• PT
  • EN
  • Mill, John Stuart

    Mill, John Stuart

    Na história do pensamento político ocidental, poucos são mais conhecidos, estudados e investigados do que John Stuart Mill (Londres, 1806 – Avignon, 1873). Filósofo inglês, economista clássico, profeta do liberalismo e intelectual, deixou-nos uma herança, nos campos da Filosofia, da Ética, da Economia Política e da Lógica, que influenciou inúmeros pensadores e áreas do conhecimento, sendo por isso considerado por muitos o filósofo de língua inglesa mais influente do século XIX. Para alimentar os espíritos mais curiosos, deixou-nos também o legado da sua história de vida na sua famosa Autobiografia, publicada em 1873 (MILL, 2017).

    John Stuart Mill É um dos mais proeminentes e reconhecidos defensores do liberalismo político, sendo as suas obras, no passado como no presente, fontes de debate e inspiração sobre as liberdades individuais. Porque defendeu o utilitarismo e faz parte do que se vem classificando como filósofos da felicidade, é ao utilitarismo que nos referiremos, neste âmbito, dedicado à defesa dos direitos humanos em contexto de globalização.

    Não desatendemos que na filosofia antiga, principalmente no pensamento de Epicuro e dos seus seguidores na Grécia Antiga, o pensamento utilitarista já se delineia. É certo também que esta ideia de vida útil possui um valor teleológico herdado da filosofia aristotélica, que, ao desenvolver a ideia de causa final, afirma que o bem é em si mesmo o fim a que todo o ser aspira, resultando na perfeição, na excelência, na arte ou na virtude. Também já para o escocês David Hume a verificação dos nossos juízos relativamente aos outros contém em si a grandeza do Homem, que residirá em atributos considerados úteis a si mesmo e aos que ele convivam.

    Sabendo-se que o utilitarismo não é um único ponto de vista, mas uma família de teorias éticas relacionadas, o que essas teorias têm em comum é estarem centradas no objetivo da ação. O foco está em saber como devemos agir para  obter os melhores resultados para o mundo, melhorando a vida de todos os seres. O utilitarismo sustenta que devemos dar igual consideração moral ao bem-estar de todos os indivíduos, independentemente de características como sexo, raça, nacionalidade ou mesmo entre espécies, como alguns já almejam na atualidade (cf. SINGER, 1975).

    Em geral, podemos afirmar que o utilitarismo clássico sustenta que o que faz a vida de alguém ser boa são as experiências conscientes subjetivas. Uma vida boa é preenchida com experiências conscientes positivas, como prazer, felicidade e contentamento, enquanto uma vida má contém muitas experiências conscientes negativas, como sofrimento e dor. Segundo o utilitarismo clássico, devemos agir de modo a que o mundo contenha a maior soma total de experiência positiva relativamente à experiência negativa. Os utilitaristas são conhecidos por argumentarem que “é a maior felicidade do maior número que é a medida do certo e do errado”.

    Utilitaristas famosos agregam filósofos, críticos e reformadores sociais radicais como William Godwin (marido de Mary Wollstonecraft e pai de Mary Shelley), Jeremy Bentham, John Stuart e Harriet Taylor Mill (coautora de parte da obra de Mill, com quem casou depois da morte do seu marido John Taylor, em 1849; cf. ROSSI, 1970) e Henry Sidgwick. Em conjunto, exerceram uma profunda influência nas reformas do século XIX, em áreas que vão do Direito à Política e à Economia, sem descuidar a  moral, a educação e os direitos das mulheres. A sua visão reflexiva transformou a vida em configurações que consideramos normais no nosso quotidiano de hoje.

    Em geral, atribuem-se ao utilitarismo seis  características comuns: o princípio do bem-estar (the greatest happiness principle, seja físico, moral ou intelectual); da agregação (o que conta é a quantidade global de bem-estar produzida, qualquer que seja a repartição desta quantidade); da otimização (a maximização do bem-estar é um dever); da imparcialidade (os prazeres ou os sofrimentos têm a mesma importância, quaisquer que sejam os indivíduos afetados); da universalidade (os valores do bem-estar são independentes das culturas ou das particularidades regionais); e, finalmente, do consequencialismo (as consequências de uma ação são a única base permanente para julgar a moralidade da ação).

