Migrações [Dicionário Global]
Migrações [Dicionário Global]
As migrações, i.e., a saída de pessoas dos locais onde vivem, ou de que são nacionais, para procurar outros locais de residência, são inerentes ao ser humano, que sempre buscou lugares onde poderia encontrar melhores condições de vida. Quando a Paz de Vestefália, de 1648, marcou de forma perene a ideia do Estado moderno, isso não teve um impacto significativo na mobilidade livre de pessoas, até então praticada.
De facto, a ideia de uma regulamentação sistemática e coerente do fenómeno migratório é relativamente recente. A Europa das comunas conhecia a liberdade de circulação, pelo que a ideia de uma regulamentação sistemática dos movimentos de pessoas não tinha cabimento. Esta liberdade continuou a ser amplamente praticada sob o nome de direito de comunicação e foi teorizada por diversos autores, como Francisco de Vitória, no seu De Indis, ou Hugo Grócio, no seu De Jure Belli ac Pacis. Visava-se não só legitimar a livre circulação para o novo mundo, como ainda facilitar o comércio entre as comunidades na Europa. Estas ideias proliferaram, tendo recebido, de alguma forma, o apoio dos filósofos oitocentistas do Direito Natural. Neste particular, importa sublinhar o ensaio sobre a Paz Perpétua, de Immanuel Kant, no qual este defendeu o reconhecimento de um dever de hospitalidade por parte do Estado face a estrangeiros.
As primeiras ideias referentes ao controlo da entrada e permanência de estrangeiros nos territórios europeus surgiram de forma muito fragmentada. O primeiro instrumento jurídico terá coincidido com a lei francesa do passaporte, de 1797 (ROSENBERG, 2006, 23). A prática estendeu-se a outros países europeus, uma vez que Napoleão a impunha nos territórios que ocupava. Em Portugal, encontram-se referências a controlos administrativos de estrangeiros no Código Administrativo a partir de 1842.
Foi apenas com a doutrina norte-americana da plenary power, afirmada pelo Supreme Court dos Estados Unidos da América nos finais do século XIX, que se consagrou juridicamente o entendimento de que os Estados possuíam um poder soberano destinado a controlar a entrada e permanência de migrantes no território. No célebre caso Chinese Exclusion, de 1889, este tribunal considerou que o Estado detinha um poder absoluto e ilimitado de excluir ou afastar migrantes do território, sendo o mesmo inerente à soberania de qualquer nação e, por isso, independente de qualquer previsão expressa. A Europa recebeu esta ideia, fazendo com que o século XX testemunhasse a generalização dos controlos sistemáticos de entrada e permanência de estrangeiros nos territórios.
Alguns autores referem que a era do controlo das migrações na Europa foi inaugurada com a Lei de Imigração do Reino Unido de 1905, destinada a restringir a entrada no país dos judeus do Leste da Europa (CHÉTAIL, 2014, 31). Por seu turno, as autorizações de imigração para efeitos de trabalho foram introduzidas pela primeira vez na Prússia, em 1907. Mas terá sido a partir da Primeira Guerra Mundial que o postulado soberano de admissão dos estrangeiros foi erigido em verdadeiro paradigma na Europa. Ao mesmo tempo, a comunidade internacional despertava para a questão dos refugiados, em 1922, com o chamado “Passaporte Nansen”, na sequência do acordo firmado em Genebra destinado à proteção de refugiados russos, ao qual se seguiram vários instrumentos tendentes à proteção de determinados grupos de pessoas, como os arménios provenientes da Turquia (1926). Estes documentos lançaram as bases para o princípio fundamental do estatuto dos refugiados: a proibição de repulsão.
A Segunda Grande Guerra trouxe consigo a circulação de um elevado número de migrantes. Ao mesmo tempo, a instabilidade política e económica, a suspeição reinante entre os Estados, a vigilância sobre os desertores e a espionagem, entre outras razões, criaram a necessidade de reforçar o controlo das fronteiras (HOLLIFIELD, 2007, 62). No pós-Guerra encontrava-se já, pois, totalmente generalizada a prática dos controlos migratórios. Ainda assim, nesse período, não se adotou propriamente uma perspetiva restritiva das migrações. Muito pelo contrário, os Estados europeus, desejosos de iniciar a reconstrução dos seus territórios, abriram as fronteiras aos trabalhadores migrantes. Deu-se assim início àquilo que, mais tarde, viria a ser a “política de imigração”: a entrada de estrangeiros no território estadual passou a ser perspetivada como uma estratégia alargada colocada ao serviço dos fins do Estado. Ao mesmo tempo, foram também muitos os que abriram as suas portas para receber com dignidade os perseguidos nos seus países de origem.
