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    Mendes, Aristides de Sousa

    Aristides de Sousa Mendes nasceu a 19 de julho de 1885 na Casa (de família) do Aido, em Cabanas (a toponímia foi posteriormente alterada para Cabanas de Viriato), concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu. Aristides e o seu irmão César de Sousa Mendes partilharam uma gestação gemelar, sendo que este último nasceu ainda no dia anterior, sendo, por isso, mais velho. A ambos os irmãos juntar-se-á, anos mais tarde, José Paulo de Sousa Mendes, irmão mais novo.

    A ascendência de Aristides de Sousa Mendes provém da aristocracia portuguesa. O pai, José de Sousa Mendes, juiz no Tribunal da Relação de Coimbra, descende do secretário pessoal do Rei D. Afonso VI, e a mãe, Maria Angelina do Amaral e Abranches, da Casa de Midões, uma casa de tradição liberal. Não obstante, as raízes familiares são monárquicas e conservadoras. Os três irmãos cresceram na casa de família em Aveiro, tendo frequentado a escola em Mangualde.

    O percurso académico de Aristides, sempre a par com o seu irmão César, termina em 1907, depois de concluir a licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nesse mesmo ano, contrai matrimónio com a sua prima direita, Maria Angelina Coelho de Sousa, com quem virá a ter 14 filhos. Em 1910, ano da Implantação da República, ambos os irmãos enveredam pela carreira diplomática, durando a de Aristides de Sousa Mendes cerca de 30 anos.

    De Demerara (1910) a Zanzibar (1911), passando por Curitiba e Porto Alegre (1918), São Francisco (1920), Antuérpia (1929) e Bordéus (1938), a carreira diplomática de Aristides de Sousa Mendes foi pautada por uma rede de contactos e relações, estabelecidos com cidadãos nacionais e estrangeiros com quem se cruzava na diáspora, que lhe valeu momentos de grande valorização pessoal, além de ser uma verdadeira panaceia para as situações mais duras vividas em termos de carreira consular.

    Em 1938, a partir do n.º 14 do Quai Louis XVIII, em Bordéus, a recém-instalada família Sousa Mendes assiste ao avanço das tropas alemãs de Hitler. Aristides de Sousa Mendes acabara de ser nomeado cônsul-geral. Enquanto a Alemanha tentava, dificilmente, reorganizar-se depois da Primeira Guerra Mundial, a braços com a obrigatoriedade no pagamento de indemnizações a título de prejuízos de guerra de mais de 30 mil milhões de marcos aos países aliados da parte contrária, a Europa, em estado de euforia pós-guerra, entra nos “loucos anos 20”, período conhecido pelos excessos nos comportamentos e consumos, reflexos de um florescimento económico que se fazia sentir pela restante Europa. A Grande Depressão, em 1929, fechou a década da pior forma possível, e o resultado do crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque atingiu os países industrializados que procuravam ainda equilibrar-se no período pós-guerra, sendo a Alemanha um dos países mais atingidos na Europa. A carestia, fruto da depressão económica, e uma população descontente serão a génese para a cada vez maior adesão a discursos populistas de pendor nacionalista. Na década de 1930, a Europa assiste, assim, à ascensão de regimes totalitários. A ascensão de Hitler no panorama político alemão, primeiro como chanceler e logo depois como Führer, muito se deveu aos seus discursos inflamados, cuja mensagem passava pelo enaltecimento da raça germânica como forma de recuperar a dignidade perdida no Tratado de Versalhes (1919), trilhando um caminho de absoluto domínio sobre todos os povos.

    Portugal não foge à tendência política da Europa. António de Oliveira Salazar torna-se chefe de governo, inaugurando em 1933 o Estado Novo. No mesmo ano, é criada a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a polícia política, organismo responsável pelo controlo e fiscalização de fronteiras (entradas e saídas) e cidadãos estrangeiros. Em 1935, este organismo adverte o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) para a necessidade de se implementar medidas mais rigorosas na atribuição de vistos a cidadãos polacos, russos, judeus e apátridas. Os russos, em razão da Revolução Bolchevique (1917), eram tidos como grande ameaça ao regime do Estado Novo.

    Quando estala a Segunda Guerra Mundial, em 1939, as relações diplomáticas entre Portugal e a Inglaterra haviam esfriado pelo apoio que o Estado Novo tinha dado à fação nacionalista na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), situação que se vem a agravar quando se percebe internacionalmente que, apesar da neutralidade declarada por Portugal no conflito mundial, o país é um dos principais produtores industriais de armamento e material de comunicação, que exporta para a Alemanha.

