More, Thomas [Dicionário Global]
More, Thomas [Dicionário Global]
Advogado e professor, cultor das letras e defensor dos direitos civis, o político humanista Thomas More (Londres, 1477-1535) segue uma dedicada prática cristã, vivendo na Cartuxa de Londres antes de casar. Foi parlamentar da cidade, conselheiro do monarca e chanceler do reino entre 1529 e 1532. Depois da separação da Igreja de Inglaterra promovida por Henrique VIII, recusa-se a aceitar a autoridade religiosa do rei e o repúdio do Papa. Acusado de traição, foi encarcerado na Torre de Londres durante quinze meses e decapitado, vindo a ser beatificado em 1886 e canonizado em 1935. O seu caso ilustra, em contexto cristão, o permanente conflito entre a consciência pessoal e o calculismo da estratégia política. Dessa maneira emerge um simbólico antagonismo entre o ideal laico da Utopia de More e o real laico do Príncipe de Maquiavel.
Para o humanista, se a loucura está em todo o lado, a sabedoria apenas está no não-lugar (utopia). A Utopia ou Lugar Feliz de Thomas More constitui a prefiguração ou antecipação de um desejado estado ideal futuro de ordem social que, por comparação com a existência presente, ofereça uma vida mais digna, livre e humana. Não se trata, por um lado, de uma consumação milenarista do mundo, nem, por outro lado, da Jerusalém Celeste da vida eterna. Mas a sua insistência em apresentar a ação providencial de Deus e a crença dos utopienses na vida de salvação ou condenação para além da morte obriga-nos a admitir que a realização dessa futura vida terrena, de ordem social justa e de serena liberdade perante a doença e a morte também, se deve à presença escatológica do Espírito de Deus (MORE, 2006, 641).
O diálogo da Utopia apresenta-se como o pensamento e o discurso de um lugar que é outro lugar, no sonho de uma alternativa à ordem social vigente relativa à propriedade e ao consumo dos bens, ao modo de organização política e à forma de vida religiosa. No entanto, embora estejam implícitos os valores cristãos, essa ordem fundamenta-se, não na fé de um credo, mas na exigência moral e religiosa da racionalidade e da natureza humana, que passa pelo reconhecimento de um Deus único, eterno, infinito e incognoscível que excede a capacidade humana de apreensão e que culmina no desaparecimento das diversas crenças e na convergência para uma única forma de religião. Prevalece a perfeita harmonia entre a consciência individual e a vida comunitária por via do engenho, da racionalidade e do amor.
Thomas More descreve a Utopia como um estado ideal de perfeição, regido pelos princípios de igualdade jurídica e económica de todos os cidadãos, iniciando um movimento revolucionário que culminou com a Revolução Francesa e a proclamação dos direitos naturais e universais dos cidadãos, independentemente do seu credo religioso. A história comprova a realização de muitos elementos dessa organização sociopolítica desejada. O humanista londrino concebe uma nova república com a noção de comunismo universal dos bens e com a noção de relação fraterna entre povos de culturas e religiões distintas. A sua obra tinha por objetivo criar normas de comportamento moral e criar modelos de organização social ético-política que superassem os propósitos do governo tirano e respeitassem as exigências da dignidade humana. O projeto de sociedade da ilha da Utopia é profundamente marcado por um humanismo naturalista, uma vez que os utopianos não vivem de acordo com uma conceção cristã, mas de acordo com a sua natureza e razão. Os bens não sendo de ninguém, são de cada um e de todos, ou seja, a renúncia à propriedade individual e a possibilidade de usufruto dos bens de propriedade comum era a condição para a possível felicidade de todos. Era assim, porque havia abundância de tudo e não havia qualquer receio de que alguém solicitasse mais do que necessitava.
De acordo com o otimismo antropológico de Thomas More, que pressupunha a capacidade do desapego e a distância espiritual dos bens terrenos materiais, a renúncia a uma parte da liberdade pessoal tinha como objetivo a maior liberdade de todos e a efetivação do bem comum. Nestes termos, considera que a forma ideal de Estado consiste na sua natureza racional e propõe uma ordem social em que a propriedade privada é abolida e a terra é cultivada por todos de acordo com uma determinada escala temporal. Para além disso, todos têm o seu ofício e há uma categoria de magistrados que velam para que ninguém se entregue ao ócio. Mas os cidadãos da ilha de Utopia apenas trabalham seis horas, dedicando o resto do tempo às letras e ao divertimento. Nesta cultura, todos subordinam os interesses particulares à utilidade comum e cultivam as ciências positivas e a filosofia, completando os conhecimentos racionais com os princípios religiosos, pois o conhecimento por si só é insuficiente para conduzir o homem à verdadeira felicidade.
