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  • Paz [Dicionário Global]

    Paz [Dicionário Global]

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948, é o documento mais traduzido da humanidade. O artigo 3º da Declaração salienta que todos os seres humanos têm o direito a uma vida em liberdade e segurança pessoal, mas explicitamente não prevê qualquer direito geral à paz. O direito à paz existe na Declaração Universal dos Direitos Humanos apenas implicitamente, uma vez que não se pode assegurar uma vida livre e segura sem paz. Só no dia 19 de dezembro de 2016, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas submeteu à votação a Declaração sobre o Direito à Paz, cujo primeiro artigo sublinha expressamente um direito humano à paz: “Everyone has the right to enjoy peace such that all human rights are promoted and protected and development is fully realized.” Esta Declaração sobre o Direito à Paz parece, porém, bastante vaga e pouco detalhada, e apenas com alguma dificuldade se pode reconhecer que esta declaração tem um caráter vinculativo. Além de não se entender muito bem o que significa o caráter vinculativo de um direito à paz, é curioso saber que a maioria do mundo ocidental, incluindo quase todos os países europeus, votou contra esta declaração, enquanto outros países, cujos governos cometeram aberta ou escondidamente violações contra os direitos humanos, votaram a favor. Esta atitude explica-se, muito provavelmente, pelo princípio internacional de não intervenção que garante que nenhum Estado interfere, direta ou indiretamente, em assuntos internos de um outro Estado. A atitude negativa do mundo ocidental perante a Declaração sobre o Direito à Paz indica que a paz representa uma questão bastante multifacetada e complexa. Ao incluir, em teoria, a proibição de intervenção nos assuntos internos de outros Estados, esta declaração elimina a possibilidade de tomar medidas contra violações dos direitos humanos cometidas, por exemplo, por ditaduras ou regimes autoritários. O facto de que os países da Europa, cuja história é quase uma sequência permanente de guerras, votarem contra a Declaração sobre o Direito à Paz é um indicador claro de uma dificuldade filosófica e política. A paz para uns pode significar uma experiência aterrorizante para outros. Efetivamente, a paz continua a ser uma contradição, uma questão irresolvida e eventualmente irresolúvel. Embora esta afirmação pareça bastante pessimista, observa-se na história cultural da Europa uma sensibilidade crescente para os diferentes significados da paz (e para as dificuldades de a concretizar). E esta sensibilidade crescente ainda permite a esperança de que a paz não seja apenas um “sonho doce” ao qual se entregam os filósofos.

    A primeira grande obra literária da Europa é a narrativa de uma guerra, contando os acontecimentos violentos de 51 dias num conflito que demorou, na sua totalidade, dez anos. A guerra entre os gregos e os troianos não foi, porém, apenas uma guerra entre os homens. Na sua realidade mitológica, a Ilíada começa com a raiva de Apolo, provocada pelo roubo da Criseida, e descreve a seguir uma guerra travada também entre os deuses que são, na imaginação de Homero, os únicos que podem começar ou acabar uma guerra. A Odisseia relata o regresso de Ulisses que pretende “salvar a sua alma” (ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν), e o grande poema épico termina com um apelo de Palas Atena, a deusa da civilização e da sabedoria, em acabar com uma guerra que destrói tudo (ἴσχεο, παῦε δὲ νεῖκος ὁμοιίου πτολέμοιο). Na Antiguidade de Homero, o início e o fim da guerra não surgem de uma decisão humana, mas sim de uma sentença divina.

    Na Teogonia de Hesíodo, a “Irene florescente” (Εἰρήνην τεθαλυῖαν), a deusa da paz e filha de Zeus e de Têmis, aparece junto a Eunomia e a Dice que representam a ordem natural das coisas e a justiça. Nesta conceção mitológica, a paz está ligada a uma ordem natural e garante uma vida justa, mas não é uma obra humana, mas sim uma dádiva dos deuses. Uma das comédias mais conhecidas de Aristófanes intitula-se A Paz (Εἰρήνη) e descreve como o viticultor Trygaios vai ao Olimpo para perguntar a Zeus por que razão os gregos se encontram em guerras permanentes. Trygaios encontra apenas Hermes que lhe conta que os deuses recuaram perante o ruído da guerra, e que Irene (ou Eirēnē enquanto título original da peça) está fechada num barranco pelo demónio Pólemo que representa a guerra. Com a ajuda de Hermes, inicialmente ainda hesitante, Trygaios consegue libertar Irene. No final da comédia, realiza-se uma grande festa em honra de Irene, Trygaios casa-se com Opora, a deusa das bênçãos da colheita, e o coro elogia as alegrias da vida pacífica no campo. Nesta comédia, a guerra é um assunto ambíguo, não sendo necessariamente uma condição natural. Na sua explicação por que razão os deuses se retiraram, Hermes afirma que os próprios deuses sempre pretendem oferecer a paz aos seres humanos, mas os próprios homens preferem aparentemente mais a guerra. Contudo, nesta comédia de Aristófanes, foi a vontade e iniciativa de um humano em libertar a deusa da paz, conseguindo assim assegurar pacificamente a sua colheita (simbolizada a partir do casamento entre Trygaios e Opora).

    A filosofia grega encara a questão da paz de uma forma diferente e parte da convicção de que a guerra é o estado natural na convivência humana. Numa das frases mais conhecidas de Heráclito lê-se que a guerra representa o pai e rei de todas coisas (πόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δέ βασιλεύς), e Clínias – um dos interlocutores nos Nómoi de Platão – salienta, logo no início deste diálogo platónico, que a paz é apenas uma ilusão. Na verdade, o estado natural é uma guerra não declarada de cidades-estados contra cidades-estados. Um dos outros interlocutores – um Ateniense sem nome, mas provavelmente o próprio Platão – não discorda de uma forma direta, mas faz uma diferenciação entre duas formas de guerra. Assim, existem as guerras exteriores de cidades-estados contra outras cidades-estados, e há guerras dentro de uma cidade-estado, ou seja guerras civis, que são, para todos os interlocutores do diálogo, as piores guerras de todas. A guerra em geral é comparável a um corpo doente, e a vida boa (eudaimonia – εὐδαιμονία) será possível apenas num estado de paz individual e social. No final do diálogo, o Ateniense reconhece, porém, que mesmo os tempos de paz deviam ser aproveitados para a preparação da guerra, treinando os jovens, por exemplo, no tiro com arco e flecha, no lançamento de dardo ou na equitação.