    A 1 de setembro de 1939, Hitler invade a Polónia, e o fluxo migratório que já existia desde a anexação da Áustria (1938) ganha um volume de que não havia memória: milhões de pessoas iniciam um êxodo, fugindo à ameaça nazi. É este o ambiente que se abate sobre o Consulado de Bordéus e sobre pessoa de Aristides de Sousa Mendes. Havendo recebido, a 13 de novembro desse mesmo ano, a “Circular 14”, o cônsul depara-se com ordens expressas de redução severa e drástica à receção em Portugal de cidadãos estrangeiros, desta vez com base em segregação racial, religiosa e política: judeus, apátridas, detentores de passaportes Nansen e russos. A concessão de vistos e passaportes estava absolutamente dependente da autorização da PVDE, depois de feito o pedido aos serviços consulares espalhados pela Europa. Aristides de Sousa Mendes, ainda que profundamente incomodado com o conteúdo da “Circular 14”, começa por obedecer durante os primeiros dias; a partir de Bordéus, vai pedindo as autorizações necessárias à PVDE, em Lisboa. As demoras na resposta e, muitas vezes, o silêncio propositado tornam-se insustentáveis, e o cônsul, diariamente confrontado com o fluxo humano que solicitava vistos no Consulado e com a miséria humana que se adensava, começa a emitir vistos e até mesmo passaportes portugueses a quem a ele recorresse.

    Já depois da entrada das tropas alemãs em Paris, a 13 de junho de 1940, a recusa pela PVDE da emissão de vistos a 30 pessoas – onde se incluía o rabino Jacob Kruger, amigo pessoal de Aristides de Sousa Mendes – foi o ponto de viragem na forma como o cônsul passou a encarar a emissão de vistos. Se até aí, por norma, baseava a emissão dos vistos nos pedidos feitos a Portugal, depois de um período de isolamento e de grande tumulto emocional, Aristides de Sousa Mendes, a 16 de junho, assume a concessão de vistos de forma indiscriminada, independentemente da nacionalidade, raça e religião de quem solicitasse o documento. O ritmo de trabalho passou a ser alucinante, e escasseava o tempo de descanso; afinal, só o cônsul podia assinar os vistos. Congregou o maior número de ajudas possível para estampilhagem e junção de documentos. Funcionários do Consulado, familiares e até o rabino Kruger participaram em jornadas de trabalho que rapidamente fizeram esgotar os livros de assento de serviço, e deixaram de ser cobrados emolumentos pela concessão de vistos.

    A 20 de junho, parte para Baiona, onde se diz ter assinado vistos durante três dias e duas noites de forma ininterrupta. O MNE, alertado da situação anormal, crê-se, pelo cônsul de Portugal em Baiona, envia ao local Armando Lopo Semeão (MNE), acompanhado do embaixador de Portugal em Madrid, Teotónio Pereira, com a missão de demover o cônsul Aristides de Sousa Mendes. O cônsul recusa-se a obedecer e é feito um relatório da reunião, que é lido por Salazar. A 23 de junho, Aristides de Sousa Mendes é exonerado do cargo de cônsul e proibido de emitir vistos. Sendo-lhe concedida permissão para ir a Bordéus reunir os seus pertences, de modo a regressar a Lisboa, consegue ainda escoltar um grupo de refugiados a um posto de controlo fronteiriço antes da comunicação da sua exoneração, tendo todos conseguido atravessar a fronteira com os vistos por si emitidos. Com a precipitação do processo de concessão, os vistos deixaram de ser documentos emitidos nos passaportes: em simples folhas de papel, ou até em páginas de jornais avulso, o cônsul deixou a sua assinatura autorizando o trânsito ao seu portador.

    Em julho de 1940, já instalado na Casa do Passal, em Cabanas, Aristides de Sousa Mendes toma conhecimento da instrução de acusação contra si. Francisco de Paula Brito Júnior (MNE) é encarregado de redigir o documento, Pedro Lemos de Tovar apensa uma série de queixas registadas contra o cônsul e Salazar manda iniciar o inquérito. São arroladas três testemunhas de acusação: capitão Agostinho Lourenço (chefe da Polícia Política), Armando Lopo Semeão e o embaixador Teotónio Pereira. Em agosto de 1940, é apresentado um relatório ao Conselho Disciplinar. Aristides de Sousa Mendes é acusado de desobediência, premeditação, reincidência e acumulação de infrações; propunha-se um a seis meses de suspensão de serviço. Em outubro, o conde de Tovar propõe uma descida de categoria profissional, que o Conselho Disciplinar aprova. Salazar toma o assunto em mãos e condena Aristides de Sousa Mendes a um ano de suspensão, auferindo metade do vencimento. Findo esse ano, seria aposentado definitivamente. Aristides tinha 55 anos e 13 filhos.

    Nos anos que se seguiram, o seu advogado, Adelino da Palma Carlos, entrepôs vários recursos alegando sempre o imperativo moral e os princípios da solidariedade que guiaram Aristides de Sousa Mendes em todas as suas ações. Todos os recursos foram rejeitados tendo por base a importância da obediência a uma estrutura hierárquica, que, atestadamente, o acusado não observou. A Assembleia Nacional e o presidente do Conselho receberam cartas pessoais de Aristides de Sousa Mendes solicitando a revisão da penalização a que foi sujeito. Sem resposta.

