• PT
  • EN
  • Paine, Thomas [Dicionário Global]

    Paine, Thomas [Dicionário Global]

    Thomas Paine nasce em Thetford, condado de Norfolk, a 29 de janeiro de 1737. O seu pai tinha como profissão fazer espartilhos e a família vivia modestamente. Com poucos recursos económicos, a família não lhe deu a possibilidade de prosseguir regularmente os seus estudos. Todavia, o entusiasmo de Paine pelo conhecimento, que fará dele um brilhante autodidata, levou a que sempre investisse na sua educação, de tal modo estava convencido que apenas esta poderia retirar as pessoas da miséria. Essa convicção permeia toda a sua atividade política e também a sua defesa dos direitos do homem: nos planos de reforma social apresentados no segundo volume de Rights of Man um honroso lugar é dado à educação.

    A reflexão de Paine sobre os direitos humanos começa com a definição do que é um direito: um direito é uma capacidade de realizar algo, e, ou esta capacidade se pode concretizar autonomamente, ou requer a sociedade para ser levada a cabo. Àqueles direitos que o sujeito tem autonomia para pôr em prática Paine chama direitos naturais individuais, aos que requerem o concurso da sociedade para que se possam exercer chamou Paine direitos cívicos. Todavia, os direitos cívicos têm origem nos direitos naturais do homem pré-político, o que vai implicar que a sociedade política surja com a obrigação expressa de os garantir.

    Paine defende que a condição do homem em sociedade precisa suplantar a sua condição natural. À entrada em sociedade corresponde sempre um ganho em matéria de direitos: a sociedade política é estabelecida para tornar efetivos os direitos que o homem não pode garantir individualmente. Os homens são criados por Deus com plenos direitos, iguais entre si e independentes, e a criação não é um evento que aconteceu apenas in illo tempore, de cada vez que um homem nasce é como se se repetisse esse milagre da criação: este novo ser surge dotado das mesmas características e dos mesmos direitos dos seus antecessores. A fragilidade dos sujeitos individuais determina que se estabeleçam em sociedade para melhor proteger e garantir todos os seus direitos.

    Do facto do homem constituir a sociedade política como ser já dotado de direitos decorre que a função principal da sociedade seja a de garantir e concretizar esses direitos. Daqui, Paine deriva três conclusões, que apresenta no primeiro volume de Rights of Man, a saber: a) Todo o direito positivo tem por base um direito natural; b) O poder civil é constituído pelo conjunto dos direitos naturais que os indivíduos não têm poder para tornar efetivos, mas que, quando reunidos e “focados”, se tornam competentes para realizar os objetivos de todos; c) O poder produzido pelo conjunto dos direitos naturais, que o indivíduo confiou à sociedade para que se tornassem efetivos, não pode ser aplicado para invadir os direitos naturais, que o indivíduo reteve para si e cuja capacidade para os efetivar depende apenas do sujeito.

    Em qualquer caso, o indivíduo permanece na posse de todos os seus direitos em sociedade, já que os direitos civis têm por fim a defesa e concretização dos direitos cuja realização pelo indivíduo não é viável, mas não podem impedir a realização dos direitos naturais individuais, para cuja realização o sujeito individual está perfeitamente capacitado.

    À categoria dos direitos naturais individuais pertencem vários direitos: a liberdade religiosa – cada indivíduo pode e deve venerar a Deus autonomamente; a capacidade de julgar de cada homem e o seu direito a ser juiz em causa própria, embora o indivíduo por si só não tenha a capacidade para fazer cumprir uma sentença e precise da sociedade para garantir esse direito; a liberdade de pensar e decidir acerca do seu futuro, nomeadamente o político – o direito de voto, no qual se baseiam todos os outros direitos, pode ser exercido autonomamente pelo sujeito.

    De todos estes direitos apontados anteriormente, o direito a julgar em causa própria, e a capacidade para o exercer individualmente, com a concomitante impossibilidade de fazer aplicar a sentença sem que a sociedade intervenha, levanta uma questão importante, relacionada com a harmonização do exercício dos dois tipos de direitos: o direito para o qual o sujeito é autónomo em relação à sua realização e o direito que requer o concurso da sociedade para a sua concretização. É difícil que não haja conflito entre direitos privados e cívicos; se o sujeito individual está em condições de julgar a sua causa e está em condições também de conceber qual seria a pena adequada, e depois precisa que a sociedade o respalde para a concretização desse direito, há que perguntar o que acontece quando a sociedade não o acompanha no veredicto, sobretudo, não se entende como a divergência de critérios, mais que possível, quase certa, não constitui uma ameaça para a sociedade, nem se entende como essa dificuldade não é discutida por Paine. Por alguma razão, outros autores sublinharam a dificuldade em se ser um bom juiz em causa própria, pela inevitável interferência das inclinações, na observação do que nos diz respeito e nas decisões humanas, mesmo as racionais, como Kant, seu contemporâneo, bem sublinhou.

