Paridade [Dicionário Global]
Paridade [Dicionário Global]
No âmbito dos direitos humanos, a paridade é um vocábulo que convoca a ideia de igualdade de género, no sentido de uma igual representatividade de homens e mulheres. Com efeito, o uso da palavra “paridade” com este sentido adveio, em Portugal, por influência da França, onde se assistiu, no início do século XXI, a um amplo debate em torno da participação e representatividade das mulheres na vida política, com génese ao nível internacional e europeu. Atualmente, embora a ideia de paridade remeta ainda para esse universo da representatividade política, a sua utilização estende-se a outros domínios sociais, significando uma igual participação de mulheres e homens.
O nascimento da paridade como o novo nome da igualdade de género
Do ponto de vista internacional, a igualdade entre homens e mulheres é um princípio reiteradamente afirmado no seio da Organização das Nações Unidas (ONU), estando consignado, desde logo, no preâmbulo da Carta das Nações Unidas. Além disso, há várias décadas já se vinha afirmando a preocupação com os direitos políticos das mulheres e as condições do seu pleno exercício, expressa na Convenção sobre os Direitos Políticos das Mulheres (1954) e na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979). Esta preocupação foi reiterada nas sucessivas Conferências Mundiais da Mulher realizadas sob a égide da ONU, com destaque para a Conferência de Nairobi (1985) – realizada no fim da Década das Nações Unidas para as Mulheres, que reconheceu a necessidade de participação das mulheres na tomada de decisão política. No entanto, foi na Declaração de Pequim e respetiva Plataforma de Ação, de 1995 (produto da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres), que, pela primeira vez, se proclamou ao nível internacional o princípio da igual participação das mulheres e do equilíbrio entre mulheres e homens nos processos de tomada de decisão e, em consequência, se afirmou não só a legitimidade da adoção de medidas que promovam essa igualdade, mas a sua necessidade.
No plano europeu, é de salientar que, a partir de 1980, tanto ao nível do Conselho da Europa como ao nível da União Europeia, a questão do equilíbrio entre mulheres e homens nos processos de tomada de decisão tornou-se uma das principais preocupações no âmbito da igualdade de género. Com efeito, a União Europeia começou a adotar programas de ação quinquenais para a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e a questão do acesso das mulheres ao poder (particularmente, a lugares de topo em termos de tomada de decisão) foi enfatizada, sobretudo, a partir da década de 1990. Além disso, as instituições europeias (particularmente, a Comissão e o Parlamento Europeu) utilizaram vários outros instrumentos, como relatório e conferências, que, embora não vinculativos, se afiguraram muito relevantes na prossecução de políticas públicas promotoras da paridade. Ao nível da legislação, afigura-se pertinente notar que apenas com o Tratado de Amesterdão foi dada competência à União Europeia para combater a discriminação em razão do sexo, permitindo a adoção de medidas de discriminação positiva para o sexo sub-representado, sem que isso fosse considerado discriminação, o que veio a ser reafirmado, também, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
O Conselho da Europa, por sua vez, revelou ser um fórum essencial para o desenvolvimento e consolidação da ideia de paridade. Em 1988, o Comité de Ministros adotou a Declaração sobre a Igualdade entre Homens e Mulheres e, em 1989, é sob a sua égide que surge a expressão “democracia paritária”, formulada por Claudette Apprial, secretária do Comité para a Igualdade do Conselho da Europa, que encomendou a Elisabeth Sledziewski um relatório sobre esta ideia, o qual contém as ideias filosóficas fundadoras do conceito de paridade. É neste âmbito que, pela primeira vez, se discute a paridade.
Segue-se, em 1992, o colóquio europeu “Femmes au pouvoir”, organizado pela Comissão Europeia, que produziu a Declaração de Atenas, na qual se afirmava a paridade como uma exigência decorrente da própria ideia de democracia e do valor da igualdade entre mulheres e homens. A declaração foi assinada e apoiada por mulheres que ocupavam ou haviam ocupado, à época, posições de liderança, entre as quais Simone Veil, Leonor Beleza e Gro Harlem Brundtland.