Por outro lado, o período do pós-Segunda Guerra foi também marcado pelo surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, determinante para fundamentar o reconhecimento de direitos aos migrantes, já que os instrumentos em causa assentavam no princípio da universalidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, veio, inclusivamente, prever o direito de todos procurarem e beneficiarem do direito de asilo. A consagração deste direito levanta ainda muitas dúvidas no que toca a saber se se trata de um direito do indivíduo ou de um direito do Estado em conceder asilo soberanamente. No entanto, inserindo-se este direito num documento destinado a proteger o indivíduo, esta última leitura não parece fazer sentido.
Na época, foi ainda assinada a Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 1951, que ainda hoje corresponde ao instrumento jurídico central do direito de asilo. A Convenção adota uma noção de “refugiado” universal e, posteriormente ao Protocolo de Nova Iorque, de 1967, intemporal, por deixar de estar ligada à proteção de pessoas na sequência de um conflito concreto. Como se sabe, esta Convenção é ainda considerada o instrumento central no Direito Internacional dos Refugiados, por ser aquele que define quem pode ser considerado refugiado, através de uma formulação genérica e universal, independentemente da pertença a um grupo predeterminado, e por garantir um estatuto jurídico a essas pessoas. Nos termos do seu art. 1.º, “refugiado” é o nacional de um país terceiro que, receando, com razão, ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a um determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país. A Convenção consagra ainda a já mencionada “pedra basilar” do sistema de proteção de refugiados: a proibição de repulsão, que constitui o direito humano basilar e nuclear em matéria de imigração.
A assinatura e entrada em vigor da Convenção de Genebra veio consagrar a ideia de que alguns migrantes poderiam clamar um direito a permanecer no território de um Estado que não fosse o da sua nacionalidade. Assim, ela é, sem dúvida, um instrumento central para a sedimentação da ideia de que alguns migrantes necessitam de proteção internacional conferida por outros Estados. Porém, ao mesmo tempo, esta Convenção veio representar uma revolução no mundo das migrações: este passou a estar dividido em dois: de um lado, os refugiados, vistos como aqueles que têm um direito humano à proteção de Estados estrangeiros; do outro, os “simples imigrantes”, i.e., aqueles que se deslocam por outros motivos que não os previstos na Convenção de Genebra, e que não possuiriam, assim, qualquer direito à proteção internacional por parte dos Estados de destino.
No campo da “imigração”, as evoluções após a “reconstrução” do pós-Guerra passaram a ter uma tendência claramente restritiva. Nas décadas de 1960 e seguintes, começou o período que comummente se aponta como o do “encerramento das fronteiras” na Europa. Não só deixou de ser necessária a entrada de novos trabalhadores migrantes, como se instalou uma crise económica e social, na sequência da crise do petróleo de 1973 (LAHAV, 2004, 30). Generalizaram-se medidas governamentais de restrição da imigração laboral e os incentivos à repatriação dos imigrantes.
Portugal não ficou de fora destas evoluções, desenvolvendo também um corpo de normas destinado a definir as regras de entrada, residência, trabalho, asilo e afastamento de estrangeiros do território. Começava a nascer entre nós o Direito das Migrações, influenciado, muito em parte, pelos impulsos e pela necessidade de acompanhar as rápidas evoluções do Direito da União Europeia nesta matéria. De facto, a partir da década de 1990, com a abertura do Espaço Schengen e o paralelo – e depois convergente – desenvolvimento das competências da União Europeia nessa matéria, lançaram-se as bases daquilo que hoje corresponde ao complexo conjunto de normas que formam o direito comum de imigração da União Europeia (PEERS, 2011). Esse direito é composto, por um lado, por um conjunto de instrumentos que visam “abrir canais” para a imigração regular, como sejam o reagrupamento familiar e o trabalho altamente qualificado, entre outros. Ele é ainda formado por instrumentos destinados à luta contra a imigração ilegal, de onde surgiram instrumentos que impõem a criminalização de atos como o tráfico de pessoas, o auxílio à imigração ilegal e o combate ao emprego de cidadãos estrangeiros em situação irregular.