    Em resumo, embora existam muitas variedades de pontos de vista discutidos, o utilitarismo é geralmente considerado uma visão sobre a ação, que é moralmente correta quando produz o maior bem. Há muitas modos de explicar essa afirmação geral. Também é amplo o debate acerca do consequencialismo do utilitarismo, i.e., se a ação correta é compreendida inteiramente em termos das consequências produzidas. O que distingue o utilitarismo do egoísmo prende-se com o alcance das consequências relevantes. Na visão utilitarista, deve-se maximizar o bem geral, i.e., considerar o bem dos outros tanto quanto o próprio bem (HAMPTON, 2023).

    Sobre o utilitarismo de Mill, parece certo que este herdou os princípios básicos do seu padrinho Jeremy Bentham,  a quem o seu nome ficará associado na definição de um tipo de ética normativa, segundo a qual uma ação é moralmente correta se tender a promover a felicidade, e condenável se tender a produzir a infelicidade, considerada não apenas a felicidade do agente da ação, mas também a de todos os por ela afetados. Por isso, o utilitarismo pode ser concebido como um critério geral de moralidade e deve ser aplicado não só às ações individuais, mas também às decisões políticas, económicas, sociais e judiciais.

    Consequentemente, podemos afirmar que, a partir da obra de Mill Utilitarianism (1861), temos uma teoria ética que se baseia na seguinte proposta: a ação correta é aquela que maximiza imparcialmente o total de felicidade geral. À primeira vista, o princípio é bastante plausível, uma vez que é razoável aceitar que a felicidade, ou bem-estar, seja um bem, e, por ser um bem, parece também razoável aceitar que ela seja promovida na sua máxima possibilidade. Além disso, considerando que as ações de um agente moral não afetam apenas a sua própria felicidade, parece igualmente aceitável promovê-las imparcialmente e não avaliar o resultado dessas ações com base apenas na promoção da felicidade particular do agente, mas também na de todos os afetados por essa ação.

    A particularidade do utilitarismo de Mill difere radicalmente das teorias éticas que fazem depender o carácter do bom ou do mal de uma ação do motivo do agente. De acordo com John Stuart Mill, o egoísmo é rejeitado, emergindo uma oposição a que um indivíduo persiga os seus próprios interesses, mesmo às custas dos outros, e opõe-se também a qualquer teoria ética que considere tipos de atos como certos ou errados, independentemente das consequências que eles possam ter. Porém, apesar de intuitivo, o princípio de utilidade torna a teoria de Mill sujeita a uma série de objeções, entre as quais se destaca a objeção da exigência excessiva. Grosso modo, o que se alega com essa objeção é que o utilitarismo, nesse caso o utilitarismo de Mill, requer um padrão muito exigente de moralidade, tão elevado que seria necessário realizar um alto grau de sacrifício da felicidade particular em função da felicidade geral. Todavia, devemos considerar que o princípio de utilidade de Mill tem duas dimensões: a dimensão axiológica e a dimensão da obrigação moral.

    A dimensão axiológica é relativa a questões sobre o bem ou valor, como o que é o bom ou o valioso e o que torna boa a vida particular dos agentes. No caso da teoria de Mill, o bem é a felicidade, que, por sua vez, é entendida como o prazer e ausência de dor. Porém, para Mill, viver de forma aprazível não se resume a experimentar prazeres oriundos dos sentidos, mas prazeres resultantes de atividades como a leitura e a criação artística. Na medida em que esses e outros bens, como a liberdade e a virtude, são fontes daqueles prazeres, que Mill crê serem os melhores, eles são também entendidos como elementos essenciais para uma vida feliz. Já a dimensão da obrigação moral trata de questões como as de saber quais as ações que são moralmente obrigatórias. Esta obrigação possui relação direta com a promoção da felicidade geral. Quanto à utilidade (como expressão equivalente ao “padrão utilitarista”), defende que a felicidade geral é o que estabelece o que é correto realizar. Neste sentido, na teoria de Mill, a ação moralmente obrigatória é aquela que, dadas as alternativas, tem as melhores consequências, i.e, maximiza imparcialmente o bem, por isso, a obrigação moral dos agentes consiste em promover a felicidade. Porque a felicidade é um bem, é racional maximizá-la. A felicidade de todos os envolvidos na ação é importante, e, por isso, seria arbitrário defender a promoção da felicidade particular como uma obrigação. Por isso, a obrigação moral dos agentes é maximizar imparcialmente a felicidade geral.

