Paiva, Vicente Ferrer Neto [Dicionário Global]
Paiva, Vicente Ferrer Neto [Dicionário Global]
Vicente Ferrer Neto Paiva (OLIVEIRA, 2003) nasceu a 27 de junho de 1798, no lugar do Freixo, freguesia de Vilarinho, concelho da Lousã.
Lente de Direito, jurisconsulto, deputado liberal, ministro da Justiça, eclesiástico e fidalgo da Casa Real, apontado como arauto representante do Jusnaturalismo e o introdutor do Krausismo em Portugal, a doutrina do filósofo alemão Karl Krause. A corrente que defende, o Direito Natural, é a harmonia entre a razão e a fé.
Aprendeu as suas primeiras letras e os princípios da latinidade com seu tio pároco, irmão do pai, prior da freguesia e seu padrinho de batismo, de quem recebeu o mesmo nome. Aos 14 anos, em 1812, vai para Coimbra frequentar o 3.º ano de Latim no Colégio das Artes. Concluídos os estudos preparatórios, matricula-se, em 1815, no 1.º ano Jurídico da Universidade. Passou, depois do 2.º ano deste curso, a estudar na Faculdade de Cânones, onde completa a licenciatura em 1820, doutorando-se a 29 de julho de 1821. Em 22 de abril de 1822 foi habilitado para a classe de opositor na Faculdade de Cânones, no mesmo ano em que assume a presidência da Câmara Municipal da Lousã.
Entretanto, a 14 de setembro de 1830 toma posse como professor para as cadeiras sintéticas de Direito Canónico. Perseguido pelos miguelistas, dadas as suas opiniões liberais, foi demitido e afastaram-no por quatro anos, entre 1830 e 1834, da vida universitária. Ateia-se a guerra civil em 1832, que dura até 1834, entre os liberais constitucionalistas e os absolutistas, provocada pela disputa na sucessão ao trono. Com a restauração do governo liberal, por decreto de 14 de julho de 1834, foi novamente nomeado oitavo lente da Faculdade de Cânones, incumbido de reger a segunda cadeira de Direito Natural, chamada de Direito Público Universal e das Gentes, criada em 1805.
Nas dissidências entre o Partido Liberal, em 1836, Ferrer associa-se ao Partido Cartista (Conservador), em oposição ao Partido Progressista. Depois de jurada a Constituição de 1838, a 9 de dezembro, é nomeado deputado pelo círculo de Arganil para as Cortes Ordinárias, legislatura que cumpre até à dissolução da Assembleia, em 25 de fevereiro de 1840. Neste impasse, data de 1839 a publicação da sua primeira obra, pela Imprensa da Universidade, sobre os Elementos de Direito das Gentes (PAIVA, 1939). Dita a ciência que trata das modificações do Direito Natural Puro, aplicado às relações sociais internacionais, que existem entre nações, tanto no tempo de paz como de guerra. Importa que a liberdade dum seja limitada pela liberdade dos outros e, por conseguinte, é importante que todos trabalhem não só o desenvolvimento individual, como também da vida social.
Como não voltou a ser eleito político, dedica-se ao ensino, de 1842 a 1851, e canaliza os seus esforços para a Filosofia e a publicação de obras. Em 1843 agracia-nos com o Curso de Direito Natural, Segundo o Estado Actual das Sciencias, Principalmente em Allemanha (PAIVA, 1843), professado aos estudantes do 1.º ano da Faculdade de Direito. Surge não só pela importância do Direito Natural, a base de toda a jurisprudência, senão pelo desejo de dar a conhecer os direitos, de que a natureza dotou os homens, e as obrigações que lhes impôs, proclamando princípios eminentemente liberais, fundamentos do Liberalismo clássico onde se propaga também as ideias da liberdade – a primeira das fórmulas que entre nós revestiu a democracia. O Direito é um complexo de condições internas e externas, dependentes da liberdade humana, necessárias para a realização do destino racional, individual e social do homem e da humanidade. Cabe a este delimitar e garantir a esfera da ação jurídica.
Compêndio a que se seguiu, em 1844, a produção do seu próprio manual, intitulado Elementos de Direito Natural, ou de Philosophia do Direito (PAIVA, 1844). No seu pensamento emergem sempre ensaios que adotam uma forma de Filosofia intermediária, recorrendo não só à natureza humana para fundamentar as suas doutrinas, como às suas raízes emocionais, sobretudo de ordem religiosa e ideológica. Este livro tornou-se referência importante da Filosofia do Direito portuguesa e luso-brasileira.
