Música e Direitos Humanos [Dicionário Global]
Música e Direitos Humanos [Dicionário Global]
A música tem sido uma das formas de a humanidade expressar sentimentos e causas. Ao longo da história, em diferentes contextos, a música é memória da luta pela defesa dos direitos fundamentais dos seres humanos, com impacto na resolução de conflitos e resistência dos povos. No campo da música erudita, as iniciativas passam pelo entendimento de que a música tem capacidade de contribuir para a igualdade dos seres humanos. Todavia, a noção de uma cultura universal dos direitos humanos não deve ser entendida como a negação de culturas ou religiões, ou a criação de uma cultura global uniforme. Pelo contrário, uma cultura universal dos direitos humanos pode contribuir para a implementação e realização de padrões comuns e ao mesmo tempo promover a diversidade religiosa e cultural. Para Said, “A cultura é uma forma de luta contra a extinção e a obliteração. A cultura é uma forma de memória contra a aniquilação” (SAID, 2006, 157). Em muitas partes do mundo, as comunidades continuam a não poder expressar e preservar a sua identidade cultural devido à intolerância e à discriminação, como tem acontecido no Médio Oriente, em que o governo ou o regime religioso violou a liberdade das pessoas e proibiu a diversidade cultural ou as expressões artísticas através da música (DONDERS, 2008, 318).
Os direitos humanos são vistos como um fenómeno social multidimensional que inclui dimensões políticas, legais, históricas e éticas. É visível o equilíbrio entre a música como parte fundamental nos contextos sociais e culturais e o seu papel essencial nas áreas políticas, tendo como princípios a liberdade de expressão, o direito de participar na vida cultural, a dimensão do direito à identidade cultural e os direitos das minorias, que constituem ações espalhadas pelo mundo na defesa dos direitos humanos (SOLTANI, 2017, 7). The Routledge Companion to Music and Human Rights, publicado em 2022, oferece uma análise abrangente das relações entre música e direitos humanos e as complexas e diversas intersecções entre as duas áreas através de inúmeros estudos de caso.
Alguns artistas veem-se como embaixadores da defesa dos direitos humanos, contribuindo com a sua arte para a interiorização e consolidação desses direitos, graças à possibilidade de desenvolverem compaixão e empatia entre todos. Liberdade de expressão, direito à educação e direito de participar na vida cultural têm também sido identificados e destacados por músicos profissionais que, por meio das suas capacidades artísticas, demonstram paixão pelas preocupações sociais, assumindo compromissos criativos que espelham a justiça social e os direitos humanos.
Em 1999, foi criada a Fundação Baremboim-Said, com o objetivo de unir jovens músicos de países árabes do Oriente Médio e de Israel. Através da Orquestra West-Eastern Divan, um espaço de diálogo intercultural, foi possível naquela época ultrapassar de algum modo os conflitos Israel-Árabes e desenvolver ações benignas à prática dos direitos humanos.
Em 2010, Daniel Baremboim afirmou que a música tem mais poder do que as palavras, porque além de estar no pensamento, de ser expressão da alma humana, é “antes de tudo uma coisa física” que “ataca” todas as funções do ser humano (BAREMBOIM, 2010, 39, 14). As agências de direitos humanos e de desenvolvimento e as organizações não governamentais (ONG) têm incorporado nos seus projetos a música nas suas atividades, seguindo, em particular, a tentativa de mudança de normas e atitudes locais; o efeito de catarse e a criação de laços de solidariedade (DAVE, 2015, 7, 6). O trompista e maestro italiano Alessio Allegrini, com o apoio do seu pai e dos seus irmãos músicos, formou uma associação sem fins lucrativos para promover o humanismo através da música. Os seus projetos iniciais pretenderam apoiar o direito de as mulheres no Japão continuarem as suas carreiras durante e após a gravidez, os direitos do povo indígena Ainu do Japão, e a integração da comunidade imigrante albanesa na sua cidade natal através da compra de instrumentos musicais, de aulas de música e da realização de concertos. Em fevereiro de 2009, Alessio trabalhou com o maestro Claudio Abbado, na Venezuela, na formação de orquestras juvenis, decidindo criar a Orquestra de Direitos Humanos e a organização Musicians For Human Rights (MFHR). No ano seguinte, a orquestra, dirigida por Allegrini, realizou um concerto no Fórum Internacional de Direitos Humanos Lucerna (IHRF) em que foi solista a pianista Maria João Pires. Os fundos angariados foram doados à AfriAfya, uma organização sediada no Quénia.