    Em suma, o utilitarismo de Mill é uma teoria moral que combina duas afirmações principais: todos são igualmente importantes e as maiores atrocidades morais da História – da escravidão ao Holocausto – decorrem da negação da igualdade moral. O utilitarismo opõe-se a qualquer desconsideração do sofrimento de qualquer ser sensível, por se acreditar que, se alguém pode sofrer, então essa pessoa é moralmente importante. Além disso, devemos preocupar-nos tanto em prevenir o seu sofrimento (e promover o seu bem-estar) como o de qualquer outra pessoa (CHAPPELL & MEISSNER, 2023).

    Os argumentos a favor do utilitarismo são racionais, o que, para pontos de vista morais, pode parecer estranho. No entanto, as implicações dos nossos valores nem sempre são óbvias, por isso pode ser útil pensar cuidadosamente sobre eles, especialmente se não for claro saber para onde aponta a bússola moral.

    Os seres humanos parecem ser mestres do raciocínio motivado. Se algo nos beneficia pessoalmente, é muito fácil convencermo-nos de que deve estar tudo bem. Para corrigir esses preconceitos egoístas, os filósofos forjaram um conceito chamado véu da ignorância, que envolve olhar para o mundo com uma espécie de “visão do olho de Deus”. Podemos ver todos e entender os futuros possíveis – o que acontecerá com cada pessoa dependendo de que escolhas específicas forem feitas –, mas não sabemos qual dessas pessoas somos. Quando se comparam diferentes opções por trás do véu da ignorância, somos forçados a ser imparciais. Deste modo, a forma mais racional de promover o nosso próprio interesse é escolher o que for melhor para promover os interesses de todos em geral. Escolher racionalmente por trás do véu da ignorância leva ao apoio das principais reivindicações do utilitarismo: todos são igualmente importantes e é melhor fazer mais bem do que menos. O véu da ignorância indica o que escolheríamos caso estivéssemos livres de preconceitos egoístas, que é, plausivelmente, o que deveríamos escolher moralmente.

    O utilitarismo pode ser apoiado por vários argumentos teóricos, sendo o mais forte, talvez, a sua capacidade de capturar o que importa fundamentalmente. Pelo menos, é assim que aparece a quem simpatiza amplamente com uma abordagem utilitária.

     

    Bibliografia

    Impressa

    ANNAS, J. (1993). The Morality of Happiness. New York: Oxford University Press.

    CRISP, R. (1997). Routledge Philosophy Guidebook to Mill on Utilitarianism. London: Routledge.

    FUMERTON, R. (2011). John Stuart Mill. Lisboa: Edições 70.

     MILL, J. S. (2017). Autobiografia. Lisboa: Edições 70.

    ROSSI, A. S. (1970). “Sentiment and Intellect: The Story of John Stuart Mill and Harriet Taylor Mill”. In A. S. Rossi (ed.). Essays on Sex Equality. Chicago: The University of Chicago Press.

    SCHULTZ, B. (2017). The Happiness PhilosophersThe Lives and Works of the Great Utilitarians. Princeton: Princeton University Press.

    SINGER, P. (1975). Animal Liberation. A New Ethics for Our Treatment of Animals. New York: Harper Collins.

    SINGER, P. (2011). Pratical Ethics (3.ª ed.) Cambridge: Cambridge University Press.

     

    Digital

    CHAPPELL, R. Y. & MEISSNER, D. (2023). “Arguments for Utilitarianism”. In R. Y. Chappell et al. (eds.), An Introduction to Utilitarianism [ed. eletrónica], https://www.utilitarianism.net/arguments-for-utilitarianism/ (acedido a 03.06.2023).

    HAMPTON, L. (2023). “John Stuart Mill”. In R. Y. Chappell et al. (eds.). An Introduction to Utilitarianism [ed. eletrónica], https://www.utilitarianism.net/utilitarian-thinker/john-stuart-mill (acedido a 03.06.2023).

     

    Autora: Cristina Montalvão Sarmento

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.