Pelos anos de 1842 a 1843 exerce o cargo, em Coimbra, de provedor da Santa Casa. Na sua administração fez a transferência de todos os serviços para o Colégio Novo ou da Sapiência. A Faculdade de Direito, criada em 1836 pela união das antigas Faculdades de Cânones e Leis, forneceu um grupo restrito de lentes que são recrutados maioritariamente para a provedoria da Misericórdia. A Universidade, instituição produtora de ideologia e de governantes, detém os professores que se afirmam como a elite incontestada da urbe. Ao que não é estranho constatar, à época, fortes rivalidades políticas e ideológicas expressas nos dirigentes das Misericórdias. Em evidência, um elevado número de homens que abraça a causa liberal e, ao mesmo tempo, representa os desígnios da Igreja.
No final da década, em 1849, apresenta em conselho da Faculdade de Direito O Cadastro, ou Resposta à Pergunta: Se o cadastro pode ser organizado de modo, que sirva para prova da posse, e titulo da propriedade (PAIVA, 1849) e de base para o sistema hipotecário. No ano seguinte, os Princípios Geraes de Philosophia de Direito, ou Commentario á Secção I da parte I, dos Elementos de Direito Natural, ou de Philosophia de Direito (PAIVA, 1850), atendendo à necessidade de desenvolver as doutrinas que haviam sido adotadas para manuais nas disciplinas lecionadas na Universidade de Coimbra. Demanda o Direito subministrar ao homem as condições necessárias para alcançar o seu fim individual e garantir a sua livre atividade. Nesse ano faz parte da delegação remitida à Câmara de Pares, contra o projeto de lei que oprimia a imprensa periódica e limitava a liberdade de ensino.
Já fora, e será, em 16 de novembro de 1851, eleito deputado pelo Colégio Eleitoral de Coimbra, de novo, para as Cortes de 1852. Membro para dar parecer no ato adicional à Carta Constitucional. Nessa altura desloca-se a Madrid e assenta laços culturais e relações literárias entre a Universidade de Coimbra e a Universidade Central de Madrid. De 30 de março a 25 de junho de 1854, data a sua participação no jornal oposicionista O Popular, onde escreve artigos que versam questões do ensino público e da defesa da Universidade.
Até ao ano de 1856, volta a ficar inativo da vida política, sendo novamente reeleito, no dia 9 de novembro, pelo círculo de Coimbra e também pelo círculo de Goa, sendo empossado ao cargo de ministro da Justiça e dos Assuntos Eclesiásticos do Governo pelo Partido Histórico (Progressista), no dia 14 de março de 1857. Este ministério dura apenas até 4 de maio do mesmo ano. Neste mesmo dia apresenta demissão, por não se encontrar de acordo com a Concordata assinada, pelo ministro Rodrigo da Fonseca, com a Santa Sé. Ferrer ergue-se, defensor das prerrogativas da corte e dos direitos do Padroado português, aqui e além-mar, no Oriente – “estes reinos e terras innumeraveis, que ainda hoje nos recordam a gloria dos nossos guerreiros e descobridores, e o espirito religioso dos nossos maiores…” –(GOMES, 1907, XII, 126), portanto, revela-se um protetor regalista da Coroa e da Igreja lusitana.
De 1850 a 1859 fez parte da redação do projeto do novo Código Civil português, incumbido de rever e examinar cuidadosamente o seu processo de elaboração. Em 1859, propõe algumas emendas de teor filosófico, na sua publicação de Reflexões sôbre os Sete Primeiros Titulos do Livro Unico da Parte I do Projecto do Codigo Civil Portuguez (PAIVA, 1859), procurando afastar interpretações dúbias dos 52 primeiros artigos mencionados no Código. Um dos pontos em questão introduzia alteração ao projeto inicial sobre o casamento civil, que provocou celeuma entre os intervenientes e insultos no país em geral. Pela primeira vez, propunha-se, sem rodeios, que o casamento civil fosse acessível a todos, católicos e não católicos, consoante vontade dos contraentes. Os que casam civilmente não são obrigados a declarar a sua religião, valor de distinção puramente teórico e platónico. Todos absolutamente, nas favoráveis condições, podem contrair o casamento civil, declarado num contrato perpétuo feito entre duas pessoas de sexo diferente, com o fim de constituírem legitimamente família.
