Perdão [Dicionário Global]
Perdão [Dicionário Global]
Os crimes cometidos contra a humanidade não podem ser alterados, nem amnistiados, pois importa que se cumpra o direito à memória, individual e coletiva. Contudo, a restauração da dignidade e direitos humanos é complexa, podendo dar início a um processo existencial que desemboque num ato de perdão. O perdão distingue-se da amnistia e supera, não raro, a justiça, sendo do domínio do dom e da generosidade inesperada ou não-retributiva. Tendo o perdão as suas raízes numa tradição religiosa, não se limita a um ato religioso. A busca de um processo conducente ao perdão pode conduzir no campo da política, por exemplo, à constituição de uma Comissão de Verdade e Reconciliação, como no caso da África do Sul, um feito relevante para a transição democrática, após conflitos étnicos e do regime do Apartheid. O processo existencial e dinâmico conducente ao perdão, sem nunca o garantir, tem sido um caminho superador de traumas coletivos rumo à paz. Este processo, paralelo à justiça, supera-a e nunca implica amnistia, esquecimento ou desresponsabilização de qualquer atentado contra os direitos humanos.
O conceito de perdão (do latim perdonare) remete para o termo “redimir”, compreendendo em si uma dimensão relacional incontornável. O perdão incide, pois, em algo relacional, mas com o pressuposto de que algo de errado, injusto ou inaceitável marca uma relação, seja ela pessoal ou coletiva. Neste sentido, perdoar é sempre uma ação que incide na memória ferida. Como advertem autores como Jacques Derrida ou Paul Ricoeur, o perdão só é possível face ao imperdoável, à memória de algo doloroso e determinante da vida da vítima da ação de outrem. Sem memória do ocorrido, o perdão não teria lugar para acontecer. Consequentemente, pensar o perdão como sinónimo de amnistia é remeter a ofensa para a esfera do esquecimento e, simultaneamente, esquecer as vítimas dos acontecimentos traumáticos ou dolorosos. Ora, o que foi esquecido não carece de perdão, já não existe, já não fere nem causa dano.
Contrariamente ao que supõe a amnistia – no sentido político do termo –, o perdão não visa cancelar a dívida do criminoso, nem apagar os seus atos da esfera da justiça e/ou da memória sociocultural. Antes, visa quebrar e interromper de forma definitiva linhas de pensamento e de dinamismo sociocultural vinculadas ao desejo de vingança. Algo que, sem o perdão, perpetuaria através das gerações (RICOEUR, 2004, 116-118). Sem o perdão, assinala Hannah Arendt, seríamos para sempre vítimas do passado ou do já ocorrido: “Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.” (ARENDT, 2001, 289). O perdão impele para uma releitura da história, capaz de transformação humana e sociocultural. Esta releitura dos acontecimentos, conduz a uma nova narrativa dos mesmos, uma memória ferida converte-se, pelo perdão, numa memória/história curada/salva.
Além deste vínculo à memória, o perdão exige culpa e dor. Sem estas dimensões estar-se-á perante uma teorização hipotética do perdão e não de uma realidade. Contudo, pela sua própria natureza, o perdão desvincula-se de todo o sentido ou desejo de vingança. Ele, para ser autêntico, é incondicional, não sendo sequer determinado, nem pelo arrependimento do opressor nem por qualquer tipo de pedido de perdão (RICOEUR, 2000, 619; 1995, 207). O perdão é “per + dom”, para ser dado. Isto não significa que o perdão seja sinónimo de dom, mas antes que é uma realidade que existe para ser dada, para acontecer, ficando suspensa até ser recebida.
Em termos teológicos cristãos, o perdão tem, precisamente, este sentido de gratuidade incondicional, que se realiza na condição de ser recebido (VILAS BOAS, 2022).
Na rutura da relação do ser humano com Deus, o caminho de conversão e religação humano-divina não se faz através de um dinamismo ligado ao mérito. Ao contrário, este é um caminho que já entra na esfera das dinâmicas de perdão – o caminho em que o humano se coloca em circunstâncias capazes de aceitar e receber o perdão – incondicional, até então suspenso e expectante da sua realização – que lhe é oferecido por Deus. Algo similar decorre da relação quebrada entre seres humanos, embora, pela própria contingência humana, este dinamismo assume contornos muito particulares. Neste caso, o caminho para o perdão é marcado por um processo de reconciliação. Esta reconciliação, ora se afigura como consequência natural do perdão que se vai realizando, ora se apresenta como caminho para uma religação salvífica e sana entre vítima e opressor. Note-se que o perdão não é um momento cronológico. É um dinamismo durável no tempo, sendo impossível cronologicamente determinar o momento da sua consumação definitiva – o perdão realiza-se, realizando-se.