A Associação das Orquestras Sinfónicas Juvenis sistema Portugal, cujo lema é “mais do que música, tocamos vidas”, tomou como modelo inspirativo a Orquestra Sinfónica Simón Bolívar, criando no ano letivo de 2007-2008 o projeto Orquestras Sinfónicas Juvenis – Orquestra Geração. O projeto, desenvolvido em escolas de Lisboa e Coimbra, procura através do ensino e da prática musical de conjunto promover a inclusão social das crianças e jovens dos bairros social e economicamente mais desfavorecidos e problemáticos; combater o abandono e o insucesso escolar; desenvolver o trabalho de grupo, a disciplina e a responsabilidade para uma melhor cidadania; promover a autoestima das crianças e das suas famílias; aproximar os pais do processo educativo dos filhos; contribuir para a construção de projetos de vida dos mais novos e permitir o acesso a uma formação musical que seria impossível para a maioria das crianças e jovens que vivem em contextos de exclusão social e urbana. A Orquestra Geração e os projetos que lhe estão associados foram agraciados com vários prémios, designadamente o Prémio Nacional de Professores do Ministério da Educação – Inovação (2010); menção honrosa da Fundação Manuel António da Mota (2017); melhor empresa de intervenção social pelo grupo AGEAS (2018). A União Europeia considerou-a, nos anos de 2013 e 2014, um dos melhores projetos de intervenção social de toda a União e, em 2018, a orquestra recebeu a Medalha de Ouro comemorativa do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia da República Portuguesa. Um dos projetos desenvolvidos, “A Orquestra de Afectos”, leva aos jardins de infância pertencentes a escolas onde a Orquestra Geração tem implementados os seus núcleos orquestrais atividades expressivo-musicais explorando a relação entre a música, o desenvolvimento emocional e a comunicação. O trabalho conta com a participação das educadoras e auxiliares educativas, e com os pais que têm vindo partilhar nas sessões o património musical das suas origens culturais. Desde janeiro de 2019 que a “Orquestra de Afectos” tem o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, através da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, em parceria com a Câmara Municipal de Oeiras e os respetivos agrupamentos escolares.
Após o período do primeiro regime talibã, o Afghanistan National Institute of Music (ANIM) teve um papel importante no desenvolvimento musical do país, criando, entre outros projetos a Zohra Orchestra, uma orquestra exclusivamente feminina. Com a chegada de novo do poder talibã ao país e a proibição de que a música fosse tocada em público, o ANIM abandonou em 2021 o seu país de origem, prosseguindo em Portugal a sua missão, tendo como diretor o seu fundador, Ahmad Sarmast. Os jovens músicos residentes em Portugal têm-se apresentado em palcos nacionais e internacionais, promovendo e salvaguardando as tradições musicais do Afeganistão. Desde 2022, estudam nos Conservatórios de Música de Braga e Guimarães, realizando concertos também nestas cidades. Em março de 2023, a violinista Midori, uma artista visionária, ativista e educadora que explora e constrói conexões entre a música e a experiência humana, e Clara Kim, também violinista, estiveram em Braga com os professores e alunos do Instituto Nacional de Música do Afeganistão. Durante a sua estadia, alunos do ANIM, incluindo membros da Orquestra Zohra, tiveram a oportunidade de trabalhar individualmente com Midori, que se juntou a uma orquestra formada por estudantes do ANIM e estudantes do Conservatório de Braga para uma apresentação que incluiu música folclórica afegã, o “Concerto para Violino” de Mendelsohn e uma obra do violinista e compositor americano William Harvey. A 20 de maio de 2023, num concerto na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, comemorativo do Dia Internacional dos Museus de 2023, o ANIM realizou um programa de música e poesia persa e afegã em torno dos temas explorados na exposição “O Caminho do Sufi – Sabedoria, Unidade, Amor, Caminho e Plenitude”.
