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    Objeção de Consciência [Dicionário Global]

    Para o bem e para o mal, as sociedades têm reconhecido, cada vez mais, a liberdade de consciência enquanto direito irredutível de afirmação do indivíduo face – no limite, contra – ao colectivo. Falamos, obviamente, sobretudo das sociedades ditas ocidentais. Noutro tipo de sociedades, em particular na Ásia ou em África, esse alegado direito só muito parcialmente é reconhecido, ou não é reconhecido de todo. Essa foi, igualmente, a nossa matriz. Recordemos, a esse respeito, o célebre julgamento do mestre de Platão, que este tão eloquentemente descreve na sua célebre Apologia de Sócrates. A Sócrates não foi reconhecido qualquer direito de “rebelião” contra o coletivo, apenas a possibilidade de dele sair, ou seja, de se expatriar. Sócrates, porém, de forma muito significativa, preferiu beber a cicuta, preferiu o suicídio. Também para ele, por mais injusta que tivesse considerado a sentença, o direito do todo, do coletivo, prevalecia, em absoluto, sobre o “seu” direito individual. Essa dita “consciência individual” foi, de resto, algo que só foi sendo muito lentamente reconhecido ao longo da própria história da filosofia – primeiro, na dita Idade Média, por influência do cristianismo (que, inquestionavelmente, é uma religião que, até em termos comparativos com outras, defende o valor da individualidade), e, depois, na dita Idade Moderna, em que, de Descartes até Kant (apenas para referir dois filósofos de referência dessa época), a categoria de indivíduo foi ganhando cada vez mais valor ontológico.

    No plano político, as sociedades ocidentais não acompanharam imediatamente esse percurso que se fez no plano filosófico, que só foi acontecendo ainda mais lentamente. Em Portugal, por exemplo, apenas com a Revolução Liberal de 1820 se deram passos reconhecíveis nesse sentido, ainda que muito tímidos. A própria categoria de “cidadão”, em contraponto à de “súbdito”, só viria a ser mais abertamente afirmada com a Implantação da República, em 1910, quase um século depois, e mesmo assim com grandes restrições, por exemplo, no plano político-eleitoral, bastando, para o efeito, referir as diferenças que subsistiram entre homens e mulheres quanto ao direito de voto em eleições.

    Hoje, em Portugal e nas sociedades ditas ocidentais, os direitos individuais têm vindo a ser cada vez mais reconhecidos, a ponto de a própria categoria de “coletivo” se estar a esvaziar de qualquer valor ontológico. Há aqui, claramente, um movimento de simetria: quanto mais peso tem o coletivo, menos peso têm os indivíduos; quanto mais peso têm os indivíduos, menos peso tem o coletivo. No limite, o reconhecimento absoluto dos direitos individuais levaria à abolição plena da qualquer sentido de coletividade ou de comunidade. Resta, a este respeito, perguntar se nas ditas sociedades ocidentais não estamos cada vez mais próximos desse limite, que é, também ele, a nosso ver, suicidário.

    A categoria de “objeção de consciência” tem sido, historicamente, um compromisso entre o direito coletivo e os direitos individuais – diríamos, mais filosoficamente, entre o uno e o múltiplo. Em Estados com uma religião oficial, por exemplo, não se pondo em causa o direito do Estado a ter uma religião oficial, aceita-se que nem todos os cidadãos a sigam. Sendo que esse exemplo, nas sociedades ditas ocidentais, é, nos dias de hoje, muito mais uma questão teórica do que uma questão prática. Mesmo nos Estados que ainda têm uma religião oficial – como, por exemplo, a Grã-Bretanha –, só o chefe de Estado tem, por dever de função, essa obrigação legal – enquanto líder máximo, no caso, da religião anglicana (uma ramificação, como se sabe, da Reforma Protestante europeia). E mesmo isso tem sido visto, cada vez mais, como um manifesto anacronismo.

    O exemplo mais clássico do direito à objeção de consciência acontece, ainda nos dias de hoje, nos casos do serviço militar. Mas mesmo esse depende da circunstância em que estamos. Em Portugal, por exemplo, com o fim do Serviço Militar Obrigatório, ele perdeu, decerto, pertinência jurídica. Mas imaginemos que Portugal era invadido por um outro qualquer país e que o Estado impunha uma mobilização geral para a defesa do nosso território. Seria realmente lícito a qualquer um de nós, cidadãos, invocar o direito à objeção de consciência? Mesmo que, em seu abono, citasse as célebres palavras de Bernardo Soares no seu Livro do Desassossego (“Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente”)?

    A questão não é tão ociosa como possa parecer – nos dias de hoje, há países que estão a viver esse dilema. Pela nossa parte, tendemos a reconhecer o direito à objeção de consciência em qualquer circunstância. Mas esse direito, obviamente, tem consequências. Nesse caso-limite, em que um cidadão português se recusasse a defender o nosso território, talvez tivéssemos de regressar ao exemplo de Sócrates e de propor a esse objetor o expatriamento. Felizmente, em Portugal, esse cenário não é sequer vislumbrável. Por isso, os dilemas da objeção de consciência têm-se posto quase que exclusivamente na área da Medicina (a interrupção voluntária da gravidez é o exemplo mais clássico), sem problemas de maior (ou seja, respeitando o direito à objeção de consciência dos médicos). Antes assim.

    Bibliografia

    CAMPS, V. (1996). Paradoxos do Individualismo. Trad. de M. Alberto. Lisboa: Relógio d’Água.

    COUTINHO, F. P. (2002). O Direito à Objecção de Consciência: Origem, Sentido, Limites e Respectiva Análise Jurisprudencial. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.

    LIPOVETSKY, G. (2018). A Era do Vazio: Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo (3.ª ed.). Trad. de M. S. Pereira & A. L. Faria. Lisboa: Edições 70.

    PESSOA, F. (1982). Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Lisboa: Ática.

    PLATÃO (1988). Apologia de Sócrates. Trad., pref. e notas de P. Gomes. Lisboa: Guimarães Ed.

    Autor: Renato Epifânio

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