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    Privacidade/Intimidade, Direito à

    Com a emergência das modernas sociedades seculares, a partir de finais do século XVIII, a discussão sobre a privacidade tornou-se de imensa importância. Em grande medida por conta de um questionamento político, progressivo, sobre os limites que devem ser socialmente impostos àquilo que é exclusivo, próprio, pessoal. Ou, mais precisamente, àquilo que é íntimo. De forma paralela, a importância do tema decorre da igualmente crescente resistência a tal processo crítico.

    Tal realidade passou a existir em função de transformações operadas nos espaços públicos do Ocidente, e teve seu início em períodos anteriores ao século XVIII. Isso foi observado por Norbert Elias (1897-1990), no seu O Processo Civilizador. Elias apontou o livro de Erasmo (1466-1536), De Civilitate Morum Puerilium (Da Civilidade em Crianças), de 1530, como expressão de um dos primeiros movimentos reconhecíveis, na modernidade, no sentido de estabelecer um “decoro corporal externo”, isto é, algum tipo de controle sobre a privacidade, mas de origem exclusivamente social (ELIAS, 1994, 69). E não, assim podemos dizer, de natureza religiosa ou espiritual.

    Em termos conceituais, atualmente, essa discussão deve muito a Jurgen Habermas (n. 1929) em seu Mudança Estrutural da Esfera Pública. Nesta obra o filósofo sustentou que a sociedade contemporânea, que emerge das transformações da modernidade, é caracterizada pela gradual expansão da dimensão pública sobre o universo privado. Em tal processo foram sendo estabelecidas limitações, de diferentes níveis, inclusive legais, para o exercício do privado diante do predomínio dos interesses gerais. Avançou-se das preocupações com o decoro, de Erasmo, para proibições explícitas de um conjunto amplo de atitudes reservadas. E, notadamente, afastando gradualmente a religião dos espaços públicos, isto é, impedindo determinados movimentos íntimos na vida cotidiana.

    Isso se dá, em parte, em sua dimensão teórica, a partir de uma certa concepção de organização da sociedade, cuja inspiração maior está na obra de J. J. Rousseau (1712-1778) (HABERMAS, 2003, 99). Tal proposição sustenta a submissão do indivíduo, bem como sua dimensão reservada à dita “vontade geral”. Seria esta norteada por uma necessidade de instaurar e consolidar, social e politicamente, atitudes e concepções seculares de diferentes naturezas.

    No século XIX foi desenvolvida toda uma literatura crítica ao conceito de privacidade, principalmente a uma de suas dimensões jurídicas mais evidentes, o conceito de propriedade privada, a qual, fatalmente, se voltou contra os movimentos de preservação de qualquer coisa que fosse exclusiva do ser. Karl Marx (1816-1883), por exemplo, não teve dúvidas em atacar aquilo que chamou de “capricho pessoal”, isto é, o universo individual íntimo, que considerou como a fonte do egoísmo, e igualmente da propriedade privada (MARX, 1993, 25). E foi no século XIX, portanto, que a privacidade surgiu como tema jurídico relevante, acima de tudo como reação a tal ataque (RICHARDSON, 2017).

    Hanna Arendt (1906-1975), em seu A Condição Humana, também considerou essa desestruturação do âmbito privado como tendência forte, especialmente visível na decadência da família (ARENDT, 2009, 50-51). É a família, de fato, um dos espaços, e dos mais importantes, dentro dos quais se processam e se desenvolvem experiências íntimas e onde se reproduzem valores e atitudes cujos objetivos são preservar uma privacidade protetora, principalmente diante de diversos movimentos invasores próprios do mundo, ou da esfera pública. A desestruturação da família nuclear se traduz em desarticulação da reverência e relevância da privacidade e da proteção que esta oferece ao Homem.

    Nas sociedades iluministas posteriores ao século XVIII, temas outrora reservados se tornaram de debate público, porque passou a ser entendido que as decisões privadas podem ou devem ser tratadas por todos, a partir da vontade geral, e não exclusivamente à luz de entendimentos exclusivamente particulares.

    Tornou-se também comum a politização de tais assuntos, entendidos como dotados de um conteúdo que deve ser discutido a partir de proposições coletivamente decididas. Donde a crítica crescente à privacidade como acobertadora de atitudes proibidas, ou erradas por alguma razão, ou a necessidade de transformar atitudes reservadas em atitudes públicas que sirvam à normatização de práticas tidas por apropriadas à dita vontade geral.

    Tal movimento, invasivo e desqualificador de espaços outrora protegidos diante da esfera pública, não se realiza sem resistência, evidentemente, como já apontado. O problema em si, do ponto de vista jurídico, tornou-se visível no século XIX, diante da crítica política de grande magnitude realizada à propriedade privada, ou ao privado. E a resistência a esse movimento também acompanhou a ampliação da limitação ao espaço íntimo.