As canções de protesto escritas no século XX constituem uma das expressões culturais mais significativas da humanidade. Bob Marley cantava, em 1973, “Get up, stand up, stand up for your rights”. O etnomusicólogo americano Peter Manuel designou o ativismo musical progressista nas décadas pós-Guerra e pós-colonial um “projeto global”, sugerindo que os movimentos musicais ativistas, em diversas partes do mundo, demonstraram como as décadas de 1950-1970 representaram uma espécie de ponto alto para um conjunto de movimentos diversos sociopolíticos internacionais impulsionados por valores do humanismo liberal. Porém, a partir da década de 1980, esses movimentos musicais foram diminuindo a sua ação, enquanto outros deixaram de existir (MANUEL, 2023, 1-2). O poder da música para expressar direitos e reivindicações através de canções de protesto teve expressão riquíssima no período anterior ao 25 de Abril em Portugal. A canção “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso remete-nos para o art. 1.º da Declaração Universal: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos […]”, quando diz “Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade”. Significativa é também a produção musical de José Mário Branco, Francisco Fanhais e Sérgio Godinho, que à semelhança da cultura francesa durante a década de 60, com cantores como Georges Brassens, Léo Ferré e Jean Ferrat, criaram canções de intervenção sociocultural (CAEIRO, 2012, 207). Outros autores e suas canções, designadamente Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, Manuel Freire, José Jorge Letria, são referência de música engagé na transmissão de valores de justiça, fraternidade e igualdade. No Brasil, Chico Buarque, Adriana Calcanhotto, Elsa Soares, o rapper Djonga e outros cantores e compositores defendem nas suas canções valores universais. A cantora baiana Daniela Mercury, embaixadora da UNICEF há mais de duas décadas, celebrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu concerto de Ano Novo na Bahia, em 2019. Mercury tem abordado questões de racismo, desigualdades e direitos humanos na sua carreira, acreditando que a arte em geral, e a música, em particular, podem quebrar barreiras e contribuir para a tolerância e fraternidade entre todos. Embora a dignificação humana através da música tenha inúmeros e extraordinários exemplos, ela tem também sido usada ao longo dos tempos em práticas degradantes e de mobilização em massa com fins opressivos e de violação dos direitos humanos. A tortura musical na chamada “guerra ao terror”, a utilização da música para infligir dor e humilhar presos em campos de concentração e centros de detenção, é bem demonstrativa de como o homem pode servir-se da música para fins perversos (Nowak, 2022,15).
Em 1785, Friedrich Schiller compôs o poema evocativo da fraternidade da raça humana intitulado “An die Freude” (“Ode à Alegria”), com versão final em 1808. Ludwig van Beethoven iria incluir partes do poema de Schiller entoado por solistas e coro no andamento final da sua 9.º Sinfonia, concluída em 1823, obra representativa do seu profundo sentido de humanidade e dos valores universais de liberdade, paz e fraternidade. Em 1972, o Conselho da Europa adotou o “Hino à Alegria” de Beethoven como o hino desta organização. Desde 1985, passou a ser também o hino oficial da União Europeia. Não poderia ter sido outra a peça escolhida para comemorar a queda do muro de Berlim em novembro de 1989, num concerto dirigido por Leonard Bernstein no dia de Natal desse ano, quando a palavra “Freude” (“alegria”) foi substituída por “Freiheit” (“liberdade”).
Bibliografia
BARENBOIM, D. & SAID, E. W. (2003). Paralelos e Paradoxos: Reflexões sobre a Música e Sociedade. Trad. H. Feist. São Paulo: Companhia das Letras.
BAREMBOIM, D. (2010). “Bring Music, Bring Life”. Index on Censorship, 39 (3), 11-19.
CAEIRO, M. de F. C. (2012). Influências Francesas na Música de Intervenção Portuguesa nos anos 70”. Dissertação de Mestrado. Universidade de Aveiro.
DONDERS, Y. (2008). “A Right to Cultural Identity in UNESCO”. In F. Francioni & M. Scheinin (eds.). Cultural Human Rights (317-340). Leiden: Koninklijke Brill NV.
MANUEL, P. (2017). “World Music and Activism Since the End of History [sic]”. Music and Politics, XI (1), 1-16.
NOWAK, M. (2022). “What Are Human Rights?”. In J. Fifer et al. (ed.). The Routledge Companion to Music and Human Rights (13-22). New York: Routledge.
SAID, E. W. (2006). Cultura e Resistência: Entrevistas do Intelectual Palestino a David Barsamian. Rio de Janeiro: Ediouro.
SOLTANI, S. (2016). The Power within Music. Human Rights in the Context of Music. European Master’s Degree in Human Rights and Democratization. University of Southern Demark/Danish Institute for Human Rights.
ULRICH, G. & IMPEY, A. (2022). “Introduction”. In J. Fifer et al. (ed.). The Routledge Companion to Music and Human Rights (1-10). New York: Routledge.
Digital
Afghanistan National Institute of Music (ANIM), https://www.anim-music.org (acedido a 07.03.2024).
DAVE, N. (2015). Journal of Human Rights Practice, 7 (1), 1-17, https://doi.org/10.1093/jhuman/huu025 (acedido a 07.03.2024).
Orquestras Sinfónicas Juvenis – Orquestra Geração, https://orquestra.geracao.aml.pt/ (acedido a 07.11.2023).
West-Eastern Divan Orchestra, http://www.west-eastern-divan.org (acedido a 07.11.2023).
Autora: Elsa Lessa