Em França – país que liderou as políticas de quotas para a realização da paridade – a questão do acesso das mulheres ao direito de cidade, ou seja, a terem um estatuto de cidadãs igual ao dos homens, com os mesmos deveres (como o de serem julgadas e condenadas, vendo as suas penas executadas, ou de pagarem impostos) e os mesmos direitos (desde logo, o direito de eleger e serem eleitas) remonta à Revolução Francesa, como nos recorda a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olympe de Gouges. No entanto, seria necessário aguardar largas dezenas de anos para que as mulheres tivessem acesso ao sufrágio, o que veio a acontecer em 1944. Sucede que, nas décadas subsequentes, a participação das mulheres francesas na vida política ficou muito aquém da sua participação na vida laboral e social. Em 1946, 6,7% dos deputados à Assembleia eram mulheres. Esta cifra sofreu um retrocesso, sendo em 1979 apenas 3,2%, e persistiu diminuta até à última década do século XX, ficando-se, em 1995, pelos 5,6 %. Estes números colocaram em evidência o problema da falta de representatividade das mulheres na política, que era já há décadas uma preocupação ao nível internacional e europeu.
Em 1982, Gisèle Halimi (que viria a ser uma das mais proeminentes defensoras da paridade) propôs uma alteração legislativa para o estabelecimento de uma quota de 25% para o sexo menos representado nas listas submetidas às eleições municipais. Esta legislação veio a ser rejeitada pelo Conselho Constitucional, com fundamento no princípio republicano da universalidade e indivisibilidade do povo francês, inscrito na sua Constituição.
A partir dessa data, mas particularmente na década de 1990, foram vários os momentos que propiciaram a geração de um consenso em torno da paridade. Com efeito, em 1992, houve várias chamadas de atenção para a ausência das mulheres dos lugares de tomada de decisão política. Frequentemente, eram comparados os números de mulheres francesas na política ativa face a outros países europeus, de modo a enfatizar a dimensão do problema em França. Criaram-se associações com o objetivo de promover a paridade e publicaram-se obras em sua defesa, com destaque para Au Pouvoir Citoyennes! Liberté, Egalité, Parité, de Françoise Gaspard, Claude Servan-Schreiber e Anne Le Gall. Em 1993, Halimi organizou, na UNESCO, um colóquio internacional sobre a paridade, que granjeou forte atenção mediática. Nesse mesmo ano, em França, muitas mulheres de todo o espectro político manifestaram-se publicamente, tomando como palavras de ordem “Liberté, égalité, parité; non à l’Assemblée nationale”, e 289 mulheres e 288 homens assinaram o manifesto dos 577, pugnando pela adoção do princípio da paridade, publicado no jornal Le Monde a 19 de novembro de 1993. A paridade viria ainda a ser uma questão central das eleições presidenciais de 1995. Com a chegada de Lionel Jospin ao cargo de primeiro-ministro da França, em 1997, liderando um governo socialista, reforçaram-se as condições políticas para a tão aguardada alteração constitucional e legislativa. Em suma, várias mulheres que participavam na vida política conseguiram granjear o apoio da opinião pública e da classe política (de todos os quadrantes) para a aprovação de uma revisão constitucional, que se veio a concretizar em 1999, e que veio a possibilitar a aprovação e aplicação, um ano mais tarde, da primeira lei da paridade.
A luta pela igual representação das mulheres nos lugares de tomada de decisão teve um grande incremento nos anos subsequentes, tanto ao nível dos países que vieram a adotar legislação impositiva de quotas, como quanto aos domínios relativamente aos quais essas quotas foram adotadas. Na verdade, se em muitos países, como em França, o primeiro passo foi a adoção de quotas no domínio político, sob a égide legitimadora da ideia de “democracia paritária”, noutros países tudo começou com a imposição de quotas na administração pública. Com efeito, a questão da igualdade na tomada de decisão extravasou o domínio político, correspondendo a uma reconceptualização da própria igualdade de género, com a adoção de legislação, em vários países, também em domínios da sociedade civil, como as universidades e as instituições de investigação, os sindicatos e o mundo empresarial.
Os fundamentos filosóficos da paridade e a sua crítica
O movimento pela paridade cedo percebeu que a luta pela paridade não poderia abdicar de uma fundamentação filosófica. Este é um dos aspetos mais relevantes da noção de paridade, pois coloca em evidência as suas relações com conceitos como o universalismo, a democracia, a cidadania, ou a própria igualdade. Com efeito, se para muitos a paridade é o novo nome da igualdade de género, para outros o surgimento do conceito de paridade e o sucesso que veio a alcançar foi uma derrota para o feminismo.