O direito das migrações procura, pois, disciplinar as políticas de imigração estaduais num corpo normativo coerente, mas que, à semelhança dos demais ramos do Direito, tem também de se enquadrar no conjunto de obrigações supralegais, que acabam por subtraí-lo a uma dependência exclusiva das necessidades estaduais de cada momento. Esse enquadramento supralegal decorre não apenas das constituições nacionais e do Direito da União Europeia, mas ainda dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, cuja força expansiva neste domínio, paulatinamente afirmada pelos respetivos mecanismos de monitorização, se fez sentir com crescente premência.
Neste domínio, foram vários os instrumentos que foram surgindo para proteger, em específico, a pessoa migrante: a nível global, a atividade da Organização Internacional do Trabalho é, neste contexto, particularmente importante. Importa dar nota, desde logo, da Convenção n.º 97, relativa aos Trabalhadores Migrantes, de 1949, e da Convenção n.º 143, relativa às Migrações em Condições Abusivas e à Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes, de 1975. Por seu turno, nas Nações Unidas foi assinada, após dez anos de negociações, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, de 1990. Este instrumento procurou afirmar-se como o mais completo tratado internacional em matéria de direitos dos estrangeiros, já que prevê direitos que extravasam a esfera da relação laboral, como o direito à vida, à proibição de tratamentos desumanos ou à liberdade de pensamento, bem como direitos próprios do estrangeiro, como o direito à identidade cultural ou as garantias relativas ao procedimento de expulsão ou detenção de imigrantes. Mas a sua importância central radica, em especial, na afirmação de que os estrangeiros em situação irregular são também titulares de determinados direitos. No entanto, esta Convenção permanece como um projeto mal conseguido, já que nem Portugal, nem qualquer outro país da União Europeia, a assinou. Foram, aliás, os tradicionais países “de origem” que o fizeram, fazendo passar a mensagem de que os países “de acolhimento” não estão suficientemente comprometidos com a salvaguarda dos direitos dos imigrantes.
Já no âmbito do Conselho da Europa, cabe dar nota da Convenção Europeia Relativa ao Estatuto Jurídico do Trabalhador Migrante, de 1977, considerada um dos maiores progressos no que toca à proteção dos trabalhadores estrangeiros a nível regional. Ela protege um amplo leque de direitos, contendo disposições que conferem direito ao tratamento nacional em diversos domínios, embora apenas se aplique aos nacionais dos Estados Partes e, por definição, às pessoas que exerçam uma ocupação remunerada no Estado de acolhimento. Por outro lado, apenas abrange os imigrantes em situação legal.
Este corpo “especializado” de normas supralegais não veio, porém, travar uma tendência cada vez mais restritiva das políticas de imigração nos países da União Europeia. Desde a década de 1980, os fluxos migratórios têm vindo a ser sujeitos, cada vez mais, a um controlo apertado dos Estados. Esta década corresponde, aliás, à generalização do conceito de “imigração ilegal”, visto como um fenómeno a combater – objetivo esse, como se viu, que merece o especial empenho da União Europeia. Por outro lado, os Estados passaram a ver nos fluxos migratórios um desafio aos vários fins que lhes incumbe prosseguir na comunidade estadual, entre os quais se contam a proteção do mercado de trabalho, a proteção da saúde financeira dos sistemas de segurança social, a proteção da ordem pública e da segurança nacional e, ainda, a proteção da identidade cultural dominante. Estes últimos dois fatores têm justificado, aliás, a adoção de políticas migratórias particularmente securitárias no seio dos Estados europeus.
Curiosamente, têm sido os instrumentos gerais de proteção da pessoa humana que se têm revelado mais profícuos ao nível da proteção dos direitos humanos dos imigrantes. Tal evolução tem sido levada a cabo, sobretudo a nível regional na Europa, pela atividade hermenêutica do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) de controlo da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), mas também do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, responsável pela monitorização do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966. Também o Comité contra a Tortura, responsável pela fiscalização da observância da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes, de 1984, tem retirado da consagração de direitos humanos ditos “gerais”, i.e., aplicáveis a qualquer pessoa, corolários que se têm revelado importantes para a proteção da pessoa migrante (GIL, 2021a). Tal “jurisprudência” revela-se essencial por dois motivos: ela abrange todas as pessoas, independentemente do seu estatuto – refugiado, imigrante ou mesmo imigrante em situação irregular –, e ainda qualquer direito que possa ser violado, quer durante o processo migratório, quer no que toca às decisões estaduais sobre entrada e permanência no território de destino, podendo, inclusivamente, exigir uma compressão das tradicionais prerrogativas soberanas dos Estados neste contexto.