    Ao olhar para a filosofia grega na sua totalidade, a paz tem dois significados principais e é interpretada, quase sempre, como um estado interior. Por um lado, Aristóteles refere-se à homonoia (ὁμόνοια), que significa uma paz social ou uma concórdia no interior de um grupo unido de cidadãos, necessária para a existência estável de uma polis. A homonoia, ou harmonia civil dentro de uma cidade-estado, é o tema primordial do seu texto Política e tem os seus pilares principais numa justiça constitucional, numa forte classe média, e no respeito mútuo de todos os cidadãos. Assim, a paz é a condição essencial para uma vida boa, mas restringe-se, na visão do filósofo grego, à ordem doméstica de uma polis singular e não se refere a outros grupos civilizacionais. Por outro lado, existem as noções da eudaimonia (εὐδαιμονία) e da ataraxia (ἀταραξία). A noção de eudaimonia tem interpretações diferentes, mas significa, de uma forma geral, a tentativa de chegar a uma vida boa e feliz cuja condição fundamental é a paz interior da própria pessoa. A insistência numa paz interior pessoal é ainda mais visível na noção epicurista da ataraxia. Os epicuristas pretendem um estado mental que não se deixa influenciar por acontecimentos exteriores, garantindo assim uma tranquilidade espiritual. À noção da ataraxia, os estóicos acrescentaram o conceito da apatheia (ἀπάθεια), uma impassibilidade que permite uma vida desapaixonada, autossuficiente e sem exigências materiais dentro de um mundo estigmatizado por conflitos permanentes ou vaidades fúteis. A poesia do heterónimo pessoano Ricardo Reis pode ser entendida como um modelo moderno deste estilo de vida e torna-se exemplar no seu poema sobre os jogadores de xadrez que continuam sossegadamente o jogo, rodeados por casas ardidas, mulheres violadas ou crianças trespassadas por lanças. O ideal estóico parte da convicção de que uma vida boa não depende de bens exteriores, destacando que a paz é sobretudo uma atitude subjetiva e individual, uma serenidade interior, um estado psíquico livre dos afetos.

    A noção grega de uma paz interior dentro de uma sociedade homogénea e o ideal estóico influenciaram um texto que é considerado, ainda hoje em dia, um manual exemplar para a construção de uma sociedade justa. Em 44 a.C., alguns meses depois do assassinato de Júlio César e um pouco antes da Terceira Guerra Civil da República Romana, Cícero acabou a sua obra De Officiis na qual descreve as obrigações da vida individual e política. Embora a obra não seja exatamente um texto sobre a paz, a dignidade humana é o ponto central da argumentação. Nos tempos de Cícero, a paz era simplesmente a ausência da guerra que foi descrita claramente como uma agressão contra a dignidade humana. Isto é, a questão central da sua obra não é a própria paz, mas sim a obrigação universal de fazer justiça (iustitia), considerada como a virtude mais importante logo depois da prudência, a todos os seres humanos que representa um fundamento essencial para a paz. Uma das regras importantes consiste em evitar exercer violência em proveito próprio, e a obra De Officiis patenteia uma atualidade inesperada, uma vez que Cícero define muito claramente as formas de injustiça. Uma injustiça passiva é cometida, por exemplo, no momento em que se recusa o apoio material a um ser humano, a um grupo de homens ou a uma nação que sofrem, sem culpa própria, qualquer forma de violência. A dignidade humana é universal, o que implica a obrigação ética de apoio no momento em que a mesma está posta em causa. Uma vez que a sua vida foi marcada por uma sequência de guerras civis, e influenciado por Platão, Cícero entendeu a paz, sob determinadas condições, como uma preparação para a guerra. Ou seja, na sua tentativa de salvar a República Romana, Cícero argumentou que uma paz sob o domínio de Marco António seria pior do que a servidão. A tentativa de salvar a paz sob as condições da República Romana ia conduzir consequentemente a uma guerra contra Marco António, e não é, portanto, surpreendente que Cícero, enquanto mediador de paz, utilizasse, na sua 7ª Filípica, o antigo provérbio “se queres a paz, prepara-te para a guerra” (si vis pacem para bellum). Assim, na sua conceção da justiça, que representa implicitamente uma reflexão sobre a paz, Cícero refere-se à noção dupla da filosofia grega que compreende a paz como uma harmonia social interior de um grupo e como uma tranquilidade subjetiva do indivíduo. No seu pensamento praticamente não há nenhuma noção acentuada de uma paz política entre Estados ou nações diferentes. Na Antiguidade Clássica, as guerras exteriores foram consideradas quase todas como inevitáveis, e as conceções sobre a paz reduziram-se, política e individualmente, a um contexto interior. Mesmo a época da pax romana refere-se apenas a uma paz interior dentro do Império Romano que continuou, neste período de cerca 250 anos, permanentemente em conflitos ou guerras ao longo das suas fronteiras exteriores.