    O sujeito congrega-se em sociedade para obter o que, individualmente, não consegue obter, mas, em Rights of Man, Paine afirma: “a sociedade não lhe concede nada. Cada homem é um proprietário em sociedade, e traz para a sociedade o capital no que respeita aos direitos” (FONER, 1945, I, 276), ideia que reitera em Dissertation on the First Principles of Government: “A Sociedade é a guardiã não a concessora” (FONER, 1945, II, 584), dos direitos. Se é verdade que, em seu entender, os direitos são prévios à constituição da sociedade e não é ela que os concede, também é verdade que a sociedade é a garantia do seu usufruto e não se pode negar que isso representa uma aquisição importante.

    O homem vive em sociedade antes de viver sob o Governo e, hipoteticamente, poderia viver apenas na dependência da sociedade indefinidamente. Em muitas condições, a sociedade civil supre a existência de um governo. Todavia, dada a circunstância da imperfeição humana não permitir a cada um o usufruto dos seus direitos sem que seja necessário limitar as pretensões ilegítimas de outros, torna-se necessário o Governo, mas, no entender de Paine, enquanto a sociedade política é vista como virtuosa, o Governo será sempre um mal necessário.

    Qualquer forma de Governo está ao serviço dos direitos do homem e toda a sociedade política que veja ameaçados os seus direitos tem legitimidade para alterar a sua forma de Governo de modo a defendê-los melhor. O direito a votar nos seus representantes é, pois, o direito no qual todos os outros direitos se sustentam, daí que o Governo baseado num sistema representativo seja o único a reconhecer o homem como pessoa, independentemente de possuir propriedade ou não, e o único a garantir a sua proteção, porque o direito à propriedade é apenas um dos direitos a proteger, e não é o mais importante, a proteção da pessoa humana é mais sagrada do que a proteção da propriedade.

    Enquanto no primeiro volume de Rights of Man a preocupação de Paine com a promoção do bem comum se manifesta através de aspetos concretos de menor intervenção estatal, tais como redução de impostos e melhoria da educação das populações, no segundo volume de Rights of Man – Principle and Practice, é conferido um papel mais interventivo ao Governo. No final de Rights of Man II, Paine propõe uma profunda reforma social, que pode ser caracterizada como uma antecipação do Estado-Providência e onde preconiza medidas tendentes a garantir os direitos do homem.

    Assim, em favor do direito ao trabalho e à integração na sociedade, Paine propõe a criação de instituições de proteção em caso de indigência transitória, ocasionada por desemprego, pensando sobretudo nas pessoas que se deslocam para as grandes cidades. O que propõe é a criação de uma espécie de centro de ofícios – onde fosse possível acolher pelo menos seis mil pessoas em dificuldades simultaneamente. Onde fosse possível aprender e exercer um grande número de ofícios, o que permitiria aos desempregados transitórios conseguirem uma ocupação cuja remuneração lhes garantisse, por um lado, o pagamento do seu alojamento e alimentação – que seriam também facultados nas mesmas instalações – e, por outro lado, parte do seu vencimento estaria a ser acumulada para lhes ser entregue no final do programa de reinserção no mundo do trabalho. Este programa seria calculado para apoiar durante três ou quatro meses os desempregados, mas poderia ser renovado sempre que necessário, e também poderia proporcionar qualificação a quem a não tinha, habilitando-o para um melhor trabalho à saída.

    Das medidas sociais propostas faz também parte um subsídio de casamento destinado a apoiar o princípio de vida das famílias, a atribuir mediante solicitação, e um subsídio de natalidade para apoiar os pais no nascimento de uma criança, a aplicar também a todos os que o requeressem, presumindo que quem não tivesse necessidade não os iria solicitar.

    Propõe ainda um subsídio destinado à educação das crianças que deveria ser confiado aos pais, com obrigação de prestar contas do seu uso na paróquia a que se pertencia. A educação, para ser útil aos pobres, deveria estar no local, e o melhor método para conseguir isto era permitir um sistema tutorial em que pessoas idosas se ocupassem dessa tarefa. A soma atribuída para pagar a esses professores tutores seria modesta e Paine chega a sugerir que as viúvas de clérigos com poucos recursos pudessem ministrar a educação e encontrar assim uma fonte de rendimento. O seu objetivo era resolver deste modo dois problemas sociais: o da educação, cuja falta considerava ser o flagelo da sociedade e a responsável pela miséria dos pobres, e o do apoio na subsistência de uma faixa da população particularmente desprotegida: as viúvas pobres.

    Das suas propostas sociais faz também parte um esquema de pré-reforma que abrangeria os trabalhadores a partir da idade de 50 anos e um esquema de reformas, a aplicar a partir dos 60 anos, ambos estavam destinados a prover às necessidades da classe trabalhadora, que chegaria à velhice sem grandes meios de subsistência. Todos deveriam ser apoiados no final da vida, o que julgava ser um direito, rechaçando sempre a ideia de se tratar de caridade.