De facto, ainda que umas pessoas tenham o direito de receber proteção internacional e outras não, todas devem ser tratadas com dignidade, humanidade e justiça, nomeadamente nos procedimentos e atos de gestão de imigração. Este ponto é por demais premente, já que assistimos, nos dias que correm, às mais diversas e brutais formas de violação dos direitos humanos dos migrantes, apenas pelo facto de pretenderem passar uma fronteira estadual. Afastamentos coletivos, uso indiscriminado da força, detenções arbitrárias, separação de famílias, discriminações em função da nacionalidade, têm sido usados pelo mundo como instrumentos de execução de políticas de imigração estaduais.
Ora, é neste contexto que importa sublinhar, cada vez mais, que os Estados estão vinculados pela necessidade de respeito pelos direitos da pessoa humana também no que toca aos chamados imigrantes “económicos” ou “voluntários”. Assim, não poderão ser tomadas decisões em matéria de imigração que sejam discriminatórias, em função da nacionalidade, religião, etnia, entre outros. Violam ainda o Direito Internacional o uso desproporcionado da força ou o recurso a detenções arbitrárias, proibidos pelo art. 5.º da CEDH (SPIJKERBOER, 2017, 1-29). As expulsões coletivas são hoje também expressamente proibidas pelo art. 19.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que reproduziu o art. 4.º do Protocolo n.º 4 anexo à CEDH. Nelas estão incluídas as operações de push back, ou de recusa de entradas coletivas, a que se assistiu, por exemplo, na crise migratória de 2015 na União Europeia. Por fim, a separação de famílias, para além de violar o princípio da unidade familiar, pode ainda constituir um tratamento cruel, desumano ou degradante, proibido pelo art. 3.º da CEDH.
O TEDH tem ainda vindo a aceitar que, em alguns casos, a proteção da vida privada e familiar, consagrada no art. 8.º da CEDH, pode implicar a necessidade de reconhecer o reagrupamento familiar dos membros da família dos imigrantes residentes no território ou a proibição de expulsão, quando isso levar à separação da família ou à quebra de laços estáveis com a comunidade, nos casos em que o estrangeiro se encontra total e estavelmente integrado na mesma (GIL, 2021, 294 ss.).
Estamos, de momento, a assistir a uma mudança de paradigma dos movimentos migratórios que colocará à prova o respeito por estes direitos humanos. Como o demonstrou a crise de refugiados que assolou a Europa em 2015 e nos anos seguintes, bem como a esmagadora crise de deslocados provocada pelo conflito na Ucrânia, desde 2022, às quais se somarão os movimentos – que se creem crescentes e na ordem dos milhões – de deslocados por motivos ambientais, as migrações forçadas tenderão a ser cada vez mais numerosas. Como refere Alfredo dos Santos Soares (2017, 7), “o presente século bem pode ser designado como o das ‘deslocações forçadas em massa’”, as quais resultam, principalmente, “dos persistentes conflitos armados, dos crescentes impactos da mudança climática e dos projetos de desenvolvimento excludentes”. A estes, não podemos deixar de acrescentar as migrações fruto da pobreza, que cada vez mais levam as pessoas a abandonar os seus territórios em busca de condições mínimas de sobrevivência.