    A primeira reflexão mais abrangente sobre a paz surge apenas no século V e foi desenvolvida por Santo Agostinho. No livro XIX da sua obra De Civitate Dei, e referindo-se explicitamente a Cícero e à filosofia grega, Santo Agostinho entende a tranquilidade interior, o controlo dos impulsos e um equilíbrio entre corpo e espírito como os pilares mais importantes de uma vida feliz ou da paz individual. Estas três dimensões individuais correspondem à realidade social dos homens, e a sua argumentação baseia-se numa ordem que garante a justiça social, estabelecendo a posição certa de todas as coisas e de todos os homens dentro de uma sociedade. Embora seja mencionado brevemente que a vida feliz seja desejável para todos os povos do mundo, ainda não há nenhuma reflexão detalhada sobre a possibilidade de uma coexistência pacífica entre Estados diferentes. Santo Agostinho refere-se às diferenças linguísticas entre os diferentes povos que impedem uma comunicação pacífica, e mesmo as guerras supostamente justas representam um infortúnio, tendo em conta que as mesmas foram provocadas por pessoas injustas. Nesta parte da argumentação, Santo Agostinho antecipa Thomas Hobbes ou Immanuel Kant, supondo implicitamente que o estado natural entre os homens é uma guerra praticamente contínua. A injustiça pode ser considerada lamentável, mas é uma caraterística do homem. A paz pode ser um desejo natural dos homens, mas não é um estado natural na convivência entre eles, e mesmo em tempos de paz, a vida social é assinalada por “sombras escuras”. Para Santo Agostinho, a vida de uma sociedade humana é assombrada por erros e atribulações. Na sua argumentação torna-se visível o grande paradoxo na relação entre guerra e paz, já debatido por Aristóteles: a intenção principal em travar uma guerra consiste na criação da paz. Um agressor não recusa a paz, mas quer criar a paz de acordo com as suas condições. Uma solução desta situação paradoxal é oferecida pela perspetiva cristã. Santo Agostinho identifica o maior mal (malorum libri) na descrença que impede um conhecimento verdadeiro das virtudes e os esforços pela vida eterna, entendida como o bem mais alto (finibus bonorum). A vida eterna torna-se apenas possível a partir de uma paz entre o homem mortal e Deus que traz consigo uma tranquilidade da ordem (tranquillitas ordinis). A paz na sua Cidade Celeste é representada por uma comunidade absolutamente ordenada e harmoniosa no gozo mútuo em Deus. Ou seja, a paz está garantida a partir da tranquilidade da ordem que é uma organização dos seres iguais e desiguais, distribuindo a cada um o seu lugar. Esta tranquilidade da ordem impõe-se também à vida terrestre, ou à sociedade humana, e consiste numa concórdia harmoniosa em mandar e obedecer dos que coabitam nesta sociedade. Todavia, a paz em Santo Agostinho continua a ter um caráter escatológico, e a paz terrestre está sempre limitada e prejudicada por razões de descrença que existirá sempre entre os homens. Na terra, um homem pode considerar-se feliz ao viver numa paz que resulta de uma vida honesta. Mas em comparação com a beatitude final da vida eterna, esta felicidade verifica-se antes como uma infelicidade. A elaboração de uma paz celeste é, ao mesmo tempo, fascinante e trágica. Por um lado, pela sua dependência de um poder extraterrestre ou da graça divina, a paz ganha uma plenitude conceptual que supostamente já não pode ser ultrapassada por uma outra conceção. Por outro lado, o caráter escatológico da paz em Santo Agostinho significa também uma degradação das capacidades racionais do homem, uma vez que pressupõe que é incapaz de criar uma paz perpétua pela sua própria força. E, finalmente, a ideia implícita de que só uma religião poderia trazer paz foi completamente refutada com as guerras religiosas a partir do século XVI.

    Durante a Idade Média, a noção da tranquilidade da ordem, que Agostinho desenvolveu no livro XIX da sua obra De Civitate Dei, era a teoria mais influente da paz e reaparece sobretudo na Suma Teológica, na qual Tomás de Aquino sublinha que a paz entre os homens consiste na tranquilidade da ordem, acrescentando, porém, que a concórdia ainda não significa necessariamente paz, pois uma concórdia pode surgir também pelo temor de um perigo iminente. Embora Tomás de Aquino tenha seguido Agostinho no ponto da tranquillitas ordinis, ele defende a ideia de guerras justas que procuram reestabelecer a paz – isto é a tranquilidade da ordem. Um pouco mais do que 40 anos depois da morte de Tomás de Aquino, em 1316, Dante Alighieri publicou a sua obra De Monarchia na qual defendeu o argumento que apenas uma monarquia temporal (monarchia temporalis) liderada por um imperador (curador orbis) coincide com a ordem natural da coexistência humana. Apenas este imperador será capaz de exercer o domínio do mundo de uma forma que permite a realização da ordem divina na terra. Dante concorda com a ideia de que a natureza do ser humano pretende sobretudo a felicidade da vida eterna, mas refere-se também a Aristóteles e afirma categoricamente a importância da felicidade na vida terrena, viável apenas a partir de uma paz universal. A gestão da vida eterna é a tarefa do pontífice, mas a administração da vida terrena feliz, ou seja, da paz universal, é a tarefa de um imperador mundial. Dante justifica a sua argumentação com uma persuasão eloquente, salientando que Deus tinha enviado o seu filho para a terra precisamente na altura do reinado de Imperador Augusto (63 a.C.-14 d.C.) que acabou com as guerras civis no Império e inaugurou a longa fase da pax romana (ou pax Augusta). Na lógica de Dante, a necessidade da liderança de um imperador terrestre corresponde à vontade divina, e esta lógica proporciona novamente a possibilidade de debater a questão da paz fora do domínio clerical.

    Uma separação semelhante entre os poderes seculares e religiosos foi defendida por Marsílio de Pádua que publicou, em 1324, a sua obra Defensor Pacis, cujo assunto principal é a questão habitual sobre a melhor forma de viver a vida humana (humanum optimum). Uma vida humana perfeita é apenas viável numa situação de tranquilidade e de paz enquanto condições indispensáveis para o desenvolvimento próspero e feliz de um indivíduo ou de uma nação. Marsílio de Pádua desenvolve uma teoria política de um Estado autónomo e independente do poder eclesiástico, sustentando a ideia de que o poder legislativo provém da vontade do povo e está controlado pelo mesmo. De acordo com esta teoria, a forma governamental pode ser uma república ou uma monarquia não hereditária, legitimada apenas por um órgão eleitoral. Uma vez que o povo controla o poder de decisão, Marsílio de Pádua entende a justiça e o bem comum como garantidos, possibilitando assim uma vida em estabilidade e paz. Este raciocínio, porém, funciona apenas sob a condição de que o homem é um ser racional e de boa vontade. Marsílio de Pádua previu esta objeção e admitiu que apenas uma minoria de pessoas tem uma aptidão sólida para tomar decisões legislativas. Na opinião de Marsílio, a maioria das pessoas, porém, pode encarar estas decisões com um raciocínio crítico e é capaz de identificar a necessidade de melhorias. Assim, a questão da paz está novamente debatida sem limitações eclesiais, e Marsílio de Pádua salienta que as reivindicações de poder por parte do clero até podem prejudicar a paz. De um modo geral, a obra Defensor Pacis pode ser encarada como um primeiro esboço de um Estado secular.

