moral abstrata” (NETTO, 2020, 72).
Os “Direitos Humanos”, para Marx, traduzem, pois, uma materialização particular de emancipação, embora pretendam envergar a roupagem da sua expressão universal. Daí o conflito dialético que se instala entre os interesses particulares das classes dominantes e opressivas, implicitamente contidos nos “droits de l’homme”, e os interesses universais abstratamente projetados sob a forma de “cidadania” numa massa social cuja consciência de si e da sua condição oprimida começava a germinar. Não obstante os “Direitos Humanos” procurarem instaurar essa universalidade emancipadora (política), eles ficam aquém do ensejo de emancipação humana e, portanto, incapazes de garantir ontologicamente a materialização das suas possibilidades realizativas. A explicação que Marx avança para essa perturbante ineficácia reside no facto de “a aplicação prática do direito humano à liberdade é o direito humano à propriedade privada”, isto é, “o direito do interesse próprio” (MARX, 1997, 85). Ora, será justamente no esforço por desconstruir e desmistificar o universalismo dos “Direitos do Homem” – universalismo esse indolor e, portanto, insensível às particularidades concretas e situadas dos seres humanos expostos à contingência da sua condição – que assentará o gume contundente da crítica de Marx.
“De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (MARX, 2008, 17): eis o mote decisivo do que se poderia condensar no humanismo marxiano, plasmado para conferir sentido denso e concreto ao devir de uma (nova) sociedade pós-capitalista. Um humanismo que encara cada indivíduo munido de uma irredutível e complexa subjetividade – ou seja determinado pela singularidade das “suas capacidades” pessoais – sem, contudo, o arredar das especificidades próprias da sua totalidade objetiva e vivencial – ou seja exposto à premência das “suas necessidades” em face do e com o “todo”. Dificilmente se transpõe o hiato que bipolariza a tensão entre universal e particular. A forma como o filósofo prussiano lida com esse desafio-limite da razão explicita-se em larga medida na sua proposta de superação de um humanismo abstrato e atemporal, para um humanismo radicalmente comprometido com a realização de um futuro concreto, cujo processualismo histórico e revolucionário só fará sentido sempre que e onde quer que a emancipação de cada ser humano esteja ainda por fazer, ou, mesmo quando feita, desafiada a refazer-se sob novas perspetivas.
A revisitação de um pensador como Karl Marx torna-se, assim, num certo sentido, imprescindível: não só porque incessantes são as assimetrias e desequilíbrios geradores de injustiça, mas também porque recorrentes são as estruturas que impõem a cada ser humano condições que ele não consciencializou, apropriou e escolheu, procurando mantê-lo sob o efeito de mecanismos e narrativas mais ou menos alienantes de privação individual, opressão social, subjugação política e exploração económica.
Bibliografia
ALTHUSSER, L. (1974). Pour Marx. Paris: François Maspero.
BARATA-MOURA, J. (1998). Materialismo e Subjectividade – Estudos em torno de Marx. Lisboa: Edições Avante!
ENGELS, F. & MARX, K. (2020). A Ideologia Alemã. Lisboa: Edições Avante!
FRESU, G. (2019). “A questão judaica: A transição do jovem Marx da crítica filosófica à crítica economia política”. Revista Ideação, 39, 73-91.
GRESPAN, J. (2021). Marx: Uma Introdução. São Paulo: Boitempo.
LUKÁCS, G. (2020). “Lukács: Retorno ao concreto”. In R. V. Fortes (org.). Essenciais são os Livros Não Escritos: Últimas Entrevistas (1966-1971). São Paulo: Boitempo.
MARX, K. (1997). Para a Questão Judaica. Lisboa: Edições Avante!
MARX, K. (2008). “Crítica do Programa de Gotha”. In F. Engels & K. Marx. Marx-Engels: Obras Escolhidas. (t. III). Lisboa: Edições Avante!
MARX, K. (2010). Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.
NETTO, J. P. (2020). Karl Marx: Uma Biografia. São Paulo: Boitempo.
NETTO, J. P. (1978). Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova.
Autor: António de Sousa Amaral