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    Memória [Dicionário Global]

    No contexto da lei de direitos humanos, a memória deve ser entendida não como individual, mas como memória coletiva, isto é, uma memória social, englobando as perceções que um grupo tem do passado, que não são criadas individualmente, mas, ao invés disso, dentro da coletividade. Sendo que uma pessoa pode pertencer a um grande número de grupos em simultâneo (família, comunidade religiosa, escola, universidade, cidade, nação), ela tem várias memórias coletivas a funcionar em diferentes níveis ao mesmo tempo. É importante notar que memórias coletivas não operam num vácuo, e são influenciadas de propósito, não apenas a nível local, mas também a nível nacional e, hoje, até mesmo global, no processo que é chamado de “políticas da memória”. Este envolve o uso de certos objetos culturais, como, por exemplo, monumentos, nomes de ruas, ou, de forma mais geral, a herança cultural, elementos que são usados para fomentar uma versão específica do passado e, com ela, certas memórias coletivas. As leis têm um papel decisivo nas políticas da memória, sendo um dos instrumentos pelos quais esta é implementada, por exemplo, ao decidir-se que objetos da herança cultural devem ser protegidos e quais podem ser removidos, recontextualizados ou mesmo destruídos (SADOWSKI, 2020, 211; 220-221).

    A memória coletiva foi introduzida como conceito, pela primeira vez, nos anos de 1920, por Maurice Halbwachs, na esteira de Henri Bergson e Émile Durkheim. Com o passar do tempo, o conceito foi desenvolvido, redesenvolvido e criticado, permanecendo contudo um ponto de referência principal nas Ciências Sociais, usado para explicar diferentes mecanismos do funcionamento da memória coletiva em diferentes disciplinas. Como tal, a sua relação com a lei tem vindo a ser reconhecida, não apenas no já acima referido contexto das políticas da memória, mas também de uma forma mais ampla. Tem sido sustentado que o julgamento, o ponto central da justiça criminal, pode ser considerado um criador decisivo da memória coletiva. Por meio dele, uma narrativa relativamente a certos eventos é considerada errada, e outra, correta, estabelecendo-se assim uma narrativa do passado santificada por lei.

    O julgamento, enquanto formador e desagregador de memórias, foi uma das forças motrizes subjacentes aos Julgamentos de Nuremberga e Tóquio. No entanto, constata-se que a sua realização traz algumas desvantagens, visto que, tratando-se de julgamentos que seguem violações generalizadas de direitos humanos e atrocidades em massa, pode suceder que as experiências e memórias das vítimas se percam no meio dos procedimentos legais, bem como resultarem na atribuição de culpa coletiva a indivíduos e, como tal, na expurgação da sociedade como um todo. Mais tarde, tribunais criminais internacionais tentaram aligeirar algumas destas questões e, além disso, outras instituições legais sem julgamento têm sido estabelecidas para lidar com crimes generalizados do passado, ocorridos após uma mudança de regime, principalmente as comissões de verdade (e reconciliação), intimamente ligadas à lei de direitos humanos. Outra instituição legal que se encontra na encruzilhada dos direitos humanos e memória coletiva é a da lei da memória, ou seja, uma lei com a tarefa de proteger uma certa memória coletiva da distorção. Adiante apresento três instituições com maior detalhe (SADOWSKI, 2017, 265-266; 277-280)

    A sua chave de entendimento consiste, precisamente, no aprofundamento da relação entre direitos humanos e memória coletiva, que antecede o nascimento do movimento de direitos humanos contemporâneo. Com efeito, foi com base na memória coletiva dos meios da lei disponíveis como forma de obter reparação que ambos os direitos, humanos e civis, contemporâneos foram estabelecidos (TILLY, 1994, 249). Contudo, foi desde a segunda metade do XX que as intersecções diretas da lei dos direitos humanos e da memória coletiva se tornaram particularmente notáveis, com a memória da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais, e das suas consequências, como grande força motriz por detrás da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e da Convenção do Genocídio das Nações Unidas de 1948 (HUYSSEN, 2011, 608). Até hoje, à medida que a lei dos direitos humanos se expande, a sua validação ainda permanece por meio da memória coletiva das atrocidades do passado (TILLY, 1994, 244).

    Como mencionado acima, de forma geral, os julgamentos têm um papel crucial na criação da memória coletiva, um papel que se torna particularmente visível no caso de julgamentos que envolvem abusos dos direitos humanos: é apenas graças à memória coletiva de uma atrocidade do passado que tal julgamento, como qualquer outro julgamento, que até um certo grau funciona na abstração dos eventos em questão, pode reter a sua habilidade de ser um dos maiores fatores de processos de justiça de transição que seguem mudanças de regime, papel este que também é amplificado pelas atividades da sociedade civil na área da memória, podendo elas próprias ser a força motriz por detrás das acusações (HUYSSEN, 2011, 612 e 617).