Os princípios religiosos reconhecidos pela razão são os da imortalidade da alma, destinada por Deus à felicidade, o prémio e o castigo depois da morte, de acordo com o comportamento em vida. A característica fundamental da Utopia é a tolerância religiosa, em que todos reconhecem a existência de um Deus criador do Universo e autor da sua ordem providencial, mas cada um reconhece-o e venera-o à sua maneira numa coexistência pacífica entre diferentes credos religiosos: “[…] embora acreditando em realidades diversas, concordam num ponto comum, a saber, que há uma única entidade suprema e que a ela se deve a formação do universo” (MORE, 2006, 633). A República utópica é um Estado conforme à razão, no qual os próprios princípios religiosos são apenas aqueles que a razão está apta a aceitar, pelo que o culto divino é dirigido pela grande maioria dos utopienses a uma única entidade suprema chamada de fonte de vida a que se deve a formação e o governo do Universo: “Pense cada um o que pensar, facto é que consideram ente supremo aquele a quem por natureza, por divindade e por majestade é atribuída, consensualmente por todos os povos, a totalidade das coisas” (MORE, 2006, 633).
O pensamento utópico e humanista da modernidade, que se inicia com Thomas More, tem a sua génese na síntese entre o pensamento grego dos mitos da Idade de Ouro e da Cidade Ideal e o messianismo profético de Israel, com a sua exigência ética e a sua promessa de instauração do futuro Reino de Deus que realiza as expectativas de paz e justiça. Assim, a utopia moderna nasce como uma escatologia secularizada, no sentido em que a sua ficção é uma secularização dos ideais representados mistericamente na imagem teocêntrica do Reino de Deus e na noção histórica e linear de tempo que aponta para um futuro sobrenatural de plena felicidade. Mas esta felicidade não está remetida apenas para um futuro abstrato e distante ou ausente da história e da vida dos homens, mas está ao alcance da humanidade na sua condição existencial, como refere o autor quando descreve o modo como os utopianos lidam de forma feliz com a experiência limite da morte (MORE, 2006, 643).
Esta visão utópica assenta na filosofia e na teologia da História, tendo como pilar a noção de progresso e a noção de consumação do mundo pela ideia messiânica judaica da instauração do Reino na Terra com plenificação no Céu. É neste ambiente que Menassé ben Israel desenvolve a sua messianologia, na convicção de que a Nova Jerusalém será edificada e haverá paz perpétua e universal, mesmo entre os animais, como no Paraíso, e não haverá mais sofrimento e mais morte. No mesmo sentido, também a teologia da esperança de Samuel Usque aponta para a glória de Jerusalém, restaurada pelo socorro divino: a morte é transitória, o que permanece é a vida, porque a alma é imortal. Pela leitura da sua obra, não identificamos que o estado ideal da ordem social humana de Thomas More encerre a ideia gnóstica e milenarista, de raiz apocalíptica, de uma instauração messiânica do Reino de Deus na Terra. Consideramos que se trata da descrição de uma realidade que prefigura na Terra o reino divino do Céu, em que a felicidade já vivida na ilha da Utopia só será plena depois da morte na outra vida sobrenatural de bem-aventurança em total liberdade. Neste sentido, recorrendo a uma linguagem mítica, apresenta o convívio dos defuntos com os vivos como meio de evitar as más ações (MORE, 2006, 645).
Recordemos que a racionalidade religiosa do humanismo renascentista se desenvolve em dois sentidos fundamentais: a) o sentido imanente que advém do messianismo judaico e do espiritualismo gnóstico, sobre a instauração do Reino de Deus na Terra e sobre o regresso à Origem do Paraíso Terreal ou da pré-existência; b) o sentido escatológico e transcendente que advém da soteriologia cristã e da filosofia da criação, sobre o dinamismo histórico e teleológico da Nova Criação e da ascensão ao Paraíso Celestial futuro. A utopia tende a situar-se no primeiro sentido do plano imanente e histórico, mas não quer dizer que não possa conter elementos escatológicos. A filosofia utópica desenvolve-se na síntese entre o messianismo hebraico da constituição histórica de um reino de paz e justiça e a ética humanista dos mitos da Idade de Ouro e da Cidade Ideal. Neste sentido, podemos dizer que a ficção da utopia moderna nasce de uma secularização dos ideais escatológicos representados na imagem do Reino de Deus e na noção histórica e linear de tempo que aponta para um futuro sobrenatural de plena felicidade.
Mas o discurso utópico desencadeado por Thomas More irá constituir, nas suas formas mais maduras, um pensamento político e social que concilia os elementos antitéticos da crítica e da criatividade, da reflexão e do imaginário, da razão e da esperança, numa representação da realidade que denota a distância entre a realização concreta e o ideal sonhado. Assim, a utopia apresenta-se como um pensamento crítico que relativiza o falso absoluto das ideologias e do descontrolado desenvolvimento científico e tecnológico e que procura fundamentar racionalmente as aspirações e esperanças numa ordem social histórica de progressiva afirmação do Direito sobre a força, do bem sobre o mal e da paz sobre a fatalidade da guerra.