    O autor propõe ainda um subsídio de enterro, a atribuir em favor daqueles que, deslocando-se em trabalho, se encontrassem doentes e viessem a falecer longe dos seus familiares e amigos.

    Ao propor o que anteriormente apresentámos, o autor parece deixar-se entusiasmar pelas mudanças que julga poderem garantir os direitos do homem e abandona a sua postura inicial, mais compatível com as doutrinas económicas da época de não intervenção estatal, para adotar uma outra postura mais interventiva. A principal solução encontrada para fazer face às despesas acarretadas por estas reformas, para além da aplicação das receitas dos impostos já existentes, é a criação de um novo imposto, particularmente agressivo, sobre a propriedade fundiária. Este imposto tinha um duplo propósito, por um lado, provia o Governo dos meios necessários à implementação das reformas propostas e, por outro lado, erradicava os efeitos da lei da primogenitura, acerca da qual Paine era muito crítico: as famílias nobres, ao reconhecerem apenas um dos filhos como herdeiro, através da vinculação da propriedade ao filho varão mais velho, ou, no caso de não existir filho varão, ao parente varão mais próximo, deserdavam os filhos mais novos e todas as filhas, e votavam-nos à dependência, ao sustento a expensas do erário público, ocupando cargos inúteis na corte e em organismos públicos.

    Paine propõe um imposto progressivo que tenderia a tornar-se incomportável no caso de propriedades com um elevado rendimento. Esta medida, embora apareça como contraditória em relação a uma atitude preconizada no primeiro volume de Rights of Man, de um Estado mínimo com muito pouca intervenção, é a consequência natural de tentar que o Governo tenha capacidade financeira para garantir a aplicação das reformas e, simultaneamente, resolver a injustiça social do regime de morgadio.

    Paine propõe a criação de um imposto progressivo que penalizasse as propriedades de maior rendimento. A partir de um rendimento de 23 mil libras (23.000 £) anuais, o imposto seria tão elevado, que a única solução seria dividir a propriedade. No primeiro volume de Rights of Man, quando Paine se manifesta contra a intervenção estatal, reconhece que essa intervenção poderia causar mais danos que benefício; no caso particular deste imposto, Paine parece não ter equacionado que bastaria a recusa por parte dos proprietários da terra em arrendar a sua totalidade, que era habitualmente essa a fonte do seu rendimento, para diminuir o rendimento das terras até ao limite sustentável para o regime de morgadio, o que iria causar fome, pela redução da produção e maior miséria nas classes sem terra.

    Deve notar-se que as grandes propriedades das famílias nobres eram vistas em Inglaterra como uma proteção de toda a sociedade contra potenciais abusos por parte do rei. De tal modo isto era assim, que a forma como a Inglaterra decidiu diminuir a capacidade de resistência da Irlanda passou, justamente, pela eliminação do regime de morgadio, garantindo que em duas ou três gerações todos seriam pobres.

    Apesar de Paine ser republicano e de estar convencido de que toda a Europa seria, a breve trecho, republicana, após a experiência da América e da França, as reformas que propõe seriam para aplicar na Inglaterra monárquica. É justo pensar em Paine como um visionário no ambiente cultural da sua época e, ainda hoje, algumas das reformas que propõe podem ser vistas como arrojadas. Espera-se que esta breve introdução entusiasme o leitor a conhecer mais pormenorizadamente a sua doutrina sobre os direitos humanos e as suas propostas políticas para os tornar efetivos.

    Bibliografia

    CLAEYS, G. (2020). Thomas Paine: Social and Political Thought. Routledge: London.

    CONWAY, M. D. (ed.) (1894). The Writings of Thomas Paine. (vols. I-III: 1779-1804). New York/London: G.P. Putnam’s Sons.

    FONER, Ph. S. (ed.) (1945). The Complete Writings of Thomas Paine. Ph.D. With A Biographical Essay, and Notes and Introductions Presenting the Historical Background of Paine’s Writings. (2 vols.). New York: The Citadel.

    FENNESSY, R. R. (1963). Burke, Paine, and the Rights of Man: A Difference of Political Opinion. Martinus Nijhoff: The Hague.

    LEVIN, Y. (2014). The Great Debate: Edmund Burke, Thomas Paine, and the Birth of the Right and Left. Basic Books: London.

    MOREIRA, I. (2010). “As Reflections on the Revolution in France de Edmund Burke e a resposta de Thomas Paine em The Rights of Man” (93-118). In C. Morujão & C. Oliveira (coord.). A ideia de Europa de Kant a Hegel. Lisboa: Universidade Católica Editora.

    MOREIRA, I. (2021). “Estudo introdutório”. In T. Paine. Direitos do Homem. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

    MOREIRA, I. (2022). “Thomas Paine: Um kantiano avant la lettre e o papel da constituição republicana para a promoção da paz”. Estudos Kantianos, 10 (1), 77-90.

    PHILP, M. (2018). Reforming Ideas in Britain: Politics and Language in the Shadow of the French Revolution, 1789-1815. Cambridge: Cambridge University Press.

    Autora: Ivone Moreira

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.