    As considerações sobre a separação entre os poderes seculares e religiosos tiveram uma influência profunda no pensamento de Martinho Lutero e de outros autores da Reforma. Na sua doutrina dos “dois governos” – o espiritual e o secular –, a paz aparece como condição elementar para toda a coexistência humana e o bem mais elevado. Uma das obrigações principais de todos os cristãos consiste na proteção da paz terrestre, obedecendo assim à vontade de Deus em relação à redenção do mundo. De acordo com a separação entre a esfera eclesiástica e a esfera secular existe, no entanto, a possibilidade de uma guerra justa sempre que se torne necessário a defesa de um território (e assim da confissão) protestante contra as tropas católicas. Nesta perspetiva, os protestantes sublinharam sempre o seu caráter pacífico e justificaram a sua participação nas guerras religiosas como uma autodefesa confessional. Por outro lado, os católicos atribuíram uma conotação positiva às suas campanhas militares contra os protestantes, na maneira como entenderam as mesmas guerras enquanto defesa contra heresias que ameaçavam a legitimidade da própria fé católica. Neste sentido, as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII podem ou devem ser entendidas também como uma longa guerra civil cristã que serviu para a legitimação territorial da própria confissão. Esta guerra civil cristã acabou apenas em 1648 com a Paz de Vestfália, que é estimada não apenas como um contributo para uma pacífica coexistência interconfessional, mas também como um importante tratado político que contribui para o estabelecimento de um direito internacional que, em grande parte, ainda hoje em dia está em vigor.

    Foi precisamente nesta altura que surgiu a primeira grande tentativa de definir um direito internacional, que já não se baseava numa justificação eclesial ou num raciocínio teológico. Em 1625, Hugo Grócio publicou os três volumes de De Jure Belli ac Pacis que são, ao mesmo tempo, um produto da longa sucessão das guerras religiosas e da criação progressiva de um grande número de Estados independentes. Como já se tornou visível nas obras de Dante ou de Marsílio de Pádua, as reflexões de Hugo Grócio são testemunhos evidentes de uma crescente emancipação do espírito humano perante o eterno predomínio da teologia moral ou a opressão eclesial. Grócio morreu dois anos antes da Paz de Vestfália, embora já tenha anotado um declínio gradual da legitimidade das confissões religiosas em administrar a coexistência entre indivíduos e nações diferentes. As nações adquiriram uma maior soberania política, e a racionalidade humana defendeu cada vez mais a sua autonomia perante a autoridade religiosa. Esta nova realidade exigiu outras configurações jurídicas, capazes de justificar princípios morais que podem ser aplicados, de uma forma racional, a um grande número de diversos indivíduos, nações ou grupos religiosos. Hugo Grócio tentou desenvolver um direito internacional com uma base racional que pode garantir uma coexistência pacífica de indivíduos, nações e confissões diferentes. Este direito internacional tem de incluir o reconhecimento da soberania política das nações e da autonomia dos indivíduos em relação às autoridades religiosas, envolvendo uma justiça social e política que se aplica à totalidade das nações e dos indivíduos. A legitimação deste direito internacional baseia-se na suposição de que existe uma lei natural (ius naturale) autojustificada racionalmente por si própria. Esta lei natural garante a justiça para todas as nações e indivíduos, e deve ser reconhecida por todos, nomeadamente sob a hipótese de que Deus não existe (etsi Deus non daretur). Ou seja, a lei natural é acessível, por completo, à racionalidade do homem e existe independentemente da vontade individual ou da existência de Deus. Ao nomear estas condições de lei natural, Hugo Grócio quer assegurar que a legislação internacional se fundamenta inteiramente num princípio secular e racional. Na descrição concreta desta lei natural, Grócio remete para as noções conhecidas de Aristóteles e Cícero a partir das quais o ser humano se define por uma necessidade de autopreservação e uma tendência interior para a sociabilização (apetitus societatis). A apetência social e o desejo racional de manter a ordem social são entendidos como intrínsecos à natureza humana, garantindo assim a paz. Grócio descreva a natureza humana como a mãe da lei natural, e, neste sentido, a preservação da ordem natural corresponde à razão humana. Desta forma, a perturbação da ordem natural desestabiliza a paz, e provoca assim diferentes tipos de conflito ou guerras com o objetivo de restabelecer a ordem natural a partir da autodefesa, da recuperação de bens ou da punição. O grande mérito de Grócio consiste no estabelecimento de fundamentos para um direito internacional geralmente reconhecido. Ao considerar, porém, que uma grande parte da sua obra se refere ao restabelecimento da ordem natural, a mesma não é propriamente um tratado de paz, mas sim um pensamento sobre a justificação do direito a uma guerra justa.