    A “justiça de transição” é um conceito intimamente ligado a ambas as questões, da memória coletiva – que, levando consigo as memórias de atrocidades passadas, as coloca, como seu fundamento, na base da autoridade do novo regime (SADOWSKI, 2017, 286) – e dos direitos humanos – visto que estes também derivam das atrocidades do século XX, verificando-se as primeiras tentativas de os conceber aquando da convocação dos mencionados Julgamentos de Nuremberga (GIRELLI, 2017, 293). A justiça de transição é usada para descrever um conjunto de mecanismos socio-legais que seguem e estão intrinsecamente ligados aos processos que rodeiam transições de um regime político para outro. Estes processos, entre outras coisas, envolvem a necessidade de um tipo de respostas para com o recente e difícil passado, por meio das quais os mecanismos de justiça de transição entram em ação, sendo um dos seus objetivos principais a aplicação da justiça às vítimas do regime prévio (KAMINSKI et al., 2006, 295), tomando medidas essenciais contra a impunidade (GIRELLI, 2017, 3).

    A justiça de transição alcança os seus objetivos por intermédio do trabalho das comissões de verdade (e reconciliação), entre outros meios. Estas são estabelecidas como medidas temporárias extrajudiciais ad hoc, implementadas em resposta a um período particular de atrocidades ocorridas na sociedade em questão, onde acusações em grande escala não são possíveis. Apesar de serem criadas no Estado, por um órgão deste Estado, ou, com menor frequência, uma organização internacional, elas são semi-independentes e a sua principal função é descobrir (e trazer ao conhecimento público, à narrativa oficial e, em última instância, à memória coletiva) a verdade sobre os eventos investigados, as suas causas e consequências, fornecendo finalmente um relatório e recomendações oficiais às autoridades e à sociedade em geral, e, potencialmente (dependendo do seu mandato), também a reconciliação (FREEMAN, 2006, 11).

    Apesar das já referidas desvantagens em realizar julgamentos relativamente a assuntos da memória, em alguns casos, os tribunais internacionais estão mais bem equipados para resolver os assuntos relativos a atrocidades do passado do que as comissões de verdade (e reconciliação), por exemplo, nos casos em que as autoridades locais não são capazes, ou não estão dispostas, a levar a cabo procedimentos independentes. Em tais instâncias, os tribunais internacionais desempenham um importante papel na criação da memória coletiva numa escala global – julgamentos ocorridos perante eles podem ser considerados intersecções extraordinárias da lei e da memória coletiva, abarcando uma categoria especial de casos ouvidos perante eles (grandes violações de direitos humanos e lei internacional), jurisdição restritiva, um certo nível de impermeabilidade a narrativas oficiais de países individuais (mas também a falta de capacidade para as mudar, na maioria dos casos), e, em algumas instâncias, desempenham um papel decisivo no processo de reconciliação; tudo isto levando à criação ou à transformação das memórias coletivas, que são “esculpidas” nos julgamentos dos tribunais, tornando-se uma grande parte delas memórias coletivas globais instantâneas (VANNEAU, 2011, 135).

    A última das três instituições da lei de direitos humanos que interage com a memória coletiva é a das leis da memória. Estas dizem respeito aos atos jurídicos que têm como objetivo principal um impacto direto na memória coletiva, através da criação de uma narrativa oficial relativamente a eventos passados. Em algumas instâncias, essa narrativa é simplesmente proclamada, como no caso das resoluções parlamentares (legislação da memória não-punitiva); em outras, as memórias coletivas legalmente induzidas são protegidas pela lei criminal (legislação da memória punitiva). Em ambos os casos, o seu principal objetivo é a proteção da narrativa oficial da coletividade – geralmente a de uma nação – e, como tal, a sua memória coletiva (daí o nome) (SOROKA & KRAWATZEK, 2019, 157).