Para os defensores da paridade, a diferença entre homens e mulheres não é da mesma qualidade que as outras diferenças que possamos encontrar para distinguir as pessoas entre si, como a raça ou a classe social. Desde logo, afirmam que a divisão de género é uma divisão transversal a todas as outras diferenciações: em todas elas é possível encontrar homens e mulheres. No entanto, não é apenas esse facto que torna esta distinção essencialmente diferente de todas as demais.
Na verdade, de acordo com os defensores da paridade, parece que o principal aspeto diferenciador está no facto de a divisão entre homens e mulheres ter, na sua base, uma realidade biológica: a natureza sexuada da espécie humana. A reprodução humana está dependente da junção de células reprodutoras masculinas e femininas, ou seja, a espécie humana divide-se em machos e fêmeas e é sobre esta realidade biológica que se constroem as categorias sociais “homem” e “mulher”. É certo que se trata de categorias sociais, na medida em que resultam do significado atribuído a essa diferença sexual que perpassa a espécie humana. No entanto, ao contrário do que sucede com outras diferenciações e hierarquias sociais, a distinção entre homens e mulheres não tem origem, em última instância, em fatores históricos, económicos, sociais ou culturais aleatórios, mas sim na diferenciação biológica entre machos e fêmeas que resulta da natureza sexuada da espécie humana. Em suma, e como afirma lapidarmente a filósofa Sylviane Agacinski, “não descobriremos sob os artifícios do género um sujeito neutro ou assexuado” (AGACINSKY, 2009[1998], 53). Note-se, porém, que para aqueles que defendem a paridade, sendo a diferença sexual uma realidade não apenas biológica, mas também ontológica, é essa realidade e apenas ela – ou seja, apenas a diferença sexual – que se assume como traço transversal da humanidade. Mas já não são transversais à humanidade os sentidos culturais atribuídos a essa diferença, os quais são determinados por múltiplos fatores e variam no espaço e no tempo. Por isso, ser-se homem ou mulher hoje, em Portugal, não é o mesmo que ser-se homem ou mulher, por exemplo, na China Antiga. Apesar desta diversidade, parece haver um traço comum a todas as culturas: a hierarquia entre o masculino e o feminino. A diferença sexual, em si mesma considerada, não passa de uma constatação de facto, mas a hierarquia entre os géneros é resultado do modo como se atribuíram (e atribuem) diferentes significados a essa diferença e se construíram (e constroem), a partir daí, as relações entre mulheres e homens. Apesar das várias teorias existentes, não há ainda um consenso sobre o que explica esta transversalidade da hierarquia de género.
Aqueles que advogam a paridade defendem, portanto, que para alcançar a igualdade de género é necessário repensar o próprio género humano, passando da sua identificação com o masculino para a sua identificação com o género dual, ou seja, o género humano é composto simultaneamente por homens e mulheres. A falsa neutralidade do masculino (porque significativa, outrossim, da superioridade masculina) foi denunciada em muitos domínios. Talvez um dos mais ilustrativos seja o da linguagem, muito percetível, por exemplo, no uso gramatical do género masculino com um valor genérico, isto é, abarcando tanto o sexo masculino quanto o sexo feminino.
A questão da identificação do género humano com o masculino foi uma questão central nos debates da paridade, precisamente porque a sua crítica conduziu à crítica do universalismo republicano, perspetivado como um universalismo que, na verdade, consagra o masculino. Afirma-se que o direito foi construído para a proteção dos interesses masculinos e, por isso, o sujeito de direito não é um sujeito neutro. Sob a veste da neutralidade encontra-se, na verdade, o homem. Nesta sequência, também os conceitos de cidadania, democracia representativa e igualdade são criticados, na medida em que se encontram em estreita relação com o universalismo. Com efeito, a cidadania também é vista como uma construção cultural que teve por modelo não o ser humano, homem e mulher, mas apenas a sua metade masculina e, nesse sentido, reclama-se uma cidadania sexuada. Por sua vez, a democracia representativa é criticada por não cumprir a promessa dessa representatividade, ou seja, revela-se uma democracia representativa dos interesses de apenas alguns sectores da sociedade, encontrando-se as mulheres largamente excluídas dessa representatividade. Quanto à igualdade, de um ponto de vista conceptual, foi associada pelos defensores da paridade à ideia de uma negação da diferença, o que se explica também pelo facto de aqueles que se opunham à paridade se arvorarem, ao invés, defensores da igualdade.