    A noção de necessidade interior da sociabilização enquanto lei natural intrínseca à racionalidade humana teve um impacto significativo nos pensadores do Iluminismo, mas foi contrariada sobretudo por Thomas Hobbes. O filósofo britânico concordou com seu contemporâneo Grócio e entendeu a necessidade de autopreservação humana como uma lei natural. Todavia, Hobbes identificou a autopreservação não como um desejo de sociabilidade, mas sim como uma atitude egoísta a partir da qual o individuo coloca a sua própria existência e os seus próprios interesses numa posição absoluta. Consciente da sua existência, o indivíduo percebe que todos os seus benefícios ou bens tornam-se inúteis no momento em que pode perder a vida. Em situações de perigo ou de calamidade, cada um tende, consequentemente, a defender a própria existência contra a existência do outro. A racionalidade humana serve principalmente os interesses próprios e a autopreservação individual, e o estado natural entre os homens é uma anarquia, uma desordem, uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Hobbes reconhece que a própria autopreservação tem uma justificação racional, e a reivindicação do direito em utilizar todos os meios úteis para o fim da autopreservação corresponde, de uma forma racional, à lei natural. Uma vez que a autopreservação é um direito universal que corresponde à lei natural, uma vida pacífica entre os homens torna-se impossível no momento em que cada um reivindica o mesmo direito. Ou seja, o direito individual de autopreservação encontra-se sempre em conflito com a reivindicação de outros do mesmo direito. Assim, a sobrevivência coletiva e pacífica dos homens tornar-se-á possível apenas a partir de uma abdicação do direito da autopreservação ou da autonomia individuais, atribuído irrevogável e voluntariamente a uma autoridade superior, representado pela figura mitológica do Leviatã. Hobbes transforma esta figura do Antigo Testamento num mito político, ou numa alegoria secular, no sentido em que o seu modelo de um Estado autoritário pode ser considerado como uma espécie de monstro que centraliza todo o poder em torno de si, não tolerando nenhuma violação do contrato social que fundamenta o seu poder. Esta conceção levanta, no entanto, uma série de dificuldades. Por exemplo, como chegam os indivíduos ao reconhecimento de que têm de ceder a sua autonomia individual para conseguir viver num ambiente pacífico? E como ganha um Estado absoluto a sua legitimação normativa? Ao colocar a questão sobre a fundamentação ou legitimação de normas que devam impedir o confronto permanente entre as diferentes reivindicações individuais da autopreservação, Hobbes não podia recorrer novamente às tradicionais justificações teológicas. As justificações teológicas careciam de uma fundamentação racional, estiveram na mira de fortes críticas desde os tempos de Dante ou de Marsílio de Pádua, e revelaram-se, de uma forma cada vez mais evidente, inadequadas para manter ou restabelecer a paz. Já há muitos anos, em toda a Europa grassavam várias guerras religiosas, e Hobbes testemunhou no seu próprio país uma guerra civil, ou pelo menos conflitos violentos entre a igreja anglicana e os puritanos, ou entre os calvinistas escoceses e os católicos irlandeses. Assim, a única maneira de acabar com o estado permanente de guerra de todos contra todos consistia no estabelecimento de um contrato social cujo pilar principal é o reconhecimento comum de que todos os indivíduos têm de ceder o seu direito à autodeterminação a favor de uma autoridade superior que representa a vontade de todos, isto é, um direito positivo comum. Com é visível na famosa capa do seu livro Leviatã, a figura mitológica-bíblica refere-se ao Livro de Job (Non est potestas super terram quae comparetur ei; Job 41-24), e está transformada numa autoridade secular com a capacidade de dominar o estado natural da guerra de todos contra todos a partir de uma relação mútua entre proteção e obediência. Para conseguir ser protegido do direito da autopreservação do outro, os indivíduos têm de introduzir uma restrição sobre si próprio e transferir completamente a sua autonomia para um soberano, representado pelo Estado absoluto e secular. Esta conceção influenciou profundamente a filosofia moderna do Direito e do Estado, mas inclui uma certa insatisfação, tendo em consideração que a secularização do Leviatã provoca a questão da sua própria legitimação. O Leviatã, enquanto Estado secular, continua a ser uma criação humana que é, em última análise, também movida pelas mesmas caraterísticas de um indivíduo singular. Quem controla o Estado, garantindo ao indivíduo que o próprio Estado não abusa do seu poder? E de quem recebe o Estado a sua autorização para obrigar os indivíduos a absterem-se de realizar os seus próprios interesses? Trata-se de um dilema conhecido, mas não resolvido: o Estado secular vive de condições prévias que nem ele próprio consegue justificar de uma forma racional. Mesmo em sociedades modernas com uma longa tradição democrática, a paz social caminha sobre gelo fino.

    No século XVIII, houve duas grandes e influentes tentativas de desenvolver um projeto de paz que são de Charles-Irénée Castel de Saint-Pierre (Abbé de Saint-Pierre) e de Immanuel Kant. Os dois projetos estão intimamente ligados a um projeto de uma Europa unida, e nasceram praticamente como reação direta à Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714) e à Paz de Basileia (1795) que representou o fim das guerras entre a França revolucionária e uma coligação entre a Monarquia de Habsburgo e a Prússia. Entre 1712 e 1717, o Abbé de Saint-Pierre desenvolveu o seu texto Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe que não tem a mesma profundidade filosófica que o Leviatã de Thomas Hobbes, mas pode ser considerado como uma tentativa de domesticar os diferentes Levitatãs europeus do seu tempo. Na sua tentativa de encontrar um caminho viável para acabar com as guerras europeias, o seu projeto de paz perpétua na Europa entronca na tradição do pensamento moderno sobre as possibilidades de uma união federal europeia que começou com a obra De Monarchia de Dante Alighieri, e teve, sobretudo no século XVII, expoentes diferentes, tais como o texto Nouveau Cynée ou Discours d’Estat représentant les occasions et moyens d’establir une paix générale et la liberté de commerce pour tout le monde de Émeric Crucé (1623) ou o Essay towards the Present and Future Peace of Europe de William Penn (1693). O ponto comum a todos estes pensamentos consiste na convicção de que a paz na Europa pode ser assegurada apenas a partir de uma unificação do continente. Dentro destas ideias pan-europeias, a obra de Abbé de Saint-Pierre destaca-se pelo facto de ser a primeira tentativa sistemática de apresentar um plano concreto para o estabelecimento de uma paz perpétua entre as nações europeias. Na perspetiva de Saint-Pierre, a Europa está impossibilitada de manter uma situação pacífica em razão da sua incapacidade de assegurar o cumprimento de contratos entre os diferentes Estados. Enquanto exemplos opostos, Saint-Pierre refere-se às uniões governamentais na Holanda, na Suíça ou no Império Alemão que asseguram uma convivência pacífica entre várias soberanias a partir de um cumprimento de contratos e de um comércio permanente. Embora a obra de Saint-Pierre tenha sido bastante abrangente, e às vezes contraditória, nas suas elaborações sobre a paz na Europa, os seus capítulos contêm vários pontos que antecipam a atual construção da União Europeia, tais como um congresso ou senado perpétuo numa cidade livre ou a exigência de que os diferentes Estados se estruturem em instituições supra-estaduais, ou num conselho federal, que garantam mutuamente a segurança e o comércio sem interrupções. Os membros deste conselho federal europeu são submetidos a leis superiores que servem particularmente ao bem comum de todos os Estados-Membros. Com a exceção de assuntos interestaduais, da política externa, aduaneira ou militar, cada Estado permanece autónomo. Para garantir a segurança exterior nas fronteiras europeias, o Abbé de Saint-Pierre propôs contratos prioritários com os estados vizinhos da fé muçulmana, e sobretudo com a Turquia e os países do Magreb (“os habitantes de Trípoli, Túnis, Argel e Marrocos”) que iam perceber rapidamente que uma relação estreita com a Europa unida ia garantir, a médio prazo, também paz e prosperidade nos seus próprios territórios. E finalmente, o Abbé de Saint-Pierre exprimiu também a convicção de que mesmo a Rússia ia entender que a convivência pacífica com a Europa seria uma garantia de um desenvolvimento próspero. Em termos gerais, na obra de Saint-Pierre existem várias ideias que já anteciparam, implicitamente, a construção e o funcionamento da atual União Europeia.