    Esta proteção concedida pelas leis da memória a certas memórias está diretamente ligada com a questão do direito à memória, de certa forma, o derradeiro ponto de intersecção entre a lei de direitos humanos e a memória coletiva. Embora a sua existência seja questionada por alguns investigadores como não sendo aplicável social ou legalmente (HUYSSEN, 2011, 612), tem sido argumentado que certas dimensões de um direito à memória já existem nos congressos internacionais da lei de direitos humanos, tais como: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujas várias provisões, incluindo a liberdade de participar na vida cultural da comunidade, não podem ser “usufruídas ao máximo sem o acesso à memória coletiva”; a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que diz igualmente respeito ao dano mental cometido sobre os membros de um grupo, podendo este incluir abusos sobre a memória coletiva; o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais de 1966, a Declaração do Progresso e Desenvolvimento Social de 1969 e a Declaração do Direito ao Desenvolvimento de 1986 – que confirmam os múltiplos direitos ligados à memória coletiva; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1994, que se foca na proteção dos direitos das minorias, também muitas vezes ligado à proteção de facto da memória coletiva; a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais de 2005, que exige a instalação de ambientes seguros à criação de cultura; e a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, que lhes concede a proteção da sua memória coletiva (embora ainda não a encarando como tal) (LEE, 2010, 8-9).

    Mais recentemente, o direito à memória tem sido proposto como um direito Janus, de duas faces, composto pelo direito à evocação (o direito de recordar e ser recordado) e o direito a deslembrar (o direito a esquecer e a ser esquecido). Em princípio, o direito à memória pode estar associado ao potencial de transgressão das memórias – e direitos – pertencentes a certos grupos em sociedade por parte de outros grupos. Tal direito quadripartido concederia proteção para que determinadas memórias coletivas estivessem presentes e, em alguns casos, retornassem à sua presença no âmbito público e narrativas públicas, enquanto outras poderiam ter de ser relegadas ao esquecimento, ou até mesmo removidas, dependendo da política de memória do país em questão, o que, em si, depende de vários fatores, incluindo acordos de paz pós-transicionais com os membros do regime anterior, por exemplo, amnistias (SADOWSKI, 2024, 164-178).

    Vale ressaltar que o que se tem tornado evidente no estudo de países a passar por mudanças de regime nos últimos anos é que houve não apenas uma maior vontade de trazer os autores de violações de direitos humanos à justiça, mas, ao mesmo tempo, estes processos começaram a envolver uma variedade de diferentes mecanismos internacionais da lei de direitos humanos empregados simultaneamente, o que é dito tanto minimizar a possibilidade de atrocidades futuras como promover a reconciliação (SADOWSKI, 2017, 286-297). Este fenómeno tem tido um impacto direto e visível na memória coletiva, à medida que, num conjunto de países que já passaram por processos de justiça transitória há bastante tempo, se tem verificado a reiniciação destes processos, mais uma vez, alguns anos depois, no que tem sido chamada a segunda vaga de descomunização e descolonização, na segunda década do século XXI, alterando e removendo do âmbito público certos elementos da herança cultural e usando meios legais como base para esta mudança (SADOWSKI, 2020, 219-231).

    Bibliografia

    FREEMAN, M. (2006). Truth Commissions and Procedural Fairness. Cambridge/New York, NY: Cambridge University Press.

    GIRELLI, G. (2017). Understanding Transitional Justice. A Struggle for Peace, Reconciliation, and Rebuilding. Cham: Palgrave Macmillan.

    HUYSSEN, A. (2011). “International Human Rights and the Politics of Memory: Limits and Challenges”. Criticism, 53 (4), 607-624.

    KAMINSKI, M. et al. (2006). “Normative and Strategic Aspects of Transitional Justice”. Journal of Conflict Resolution, 50 (3), 295-302.

    LEE, Ph. (2010). “Towards a Right to Memory”. Media Development, LVII (2), 3-10.

    SADOWSKI, M. M. (2017). “Law and Memory: The Unobvious Relationship”. Warsaw University Law Review, 16 (2), 262-290.

    SADOWSKI, M. M. (2020). “City as a Locus of Collective Memory. Streets, Monuments and Human Rights”. Zeitschrift für Rechtssoziologie – The German Journal of Law and Society, 40 (1-2), 209-240.

    SADOWSKI, M. M. (2024). Intersections of Law and Memory. Influencing Perceptions of the Past. Oxon: Routledge.

    SOROKA, G. & KRAWATZEK, F. (2019). “Nationalism, Democracy, and Memory Laws”. Journal of Democracy, 30 (2), 157-171.

    TILLY, C. (1994). “Afterword: Political Memories in Space and Time”. In J. Boyarin & C. Tilly (eds.). Remapping Memory: The Politics of TimeSpace (241-256). Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.

    VANNEAU, V. (2011). “Le tribunal pénal international doit-il faire l’événement? Ou les paradoxes d’une Justice pour l’Histoire”. Sociétés & Représentations, 32, 135-153.

    Autor: Mirosław M. Sadowski

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