    Em 1948, Aristides perde a sua mulher, Angelina, e em 1949 contrai matrimónio com Andrée Cibial, com quem havia tido uma filha, Maria, anos antes. Em francas dificuldades financeiras desde a aposentação compulsiva a que fora sujeito, o recheio da Casa do Passal foi sendo alienado para se conseguir fazer face às despesas de Aristides de Sousa Mendes e de toda a família que de si dependia. Depois de alguns episódios de AVC e de uma intervenção cirúrgica, Aristides de Sousa Mendes acaba por morrer a 3 de abril de 1954.

    As ações praticadas por Aristides de Sousa Mendes, que se desenrolaram por cerca de uma semana, ficaram esquecidas pelas instituições durante décadas. Restou a descendência de Aristides, os que beneficiaram da sua ajuda – crê-se que mais de trinta mil pessoas – e os seus descendentes para reabilitar a imagem do falecido ex-cônsul. Em 1961, por iniciativa do Yad Vashem – Alta Autoridade para o Holocausto Judeu –, foi plantada, em Israel, uma árvore em honra de Aristides de Sousa Mendes, considerando-o “justo entre as nações”, e em 1966 foi cunhada uma moeda comemorativa. Em 1987, recebeu o título póstumo de cidadão honorário de Jerusalém.

    No ano da entrada de Portugal na CEE, em 1986, os descendentes de Aristides de Sousa Mendes residentes nos Estados Unidos da América, com o patrocínio do congressista luso-americano Tony Coelho, publicaram no New York Times uma petição às instituições portuguesas no sentido da reabilitação da memória do ex-cônsul. Nesse mesmo ano, foi presidida pelo Presidente da República Mário Soares a cerimónia oficial de reabilitação de Aristides de Sousa Mendes na Embaixada de Portugal em Washington, tendo-lhe sido atribuída a Ordem da Liberdade e, anos mais tarde, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.

    Na sequência da reabilitação da memória e ação de Aristides Sousa Mendes, começou a ser feita justiça à sua ação: várias ruas, praças e parques infantis têm o seu nome; foram feitos filmes, documentários, peças de teatro e obras musicais inspirados em si; a estação de metro Parque, em Lisboa, destaca uma medalha de bronze com o seu nome, criada por João Cutileiro; um avião da TAP voa alto batizado com o seu nome; foram concebidos bustos e estátuas em sua homenagem; o programa televisivo da RTP Os Grandes Portugueses colocou-o, em 2007, em terceiro lugar no pódio; e existe uma mata plantada com dez mil árvores em sua memória. O processo de requalificação e musealização da Casa do Passal encontra-se aprovado, e espera-se que este projeto venha a ser um valioso testemunho do contributo que Aristides de Sousa Mendes deixou no âmbito dos direitos humanos.

    Bibliografia

    Impressa

    AFONSO, R. (1995). Um Homem Bom: Aristides de Sousa Mendes, o “Wallenberg Português”. Lisboa: Caminho.

    FRALON, J.-A. (2007). Aristides de Sousa Mendes: Um Herói Português. Trad. S. Barata. Lisboa: Presença.

    MACIEIRA, M. da C. A. L. (2021). A Questão Judaica no Portugal Salazarista: Portugal no Horizonte dos Judeus durante a Segunda Guerra Mundial: Contributo para Uma Avaliação. Dissertação de Mestrado. Universidade de Lisboa.

    MENDES, A. M. S. (2021). Aristides de Sousa Mendes – Memórias de Um Neto. Lisboa: Edições Saída de Emergência.

    NINHOS, C. (2021). O Essencial sobre Aristides de Sousa Mendes. Lisboa: INCM.

    PIMENTEL, I. (2006). Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial: Em Fuga de Hitler e do Holocausto. Lisboa: Esfera dos Livros.

    SCHÄFER, A. (2002). Portugal e os Refugiados Judeus Provenientes do Território Alemão (1933-1940). Dissertação de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa.

     

    Digital

    FUNDAÇÃO ARISTIDES DE SOUSA MENDES, https://fundacaoaristidesdesousamendes.pt (acedido a 12.09 2022).

    INSTITUTO DIPLOMÁTICO/MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS (2013). “Exposição documental Vidas Poupadas. A acção de três diplomatas portugueses na II Guerra Mundial – Aristides de Sousa Mendes”, https://vidaspoupadas.idiplomatico.pt/aristides-de-sousa-mendes/ (acedido a 12.09 2022).

    YAD VASHEM – THE WORLD HOLOCAUST REMEMBRANCE CENTER, www.yadvashem.org (acedido a 12.09 2022).

     

    Filmografia

    “O Cônsul de Bordéus”, um filme de Francisco Manso e João Correa, 2011, estreia nacional datada de 08.11.2012.

    “Aristides de Sousa Mendes, O Cônsul Injustiçado”, documentário RTP, autoria de Diana Adringa, realizado por Teresa Olga, 1992.

     

    Autora: Susana Campos Rebocho

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