A reconciliação deriva do perdão e, teologicamente, deriva da consciência de que todos os humanos são devedores de perdão. O patamar comum daqueles que imerecidamente recebem incondicionalmente o perdão divino possibilita uma aprendizagem sobre os dinamismos do perdão – no seu dar e receber; no arrependimento e pedido de perdão; no perdoar, ainda que não haja reconhecimento de culpa; etc. –, mas, também, pelo modo como este ganha pertinência, pode ser vivido e expressado em termos humanos. De facto, a pertinência do perdão não parece óbvia quando pensada do ponto de vista da vítima. À primeira vista, esta nada ganha com o perdão que pode oferecer. Porém, é notório o facto de que, sem uma dinâmica de perdão, a vítima permanece vítima, ficando a sua condição integral de pessoa remetida para um plano quase inexistente. A reintegração da vítima enquanto pessoa pressupõe necessariamente a reintegração do seu opressor enquanto pessoa. Negar ou não conseguir entrar numa dinâmica de perdão é remeter a existência à condição de vítima e de “monstro”. Retomando Hannah Arendt: “O perdão é a única reação que não re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente sem ser condicionada pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta tanto o que perdoa como o que é perdoado” (ARENDT, 2001, 293).
São paradigmáticos os casos de declaração de perdão que surgem nos textos bíblicos. O mais representativo é mesmo o do perdão declarado na cruz: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Aqui se espelha o modo como a incondicionalidade “condicional” do perdão opera. Por um lado, Jesus oferece a todos (indiscriminadamente) o perdão, independentemente do grau de consciência do crime que cometeram, independentemente do seu grau de arrependimento e mesmo do seu sentimento de culpa ou remorsos. Por outro, a porta de salvação – para vítima e seus carrascos – advém desta dinâmica salvífica inerente ao perdão: a vítima torna-se ferramenta incontornável para que os criminosos sejam restabelecidos como pessoas e acedam à salvação. De certa maneira, a história de Job revela isso mesmo. Após as provações e ataques dos seus amigos, Deus abençoa abundantemente Job, mas apenas depois de este oferecer sacrifícios em favor dos seus amigos – aqueles que em tempos difíceis lhe acrescentaram o sofrimento (Jb 42, 7-17).
Poder-se-ia considerar que a vítima permanece refém do seu opressor até ser capaz de entrar num dinamismo de perdão, seja pela reconciliação, seja pela mediação humano-divina. Isto não apaga os acontecimentos traumáticos nem as cicatrizes deixadas pelo dano causado, mas permite uma cura da história capaz de gerar esperança e humanizar a vida quer da vítima, quer do seu opressor. Nesta linha, a partir de uma compreensão teológica do perdão, torna-se possível o restabelecer da relação entre seres humanos individuais, mas também entre coletivos ou comunidades, que, em termos históricos, surgem com a identificação de vítimas ou de opressores. Na atualidade, pensar-se em judeus em contexto alemão remete-nos para uma identificação imediata dos judeus enquanto vítimas e dos alemães como seus carrascos. O Holocausto nazi veio forjar uma memória e identidade para estas duas comunidades, quase impedindo um passo em frente no que respeita à dignidade pessoal e comunitária de cada um. No exercício de memória dos acontecimentos, são esquecidos os gestos de bondade e até de entregas de vida de muitos alemães que agiram contracorrente perante os avanços das políticas de Hitler.
Curar a história coletiva pelo perdão é inverter esta tendência, fazendo da memória do perdão algo mais poderoso do que a memória do crime ou da ofensa. São inúmeros os casos em que isto acontece, embora grande parte deles permaneça no anonimato. No entanto, um dos casos famosos representativo deste impacto do perdão na memória coletiva é a história do atentado a João Paulo II em 13 de maio de 1981, na Praça São Pedro. O que fica para a história da Igreja e do mundo em geral não é apenas a ação assassina de Mehmet Ali Ağca, mas sobretudo que, cinco dias depois do atentado, o Papa, Angelus direto do hospital, se dirija àquele que o tentou matar, dizendo que pede por ele a Deus e que lhe concede o perdão de todo o coração. Palavras estas que ganharam maiores repercussões quando, um ano depois, João Paulo II faz uma longa visita a Mehmet Ali Ağca na prisão de Rebibbia, em Roma.
O que fica para a história e produz memória identitária não é o ato criminoso. Aliás, hoje poucos recordam o nome daquele que atentou contra a vida do Papa, apenas o nome daquele que perdoou quem o tentou matar é lembrado. Poucos recordam as razões apresentadas para o atentado, ou o tempo que a justiça sentenciou o criminoso, o que ficou na memória coletiva é a possibilidade de um perdão que manifeste a fé professada. A reboque deste atentado, poder-se-ia forjar uma identidade contra determinados grupos humanos. Da ação de um homem, uma comunidade passaria a ser reconhecida como terrorista e, consequentemente, como alvo a abater em favor do bem comum. Ora, com o perdão, a história reconfigura-se e as cicatrizes deixam de gritar por vingança, afigurando-se antes como sinais de esperança, apesar do sofrimento. Aqui, não é a violência a ter a última palavra, nem para as vítimas nem para os seus opressores.