O discurso utópico, neste sentido, não é um pretexto para nos esquivarmos às tarefas concretas da organização sociopolítica fundada em valores éticos, e para nos refugiarmos num mundo imaginário, mas é expressão do desejo humano de um futuro novo, podendo-se constituir como um remédio eficaz contra o imobilismo e a inércia. A expectativa e a necessidade inata do coração do homem numa Nova Terra não deve enfraquecer, mas sim ativar a preocupação de desenvolvimento e de justiça nesta Terra, constituindo uma ordem que seja prefiguradora da perfeição do mundo futuro.
A organização económica, social e política da União Europeia, fundada num Estado de direito que se regula pelos valores da liberdade, da solidariedade e da igualdade e pelos valores humanistas consagrados na declaração universal dos direitos humanos, procura prefigurar na terra o ideal de justiça, paz e harmonia ilustrado na esperança escatológica judaico-cristã do paraíso celestial. É evidente que essa ordem é utópica, na medida em que a perfeição e plenitude dessa condição não se pode consumar na História, mas a esperança que ela encerra anima-nos no sentido de um trabalho persistente para a construção de uma sociedade cada vez mais humana e mais justa.
Assim, para que não se degradem em formas ideológicas ao serviço dos poderes constituídos (distopias), como tantas vezes aconteceu na História, através dos totalitarismos e dos absolutismos, só através de uma consistente esperança escatológica as utopias poderão contribuir para um futuro de libertação e de felicidade da humanidade. Enquanto forma secularizada dos ideais escatológicos da teologia da História da tradição judaico-cristã, a utopia preserva a fé no progresso e no gradual aperfeiçoamento do homem e do mundo como prefiguração na Terra de um estado perfeito no Céu.
A utopia de Thomas More, não se identificando em absoluto com a visão imanente e milenarista do messianismo judaico de instauração na Terra do Reino de Deus, inclui a noção escatológica judaico-cristã de que a Justiça eterna e a felicidade plena da outra vida na glória de Deus podem ter já início na condição existencial pelo exercício de uma vida moral na ordem socio-política que vise o bem comum e pelo auxílio da providência divina, que governa o movimento do mundo para a sua consumação no fim dos tempos em progressiva perfetibilidade, realidade que se reconhece através das orações (MORE, 2006, 663).
Embora construída no formato literário de um mundo imaginário, a ilha maravilhosa de Thomas More não se reduz a uma utopia, porque encerra não apenas uma expectativa, mas também uma esperança de realização que se fundamenta de forma implícita na topia da revelação divina que é palavra encarnada em Cristo e em cuja ressurreição assenta a nossa garantia de participação na vida divina. Não podemos falar desta utopia no sentido estrito da salvação pelas obras e pela ordem racional, em contraposição com a ideia luterana de salvação apenas pela fé, porque o autor refere-se à organização social da cidade utópica como consequência também da providência divina.
Por um lado, ao arrepio da visão milenarista apocalíptica, a noção de instauração do Reino de Deus na Terra é uma utopia, isto é, não se pode realizar porque é uma realidade que pertence apenas ao plano escatológico da vida eterna em Deus, por outro lado, é uma topia, porque pela ação providencial divina e pela graça da Encarnação e da Ressurreição, participamos desde já nesse reino do Espírito, apesar de ser na incompletude e imperfeição da condição temporal. Na tensão do já e do ainda não vivemos escatologicamente na esperança da plenitude do Reino de Deus, apresentando-se a utopia como discurso prefigurador da efetiva realização dos mais profundos anseios do coração humano no sentido de uma vida justa e fraterna. No diálogo sobre a justiça da obra Imagem da Vida Cristã, Frei Heitor Pinto faz referência à Utopia de Thomas More para sublinhar esta ideia de que na Terra caminhamos para a perfeição celeste: embora na Terra seja impossível atingir-se uma organização tão perfeita como a da Utopia, toda a sociedade deve tender para essa perfeição, constituindo-se a justiça como imagem da justiça absoluta que só Deus poderá assegurar.
De acordo com Thomas More, o que impede o Mundo de ir já adotando na sua condição temporal as leis do Estado justo e fraterno da Utopia é a “avidez do dinheiro” e a “soberba” (MORE, 2006, 671). Assim, o autor termina a obra desejando que muitas das medidas apresentadas na imaginária Republica da Utopia possam ser implantadas nas cidades da época: “[…] também me é fácil confessar que muitíssimas coisas há na terra da Utopia que gostaria de ver implantadas nas nossas cidades, em toda a verdade e não apenas em expectativa” (MORE, 2006, 673).
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Autor: Samuel Dimas