    Como era de esperar, este projeto de uma paz perpétua para a Europa provocou várias objeções, mas influenciou sobretudo os pensamentos de Rousseau e de Kant. Em 1761, Rousseau publicou um Extrait du Projet de paix perpétuelle, no qual elogiou a incontestável importância do texto de Abbé de Saint-Pierre, mas ao mesmo tempo duvidava da viabilidade do projeto. Saint-Pierre partiu da convicção de que as figuras principais de uma unificação europeia deviam ser os próprios regentes das nações. Ao contrário desta convicção, Rousseau expressou a suspeita de que esta unificação ia falhar devido aos egoísmos dos regentes (Rousseau utilizou a expressão “príncipes soberanos”) que seguem, em geral, apenas os seus interesses próprios. Assim, uma confederação europeia convocada pelos “príncipes soberanos” continua a ser impraticável ou uma ilusão enquanto os seus interesses particulares se sobrepõem ao bem comum. Para Rousseau, uma federação europeia torna-se apenas viável quando a soberania transite dos príncipes para o povo.

    Tanto o texto de Abbé de Saint-Pierre como as objeções de Rousseau tiveram um impacto percetível no célebre texto Zum ewigen Frieden de Immanuel Kant, cujo título é uma ironia subtil que parece revelar um certo caráter utópico de uma paz perpétua. Segundo Kant, a sua inspiração para o título tem origem numa tabuleta de uma pousada holandesa na qual estava pintado um cemitério, e o leitor atento pergunta-se logo se este cemitério não será o único lugar onde se encontra a paz perpétua. A obra foi publicada em 1795, e a sua construção textual tem mais os contornos de um contrato de paz do que de um texto filosófico propriamente dito. Embora não seja indicado logo no início, Kant partilha a conceção de Hobbes e compreende o estado natural (status naturalis) entre os homens como um estado de guerra, ou pelo menos como uma situação marcada por hostilidades abertas ou escondidas em que uma guerra pode eclodir a qualquer momento. Kant não deixa espaço para dúvidas, a paz tem de ser instaurada. Para este efeito, Kant introduz seis artigos preliminares que estabelecem as pré-condições necessárias para que a paz seja permanente e sustentável. No primeiro artigo preliminar, Kant diferencia uma paz verdadeira de uma falsa, e sublinha que um contrato de paz apenas é possível depois de uma verdadeira eliminação das razões da guerra. Caso estas razões não sejam completamente eliminadas, o contrato de paz não é mais do que um cessar-fogo que pode servir para a preparação escondida de uma retoma da guerra. O segundo artigo preliminar declara que nenhum Estado é património de ninguém, mas sim uma sociedade de homens livres que decide em prol do bem coletivo. Neste sentido, nenhum Estado poderá ser adquirido a partir de uma herança, troca, compra ou doação. No terceiro artigo preliminar, Kant argumenta que os exércitos permanentes implicam uma corrida armamentista contínua que torna a paz mais cara do que uma guerra curta. Em tempos de paz, um exercício militar voluntário é suficiente e os cidadãos devem participar periodicamente em alguns treinos de armas. O quarto artigo preliminar proíbe a emissão de dívidas públicas em relação a assuntos críticos nos negócios estrangeiros, tendo em conta que a possibilidade de ter acesso fácil a um crédito aumenta, nestes casos críticos da política exterior, o perigo de uma guerra. Assim, nenhum Estado deve permitir receber créditos de guerra. O princípio de não intervenção é o ponto central do quinto artigo preliminar, sublinhando que cada Estado tem de respeitar a soberania dos outros Estados. Não há justificação legal de intervenção nos assuntos internos de um outro Estado, e a ameaça à paz decorrente de uma intervenção num outro Estado pesa mais do que uma discordância interior no mesmo. Apenas em casos em que a discordância interior já tenha provocado a divisão de um Estado em duas partes independentes, um terceiro Estado podia então prestar ajuda a uma das partes, uma vez que esta ajuda não ia significar uma intervenção na Constituição da outra parte. No último artigo preliminar, é desenvolvida uma ordem de guerra que contesta, em caso de conflito bélico, hostilidades de uma violência tão forte que ia impossibilitar a confiança mútua numa paz futura. Trata-se de estratégias desonrosas que inviabilizariam negociações de paz e resultariam, como consequência última, numa guerra de extermínio (bellum internecinum). O argumento explícito de que este tipo de hostilidades violentas ia possibilitar a paz perpétua apenas sobre um grande cemitério relembra a tabuleta da pousada holandesa à qual Kant se referiu no seu breve prefácio. Estes seis artigos preliminares representam as condições indispensáveis para uma paz perpétua, mas ainda estão divididas em condições absolutas (1,5,6) e condições regulativas (2,3,4) cujo cumprimento se torna necessário depois do contrato de paz. A seguir à explicação destas seis condições da paz, Kant apresenta três artigos definitivos que descrevem concretamente a configuração política de uma vida pacífica entre os homens, visto que a paz não deveria representar apenas a ausência da guerra. Na introdução a estes três artigos definitivos, Kant indica explicitamente que o estado natural dos homens é a guerra, e a paz tem de ser instaurada a partir de uma constituição jurídica que regula a vida dos homens em três níveis: (1) o direito político dos homens dentro de uma nação (ius civitatis); (2) o direito dos Estados nas suas relações mútuas (ius gentium); (3) o direito cosmopolita que considera os homens como cidadãos de um Estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum). No que diz respeito ao direito político dos homens numa determinada nação, Kant entende uma Constituição republicana como a melhor garantia para um Estado pacífico, desde que a mesma assegure a liberdade de todos os membros de uma sociedade, a subordinação de todos sob uma única legislação comum, e uma Constituição estabelecida de acordo com a lei da igualdade. Esta Constituição republicana permite a participação representativa dos cidadãos no governo e na legislação, e Kant parte da convicção de que cidadãos, que vivam sob a condição de uma Constituição republicana, não iam provocar a eclosão de uma guerra na qual correriam o perigo de perder a sua qualidade de vida, de endividar-se ou, na pior das hipóteses, de morrer. A ideia kantiana de uma Constituição republicana assemelha-se a uma democracia liberal, isto é, um Estado parlamentar que é legalmente justificado. De modo semelhante aos homens dentro de um grupo social, Kant identifica também na coexistência de Estados diferentes a possibilidade latente de um prejuízo mútuo. Na sua opinião, os Estados conseguem realizar uma coexistência interestadual pacífica apenas a partir de uma constituição que se assemelha à constituição civil. Assim, propõe uma federação de Estados diferentes que respeita a soberania interior de cada um, relativizando apenas minimamente a sua soberania exterior. Ao ser constituído por um povo “civilizado” e “iluminado”, cada Estado compreenderá a exequibilidade ou a realidade objetiva de uma federação que se estenderá pelo mundo inteiro, conduzindo assim à paz perpétua. Levando este ponto à letra, o texto de Kant continua a ser uma utopia. E, finalmente, existe ainda o direito cosmopolita que contém o conceito da hospitalidade e representa o direito de um estrangeiro em visitar outros territórios sem ser tratado com hostilidade. Por outro lado, a conceção da hospitalidade inclui respeito pelos bens, propriedades e princípios jurídicos dos hospedeiros. Neste sentido, o direito cosmopolita viabiliza uma comunidade pacífica entre os Estados e a circulação livre dos homens, mas condena explicitamente a posse de colónias, resolvendo assim uma contradição que se encontra na base de muitos conflitos. Para Kant, o direito cosmopolita torna-se necessário pelo facto de que nenhum homem ou povo tem o direito original de ser proprietário de um determinado território na terra, embora a mesma esteja limitada e já distribuída. A função do direito cosmopolita consiste na hipótese de uma verdadeira comunidade entre os habitantes de diferentes Estados, e apenas a partir da combinação ou da harmonização deste direito cosmopolita com as leis de Estados diferentes pode surgir um direito internacional que abre um caminho viável para uma paz perpétua.

    No seu prefácio, Kant aludiu, porém, que a paz perpétua possa ser eventualmente apenas um “sonho doce” ao qual se entregaram alguns filósofos. Para averiguar uma possibilidade verdadeira da paz perpétua, a argumentação é concluída por dois longos suplementos e dois apêndices. Embora tenha acentuado que o estado natural entre os homens é uma guerra, Kant vê na grande artista da Natureza (natura daedala rerum) a capacidade de transformar a discórdia entre dos homens numa concórdia, mesmo se esta transformação acontecesse contra a vontade deles. O seu conceito teleológico baseia-se na suposição de que as guerras antigas levaram o homem a espalhar-se pela terra inteira onde encontrou recursos diferentes que permitiram negócios e comércio, conduzindo assim o homem ao reconhecimento de que os negócios e o comércio funcionam melhor em tempos da paz. Mais cedo ou mais tarde, todos os povos serão atraídos pelo espírito comercial e perceberão que o mesmo não coincide com a guerra. O segundo suplemento, que aparece na forma de um artigo “secreto”, refere-se à relação entre a governação e a opinião pública. Kant supõe que a reputação de um governo pode ser prejudicada em alguns debates públicos ou em momentos em que as decisões são postas em causa publicamente. Nestas situações, um governo devia ouvir a opinião pública sem revelar que se deixa (ou não) influenciar pela mesma. Assim, um governo pode parecer instruído pela opinião pública, mas sem perder a própria autoridade. Finalmente, o texto acaba com dois anexos extensos. No primeiro, Kant analisa a discrepância entre a moral e a política em relação à paz perpétua, o segundo anexo é um discurso sobre a concordância da política com a moral em relação ao conceito transcendental no direito público. No discurso sobre a possível discrepância entre a moral e a política, Kant refere-se implicitamente ao pensamento de Thomas Hobbes, e pergunta-se como é possível definir uma obrigação política que excede os interesses próprios dos indivíduos? Qual é a base, por exemplo, da legitimação do poder legitimador? Ou como se garante que os governantes também sigam as leis comuns? A solução seria um “político moral” cuja ação é determinada por imperativos morais, e que deseja a paz perpétua como um bem físico, reconhecendo a conservação da paz como um dever natural. Neste sentido, uma ação política e a promulgação de uma lei não deviam destinar-se à criação de uma prosperidade efémera, mas sim à defesa do direito à liberdade e à igualdade dos cidadãos. Assim, a verdadeira política não se desenvolve sem obedecer à moral. No segundo anexo, Kant salienta que as leis (ius civitatis, ius gentium, ius cosmopoliticum) devem ser reconhecidas publicamente para que a paz perpétua não permaneça uma ideia vazia.