Ao partirem do pressuposto da essencialidade da diferença sexual, os defensores da paridade abriram a porta ao essencialismo. De facto, outro dos argumentos avançados pelos partidários desta nova conceção da igualdade centrava-se na especificidade feminina, ou seja, na existência de interesses próprios das mulheres que só poderiam ser devidamente acautelados pela sua participação direta na vida política.
Todos estes argumentos foram sujeitos a críticas, mas sem sucesso. Na verdade, o movimento pela paridade não encontrou nos seus opositores um contramovimento que abalasse o momentum político que se vinha forjando, mas apenas vozes isoladas. Facto este, contudo, que não compromete o eventual valor dos argumentos aduzidos pelos partidários da igualdade, pois, como veremos, a corrente mais significativamente oposta à paridade considerava que ela era contrária à própria igualdade de género. Alegavam que os defensores da paridade haviam identificado corretamente um problema – a falta de representatividade das mulheres na política – mas que falharam em fazer uma leitura mais alargada da realidade e em encontrar as soluções que o problema exigia. Desde logo, a falta de representatividade das mulheres na política é um facto, mas as mulheres não são as únicas que estão sub-representadas, pelo que o problema é mais vasto e prende-se com uma questão de representatividade. Critica-se, portanto, que aqueles que defendem a paridade ignorem essa diversidade da ausência de representatividade e se demitam da indagação das suas causas comuns.
No entanto, para os que criticam a paridade, existe um ponto em comum com os seus adversários: a convicção de que existe um sexismo prevalecente no domínio da política, ou seja, um monopólio masculino do universal. Porém, advogam que não é o universalismo que deve ser colocado em causa, mas sim esse domínio masculino. Assim, os opositores da paridade rejeitam que as mulheres possam ser representadas enquanto mulheres: elas devem sê-lo pelo facto de serem excluídas sem que exista qualquer fundamento para que tal aconteça. Ou seja, para aqueles que se opõem à paridade, a diferença sexual deve ser apenas e tão só um facto, pois outra solução conduzirá ao essencialismo e, com isso, abre-se a porta à criação de futuras desigualdades e destrói-se, na sua perspetiva, o postulado feminista de que a diferença sexual não deve conduzir à diferenciação social ou jurídica.
A paridade em Portugal
Em Portugal existe também uma forte associação entre a paridade e a imposição de quotas, tendo o caminho que conduziu à adoção de legislação impositiva de quotas para o sexo menos representado sido longo e fortemente influenciado pelo momentum gerado pelos eventos europeus que acima se referenciaram.
Na verdade, as quotas começaram por ser voluntárias e autoimpostas. Em 1987, 16 organizações que integravam a Secção Não-Governamental do Conselho Consultivo da Comissão da Condição Feminina (a atualmente designada CIG – Comissão para Cidadania e a Igualdade de Género) aprovaram um documento intitulado “Plataforma de Ação para a Igualdade”, que contemplava a “Participação Política” como a sua primeira área temática, abrindo assim a discussão sobre os obstáculos à participação das mulheres na política. O primeiro partido a alterar os seus estatutos para a introdução de uma quota (de 25%) para o sexo menos representado foi o Partido Socialista (PS), no início de 1988. Esta regra, porém, seria frequentemente ignorada nos anos que se seguiram.
Um momento de particular relevância, desde logo simbólica, no percurso que conduziu à adoção da Lei da Paridade foi a organização, por Maria Belo, Margarida Santos e Margarida Salema, deputadas portuguesas ao Parlamento Europeu, da iniciativa “Parlamento Paritário”, que teve lugar em 1994. Tratou-se de um fórum de discussão sobre a democracia paritária, realizado no hemiciclo, com uma participação paritária de homens e mulheres. Entre os homens que participaram estava António Guterres, secretário-geral do PS e, à época, líder da oposição, que veio a desempenhar um papel decisivo no processo de introdução de um regime de quotas obrigatórias em Portugal. A sua proximidade à Internacional Socialista (da qual viria a ser presidente entre 1999 e 2005) terá contribuído para a atenção concedida à questão da parca representatividade das mulheres nos órgãos políticos e ao seu reconhecimento como um problema de índole política e democrática. Foi no âmbito do “Parlamento Paritário” que proferiu um afamado discurso, no qual manifestou a intenção de que o PS apresentasse uma iniciativa de alteração à lei eleitoral para a Assembleia da República, que estabelecesse uma quota de participação mínima de qualquer um dos sexos, o que só veio a acontecer, porém, volvida mais de uma década.