Eleito em várias legislaturas, por fim, ocupa o cargo de vice-presidente da Assembleia em 24 de dezembro de 1861. A partir de 9 de janeiro de 1863, não volta a tomar assento na Câmara de Deputados, em virtude de ser nomeado Par do Reino pela Carta Régia de 30 de dezembro de 1862. Nesse ano, redigiu o radicalíssimo Relatório e Projecto de Lei sobre as Congregações Religiosas (PAIVA, 1862), onde preconiza a extinção pura e simples das ordens religiosas. Uma necessidade política, visto ocuparem o lugar onde repousa a liberdade constitucional, respondendo, nesta, às movimentações das forças retrógradas no ataque permanente às instituições liberais e à liberdade individual e de indústria, os baluartes do novo regime. Qualquer tentativa de restabelecer as congregações e seus bens eclesiásticos encobre o pensamento de restaurar a escravidão, seja política ou do disfrute das terras. Ferrer assume atitudes anticlericais na questão das Irmãs da Caridade. Embora respeitador da religião, no seu entender, não devemos estar subordinados aos seus dogmas.
Pouco depois ascende ao Pariato e, a 10 de agosto de 1863, toma posse como reitor da Universidade de Coimbra. No decorrer fizeram-se reformas importantes, como a extinção do exame privado, passando a ser público. No ano seguinte, pede demissão, desgastado pela desordem e os tumultos provocados pelos estudantes, causados pela recusa do perdão de ato pedido aquando do nascimento do príncipe herdeiro D. Carlos.
Ferrer nutria um carinho especial pela instrução pública dos jovens, incrementada no direito à educação cívica e social, para que estes pudessem crescer como verdadeiros liberais. Na sua terra-natal, mandou edificar, em 1876, duas modestas casitas, fronteiras uma à outra, encimadas por uma sineta, uma Escola de meninos e outra Escola de meninas.
Em fins, entretinha-se a emendar e a rever as sucessivas edições, até 1883, da sua Filosofia do Direito – considerado o evangelho científico do Liberalismo português. Aceitou a comenda da Ordem de Nossa Senhora da Conceição e, em 17 de novembro de 1870, foi agraciado com o título, que recusou, de 1.º visconde do Freixo. Amigo íntimo do insigne historiador Alexandre Herculano, a quem profere elogio histórico (PAIVA, 1878), no Instituto de Coimbra, a 23 de maio, no ano seguinte ao da sua morte, e que o apelidava de um dos derniers romains, aquando da polémica com Rodrigues de Brito, morre na sua casa, que fora do tio, a Quinta de S. Luís do Freixo, a 11 de janeiro de 1886.
Com efeito, Ferrer foi o responsável pela formação de toda uma geração de juristas e homens do Estado portugueses. Na sua ordem de ideias depreende-se a conciliação da Filosofia de tom social de Krause, forma de Jusnaturalismo metafísico que combina o individualismo burguês com a Filosofia jusracionalista, o idealismo da crítica apriorística de Immanuel Kant. Em tudo, doutrinas que reconhecem a existência e importância dos direitos humanos. Ferrer considera que à moral pertence o domínio da interioridade e da intenção das ações humanas, e ao Direito, disciplina que regulamenta as relações puramente externas entre os homens, compete garantir as condições indispensáveis para estes, em sociedade, poderem realizar os seus fins racionais, usando da sua liberdade.
Bibliografia
GOMES, M. (1907). Historia de Portugal, Popular e Illustrada de Manuel Pinheiro Chagas (vol. XII, cap. VII). Lisboa: Empreza da Historia de Portugal.
OLIVEIRA, A. D. de (ed.) (2003). Vicente Ferrer Neto Paiva – Discursos Parlamentares (1839-1862). Lisboa/Porto: Assembleia da República/Edições Afrontamento.
PAIVA, V. F. N. (1843). Curso de Direito Natural, Segundo o Estado Actual das Sciencias, Principalmente em Allemanha. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1839). Elementos de Direito das Gentes. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1844). Elementos de Direito Natural, ou de Philosophia do Direito. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1878). Elogio Historico de Alexandre Herculano. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1849). O Cadastro, ou Resposta à Pergunta: Se o cadastro pode ser organizado de modo, que sirva para prova da posse, e titulo da propriedade. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1850). Princípios Geraes de Philosophia de Direito, ou Commentario á Secção I da Parte I, dos Elementos de Direito Natural, ou de Philosophia de Direito. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1859). Reflexões sôbre os Sete Primeiros Titulos do Livro Unico da Parte I do Projecto do Codigo Civil Portuguez. Coimbra: Imprensa da Universidade.
PAIVA, V. F. N. (1862). Relatório e Projecto de Lei sobre as Congregações Religiosas. Lisboa: Sociedade Typographica Franco-Portugueza.
Autor: Luís Esteves