Perante uma tal mudança de paradigma, as respostas para a gestão das migrações deixarão de se poder encontrar nos Estados isoladamente. E é neste contexto que cada vez mais se usa o conceito de “governação global” das migrações. Trata-se de uma estratégia que visa uma gestão dos fluxos migratórios centralizada a nível supranacional e assente fortemente na solidariedade e distribuição de encargos entre os vários Estados do mundo com capacidade de acolhimento. As instituições da União Europeia ensaiaram um mecanismo desse tipo no decurso da já referida crise migratória de 2015 em diante, bem como na também já referida crise resultante dos movimentos massivos de pessoas fugidas da Guerra da Ucrânia, a partir de 2022. Em ambos os casos, foram propostas medidas destinadas a repartir equitativamente os migrantes pelos Estados-Membros, com fundamento no princípio da solidariedade – o qual tem consagração nos arts. 67.º, n.º 2, e 80.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (PIÇARRA, 2006). No primeiro caso, adotou-se, já tardiamente, um mecanismo dedicado a redistribuir requerentes de asilo que haviam chegado à União Europeia, nomeadamente aos territórios de Itália e da Grécia, pelos demais Estados-Membros, de forma equitativa e respeitando as capacidades de acolhimento de cada um. Em 2017, a União Europeia decidiu aprofundar estas medidas, apostando agora primordialmente noutro mecanismo internacional de gestão dos fluxos migratórios – o da reinstalação. Esse mecanismo é destinado a conceder proteção internacional a pessoas dela carecidas, a partir dos próprios países de origem e de trânsito, procedendo também à repartição equitativa das mesmas entre os vários Estados-Membros. Finalmente, em 2022, e como resposta ao fluxo massivo e crescente de deslocados da Guerra da Ucrânia, a União Europeia ativou, pela primeira vez, o mecanismo da Diretiva 2001/55/CE, que estabelece regras em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas, e medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos países da União Europeia. Tratou-se de uma resposta urgente, destinada a conceder proteção imediata a todos os deslocados da guerra, por parte de todos os Estados-Membros da União (THYM, 2021)
A nível mundial, merece destaque o Pacto Global para as Migrações Seguras, Ordenadas e Regulares, que visou representar um grande passo para a cooperação entre todos os Estados da Organização das Nações Unidas no que toca à gestão dos movimentos migratórios (SOUSA, 2019). O documento foi aprovado a 19 de dezembro de 2019 na Assembleia Geral, com 152 votos a favor, 12 abstenções e os votos contra dos Estados Unidos da América, Hungria, Israel, República Checa e Polónia. Apesar de o instrumento não ser vinculativo, os Estados comprometem-se a garantir o respeito, a proteção e o cumprimento efetivos dos direitos humanos de todos os migrantes, independentemente de seu estatuto legal, em todas as fases do ciclo migratório. Reconhece-se ainda que “refugiados e imigrantes têm os mesmos direitos universais e liberdades fundamentais”, “enfrentam muitos desafios comuns e têm vulnerabilidades semelhantes”, nomeadamente no contexto de grandes movimentos.
O Pacto Global para as Migrações sublinha alguns direitos humanos que devem ser priorizados durante o processo migratório, como o direito à vida, posto em causa de forma permanente nos “grandes movimentos migratórios”. Um dos esforços prioritários será, neste contexto, “resgatar pessoas em perigo no mar”. Outra prioridade é reduzir o sofrimento imediato de quem está em trânsito, muitas vezes preso em situações precárias – nomeadamente nas mãos das redes de auxílio à imigração ilegal. Essas preocupações foram traduzidas no Objetivo 8 do Pacto Global, que aponta para salvar vidas e estabelecer esforços internacionais coordenados para os migrantes desaparecidos.
O Objetivo 7 do Pacto aponta para a redução das vulnerabilidades na imigração. Para alcançar este objetivo, os Estados comprometem-se, inter alia, a rever as políticas e práticas em matéria de controlo da imigração, de forma a garantir que as mesmas não criam nem agravam – mesmo que não intencionalmente – as vulnerabilidades de alguns migrantes. Incluem-se nesse caso as mulheres grávidas e mães solteiras, os menores não acompanhados, as vítimas de tráfico, os idosos, pessoas doentes e pessoas com deficiência.
Outro dos compromissos mais importantes consiste em levar a cabo “procedimentos acessíveis e expeditos que facilitem a aquisição de estatuto legal e informem os imigrantes dos seus direitos e obrigações, de modo a evitar que os mesmos fiquem em situação irregular no país de acolhimento”. O Pacto insiste ainda na proibição de discriminação e na luta contra o racismo e xenofobia. Por fim, um dos compromissos mais prementes está relacionado com a detenção de migrantes. Condena-se o recurso à detenção administrativa como medida dissuasora do recurso à imigração ilegal, sublinhando-se que tais detenções são, frequentemente, levadas a cabo sem garantias adequadas e sem se procurar medidas menos gravosas, e, por fim, em condições, muitas vezes, muito desadequadas.
Apesar da falta de vinculatividade, esta declaração solene pode dar pistas para uma “governação global” das futuras crises de fluxos massivos de migrantes, que muito ganhariam em ser geridas a nível supranacional, idealmente através das Nações Unidas, para permitir a participação e partilha de responsabilidades, na base da solidariedade entre todos os Estados do mundo considerados seguros e com capacidades de acolhimento (SOUSA, 2019).
O ser humano não deixará de procurar os melhores sítios para viver, e os desafios com que os Estados se confrontarão, no afã regulatório das migrações e da defesa das fronteiras, terão, necessariamente, de ser repensados face ao paradigma emergente das “migrações em massa”.
Bibliografia
Impressa
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Digital
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Autora: Ana Rita Gil