Na verdade, os adeptos da instituição de um sistema de quotas rapidamente se aperceberam de que a solução não era consensual e que seriam certamente levantadas questões acerca da sua conformidade à Constituição da República Portuguesa, sendo provável um juízo de inconstitucionalidade, fundado, por um lado, no princípio da igualdade tal como proclamado no art. 13.º da Constituição e, por outro lado, na unidade e indivisibilidade do corpo eleitoral. Este obstáculo foi ultrapassado pela revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro), que somou às tarefas fundamentais do Estado a promoção da igualdade entre homens e mulheres (art. 9.º, alínea h) da Constituição) e alterou a redação do art. 109.º da Constituição (anterior art. 112.º), substituindo a expressão “dos cidadãos” por “de homens e mulheres” e aditando “devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”, passando então a ler-se: “A participação direta e ativa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”.
A alteração constitucional, embora sendo um fator necessário para a introdução de um regime de quotas em Portugal, não foi suficiente. Entre 1998 e 2006 foram apresentados vários projetos de lei, sem lograr alcançar, contudo, aprovação da maioria necessária na Assembleia da República para estabelecer uma quota mínima, o que só viria a suceder em 2006, com a aprovação da Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto, designada Lei da Paridade. Esta lei veio estabelecer uma representação mínima de 33,3% de cada um dos sexos nas listas de candidaturas apresentadas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais, assegurada por um sistema de “fecho éclair”, ou seja, com uma obrigatoriedade de alternância do sexo das pessoas candidatas, não podendo as listas conter mais de dois candidatos do mesmo sexo colocados, consecutivamente, na sua ordenação. O limiar de representatividade paritária foi alterado para 40% pela Lei Orgânica n.º 1/2019, de 29 de março.
Um olhar histórico sobre a presença das mulheres em cargos de poder político revela a dificuldade de, mesmo em tempos de democracia, e na ausência de medidas de discriminação positiva, fazer as mulheres entrarem nas esferas do poder político. A Assembleia Constituinte contou com apenas 19 mulheres entre os seus 250 deputados, contrastando com as atuais 85 mulheres deputadas à Assembleia da República (as quais constituem 37,2% dos deputados eleitos, uma cifra ainda assim longe da paridade real e que revela uma tendência para a uma implementação da lei por parte dos partidos que aloca mais mulheres a lugares previsivelmente não elegíveis). O atual governo – o XXIII Governo Constitucional – é o primeiro composto por um número paritário de homens e mulheres ao nível ministerial. Em Portugal, nunca uma mulher foi eleita para a presidência da República.
A ideia de que cabe ao Estado promover a igualdade entre mulheres e homens através da garantia de presença das mulheres nos lugares de poder e de tomada de decisão tem sido alargada a outros domínios para além da política. Assim, a lei n.º 62/2017, de 1 de agosto, veio introduzir a ideia de paridade (embora sem a designar dessa forma, preferindo a expressão “representação equilibrada”) nos órgãos da administração e de fiscalização das entidades do sector público empresarial e das empresas cotadas em bolsa, fixando como limiar da paridade uma proporção de pessoas de cada sexo não inferior a 33,3%. Mais recentemente, entrou na agenda política a questão da paridade na composição do Tribunal Constitucional, tendo sido apresentados (por partidos minoritários, o Bloco de Esquerda e o PAN: Pessoas-Animais-Natureza) dois projetos de lei nesse sentido, os quais foram, porém, rejeitados.
Em suma, a ideia de paridade tem sido associada com frequência à existência de quotas em lugares de tomada de decisão e de poder. Contudo, é uma ideia mais ampla, que traduz a intenção de uma presença igualitária de mulheres e homens na construção e vivência da democracia.
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Autora: Miriam Rocha