    A releitura do texto de Kant, escrito há mais de 220 anos, tem um certo sabor amargo e provoca uma ligeira desilusão em relação à confiança ocidental no desenvolvimento da racionalidade humana. Os filósofos do Iluminismo discordaram acerca da natureza humana, embora a maioria tenha tido uma inclinação para acreditar que o homem é, na sua essência mais íntima, mau. Rousseau entendeu a natureza humana como boa, mas arruinada por uma sociedade corrupta. Hobbes e Kant consideraram a natureza humana como assinalada por uma autopreservação egoísta que impede uma coexistência pacífica entre os homens. Todos os filósofos iluministas, porém, acreditavam na capacidade humana em desenvolver uma organização racional da sua vida. Ou seja, confiaram, implícita ou explicitamente, na habilidade humana em dar passos pequenos em direção a uma paz perpétua. Ao estudar os mais importantes projetos sobre a paz na história europeia, percebe-se que a paz pode ser pensada de muitas maneiras diferentes. Desde os tempos de Kant, a paz perpétua permanece um “sonho doce” continuamente sonhado por vários pensadores e poetas dos séculos XIX e XX, de Victor Hugo a Bertrand Russell. A primeira tentativa de concretizar a filosofia de Kant foi uma consequência da Conferência de Paz de Paris em 1919, e deu-se com a fundação da Liga das Nações. Esta organização intergovernamental baseou-se nos “Quatorze Pontos” de Woodrow Wilson que representaram um programa muito concreto em termos de reestruturação das fronteiras europeias, e incluíram alguns pontos mais gerais que se referiram manifestamente ao projeto filosófico de Kant. No seu plano de “Quatorze Pontos”, Wilson exigiu, por exemplo, acordos públicos de paz que não incluíssem cláusulas secretas. Assim, insistiu numa diplomacia totalmente transparente, numa limitação de armamentos, e numa coexistência federativa de Estados soberanos. No dia 10 de Janeiro de 1920, a Liga das Nações foi fundada em Genebra, e embora os seus objetivos tenham sido muito bem estruturados, a Liga revelou-se incapaz em assegurar uma segurança coletiva de longa duração. A Liga das Nações fracassou sobretudo por uma razão que o próprio Kant já mencionou como um dos obstáculos principais para a fundação de organização intergovernamental. A Liga das Nações falhou sobretudo pelo facto de que os membros se mostraram incapazes de limitar os interesses próprios. Em 1945, a Liga das Nações foi substituída pela Organização das Nações Unidas.

    No que diz respeito à questão da paz, no século XX surgiu uma situação histórica bem diferente. Ao contrário dos tempos de Saint-Pierre, Rousseau ou Kant, a humanidade tornou-se capaz de construir armas de destruição maciça com a possibilidade de destruir o planeta inteiro. A partir do início do século XX, a paz já não é um simples “sonho doce” dos filósofos e poetas. A paz tornou-se a condição fundamental para a continuação da vida humana. Devido a esta situação inteiramente nova, os grandes discursos teóricos sobre a paz foram substituídos por reais movimentos ou organizações pacíficas. O desenvolvimento de armas de destruição maciça exigiu ações concretas e conduziu ao nascimento do pacifismo, ou à consciência de que a humanidade tem de “fazer” alguma coisa muito concreta para assegurar a paz (a palavra pacifismo tem a sua origem etimológica nas palavras pax e facere). Já em 1891, fundou-se em Roma o Bureau International Permanent de la Paix, e em 1901 foi concedido pela primeira vez o Prémio Nobel da Paz ao francês Frédéric Passy e ao suíço Henry Dunant. No século XX, o pacifismo combinou uma atitude intelectual e política com atividades práticas, e alguns dos exemplos mais conhecidos são Albert Einstein, Jean-Paul Sartre ou, sobretudo, Bertrand Russell.

    No início do texto foi referida a Declaração sobre o Direito à Paz que foi submetida, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, à votação a 19 de dezembro de 2016. O primeiro artigo começa com as palavras seguintes: “Everyone has the right to enjoy peace (…).” Esta exigência é extremamente importante nos tempos atuais, marcados por vários conflitos violentos e enormes fluxos de refugiados, sejam eles provocados por guerras ou por dificuldades económicas. Hoje em dia, existem várias instituições, tratados ou cooperações internacionais que facilitam ou proporcionam medidas concretas para promover a paz, conseguindo assim assegurar uma coexistência de diferentes Estados e nações, ou diminuir os efeitos negativos das guerras ou dificuldades económicas. No entanto, estas instituições internacionais continuam a ser organizações políticas que podem ser utilizadas – ou usurpadas – para interesses políticos particulares. O exemplo mais conhecido é a reunião da Organização das Nações Unidas do dia 5 de Fevereiro de 2003, na qual o Secretário de Estado norte-americano Colin Powell acusou, sem razões verificáveis, o Iraque de possuir armas de destruição maciça, justificando assim a intervenção americana neste país árabe. Por fim, a premissa, supracitada, de que cada um tem o direito de viver em paz não apresenta conteúdo filosófico. A paz continua a ser um fenómeno bastante ambivalente na medida em que pode ter muitos significados, pois depende de quem a reclama para si. A paz pode assegurar a vida de um indivíduo ou de um grupo social, perturbando, ao mesmo tempo, a vida de um outro indivíduo ou de um outro grupo social. Caracterizada por muitas contradições e paradoxos, a paz continua a ser um desafio filosófico, e a pergunta “O que é, afinal, a paz?” ainda não foi respondida de uma forma satisfatória.

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    Autor: Steffen Dix

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