O perdão é um ato existencial que desafia soluções puramente argumentativas. Como analisamos anteriormente e como observa Hannah Arendt, filósofa da tradição judaica, o perdão, no mundo público, surge no seio de uma tradição religiosa. Contudo, isso não deve constituir impedimento para pensarmos realidades políticas complexas ou para nos socorrermos do processo rumo ao perdão para lidarmos com o património difícil que perpetua feridas da memória. O perdão entrecruza-se com o direito à memória (SADOWSKI, 2024) e pode tornar-se relevante para lidar com as memórias acossadas por um património imaterial e material (estátuas celebrativas, toponímia evocativa, etc.), que não é pacífico, porque a memória coletiva e individual não se encontra apaziguada. O “trabalho de memória” assume um papel relevante na dinâmica coletiva e individual rumo à paz, à justiça, e à defesa dos direitos humanos. A restituição da dignidade humana, entre indivíduos e povos ou comunidades, põe à prova o princípio do perdão, sempre frágil e processual, pois este nunca está garantido. Assim, apesar de elevado e relevante para a restituição da vítima à sua dignidade, o perdão não pode ser concedido universalmente, sem que se coloque em movimento a dinâmica referida anteriormente. O perdão não é do domínio da pura justiça, mas pertence à generosidade e ao dom, podendo dar-se o caso de não ser concedido, diante do irreparável ou do imperdoável (REGO, 2021).
O problema da política de memória é identificado nas primeiras linhas da obra do filósofo Paul Ricoeur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli : “Permaneço perturbado pelo inquietante espetáculo dado pelo excesso de memória aqui, demasiado esquecimento ali, para não falar da influência das comemorações e dos abusos de memória – e de esquecimento. A ideia de uma política da justa memória é, deste ponto de vista, um dos meus temas cívicos assumidos” (RICOEUR, 2000, 1). No presente, tem-se revelado complexo lidarmos com a “memória coletiva” (v.g. passado colonial, escravatura, etc.), tendo o rosto mais visível desta dificuldade sido expresso no ataque a estátuas e a “património difícil”. No caso português, entre outros, registou-se o ataque à estátua do Padre António Vieira e ao edifício do Padrão dos Descobrimentos (SADOWSKI et al., 2024).
A história progride, registando-se muitas feridas abertas na memória (v.g. escravatura, colonialismo, desrespeito pelos direitos das mulheres e crianças, etc.), confrontando a humanidade com o complexo problema de viver com a memória do irreparável. O passado não pode ser alterado, mas a narrativa sobre o passado pode ser diferente. Como assevera Ricoeur, é possível contar de outro modo (‘raconter autrement’), através daquilo a que chama “trabalho de memória”, como dimensão curativa e terapêutica do perdão: “É, pois, ao nível da narrativa que se exerce primeiro o trabalho de lembrança. E a crítica […] parece-me consistir no cuidado em contar a outrem as histórias do passado, em contá-las também do ponto de vista do outro – outro, meu amigo ou meu adversário” (RICOEUR, 2005, 37).
Nenhum progresso poderia, assim, escapar ao passado e ao modo como integramos esta herança no presente e no futuro. Sem se poderem alterar as ações, a narrativa sobre as mesmas pode, mediante o perdão, reintegrá-las de modo diferente na memória. Como defende Paul Ricoeur, o perdão, ao operar sobre noções comuns de trauma, fragilidade e ferida, pode curar. O “trabalho de memória” tem um efeito curativo sobre o modo como narramos o passado, pois este pode sempre ser reaberto e retomado em nome de vítimas ignoradas ou recalcadas até ao presente. Ricoeur pensa o agente humano na condição de herdeiro de vestígios da história, capaz de esquecimento e perdão. O processo de cuidar das “feridas da memória” é individual e coletivo, pois “as feridas da memória são, simultaneamente, solitárias e partilhadas”. Para Ricoeur importa, por um lado, combater o esquecimento de certos acontecimentos passados (combater o “esquecimento escapista”) e, por outro, retomar criticamente o significado que é dado ao passado (solicitando a categoria do perdão).
Nos graves atentados à dignidade e direitos humanos, provocados por ditaduras e violências, no campo da memória coletiva e dos povos, revelou-se fundamental, v.g. a Comissão de Verdade e Reconciliação, na África do Sul, e a Comissão Nacional de Verdade, no Brasil. Esta última comissão, que visou cumprir o direito à memória, reporta-se aos crimes cometidos pela ditadura militar (1964-1985) como crimes contra a humanidade. No conhecido caso do Apartheid foi importante registar o testemunho de vítimas e carrascos. É fundamental que o sofrimento se possa contar e que a narrativa se reconstrua a partir daí, se tal for possível. Nenhum percurso leva necessariamente ao perdão. Nelson Mandela é um exemplo eloquente de diálogo, integração e perdão dos seus carrascos e opressores. A paz e a plenitude dos direitos humanos podem, assim, não raras vezes, requerer encetar processos rumo ao perdão, dinâmicas complexas, mas possíveis.
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Autores: Susana Vilas Boas
Rui Maia Rego