    Hanna Arendt, de fato, entendeu que tal resistência é inevitável, pois a privacidade garante profundidade psicológica, assegurando coisas que de outra forma não poderiam resistir à ação de outras pessoas, e estabelecendo limites que fixam a identidade pessoal apud MACDOUGALL, 2005). Alan Westin, recentemente, foi adiante, e estabeleceu a existência de quatro “estados básicos” da privacidade individual: “solidão, intimidade, anonimato e discrição”, que conduzem às quatro funções básicas da privacidade: “a autonomia pessoal, a liberdade emocional, a capacidade de autoavaliação e a possibilidade de comunicação limitada e confidencial” (WESTIN, 1967, 49-50).

    Não há como, portanto, avançar infinitamente sobre o privado sem que se descaracterizem elementos essenciais da identidade do Homem. A resistência à invasão da privacidade é, portanto, um movimento focado na defesa da própria natureza do humano. Principalmente no que diz respeito à sua capacidade de ser ele mesmo e de tomar decisões. Por isso, de forma clara, o modelo invasivo, que começa, segundo Norberto Elias, no século XVI, por exemplo em Erasmo, contém um projeto que pode ser entendido como limitador da capacidade humana de se posicionar enquanto indivíduo, diante da realidade social, inibindo sua capacidade de expressar seu brilho particular, ou sua potência vital.

    Assim, sem dúvida, o avanço da genética torna o tema da privacidade ainda mais grave e repleto de dimensões ameaçadoras, ao tornar o carácter do ser individual rastreável em muitas de suas particularidades e, portanto, devassado do ponto de vista da esfera pública, o que pode possibilitar a tentativa de uma neutralização ou destruição seletiva de particularidades ou de indivíduos. Tal processo foi ensaiado entre 1939 e 1945, no extermínio de determinadas populações europeias, como os judeus e os ciganos, mas adquire maior amplitude com o desenvolvimento das pesquisas genéticas.

    Da mesma maneira, como anotou Alexandra Rengel, “o desenvolvimento de novas tecnologias que facilitam a invasão da, e a interferência na privacidade” exige respostas do ponto de vista legal, considerando o imenso acúmulo de informações disponíveis, hoje, sobre cada pessoa (REGEL, 2013, 41) e a subsequente capacidade de controle da intimidade por parte de setores interessados. A pulverização da privacidade, na Internet, é ameaça direta à autonomia pessoal.

    É possível construir um mundo sem solidão, intimidade, anonimato e discrição, desprovido de autonomia pessoal, liberdade emocional, capacidade de autoavaliação e da possibilidade de comunicação limitada e confidencial? A subsistir o humano, não, evidentemente.

    A capacidade de decidir, a partir do discernimento íntimo, torna o ser humano humano. Além do mais, todas as tentativas de expor e destruir a intimidade do ser, tornando-o parte de um ente coletivo, fracassaram e continuam condenadas ao fracasso. Mas há mais coisas, nesse ataque ao privado e ao íntimo.

    É interessante que, no mesmo momento em que Erasmo dava início ao processo de crítica da privacidade, colocando-a sob o juízo da esfera pública, Santa Teresa d’Ávila (1515-1582) tenha apresentado uma pioneira defesa dessa mesma intimidade. O Castelo Interior, ou As Moradas, foi escrito em 1577 e publicado em 1588. Teresa d’Ávila entendeu o interior do ser como um castelo de diamante, ou de cristal puro, onde havia sete moradas “e no centro e meio de todas estas tem a mais principal onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma” (TERESA DE JESUS, 1951, 1, I, 3). A realidade mais profunda do ser se alcançava, portanto, avançando a consciência na direção desses espaços interiores, caminhando por todas as alas e andares até onde está a fonte da vida, “onde a alma está como uma árvore plantada” (TERESA DE JESUS, 1951, 1, II, 2).

    Mas tal processo, assim entendia Santa Teresa, o ser realizava entrando em si mesmo através da primeira morada, a mais superficial, aonde não chega “quase nada de luz que sai do Palácio onde está o Rei” (TERESA DE JESUS, 1951, 1, II, 14). Ou seja, a mais temporal, aquela que, diríamos hoje, é exposta à esfera pública. É nesse primeiro círculo da alma que se encontram nossas dúvidas e perplexidades, nossas ansiedades e encantamentos com o espírito e o mundo. É nessa morada que nos debatemos com nossos erros, mas é através dela que entramos nas moradas interiores, isto é, na nossa intimidade. “Todo inferno se juntará”, sustenta calmamente Santa Teresa, para fazer a consciência “tornar a sair para fora” (TERESA DE JESUS, 1951, 2, 1), não seguir essa jornada, não ir ao encontro da Verdade, ou torná-la submetida à vontade geral.

    A possibilidade de controlar o portal da interioridade, ou a submissão da intimidade a uma esfera pública tomada de descrença e de inúmeros interesses alheios à identidade individual, capaz de ordená-la a partir de ansiedades exclusivamente materiais, torna difícil o movimento pelo qual se processa a construção da identidade. A consciência acaba por ser dirigida para fora de seu mundo privado, diante do terror da vontade geral. O discernimento é dilacerado pelo mundo e por suas intenções, contrárias normalmente àquela singularidade própria que caracteriza a personalidade individual.

    O conflito entre a privacidade, ou a intimidade, e a esfera pública ou a vontade geral adquire, assim, o perfil que expressa o paradoxo de um ser que é social, mas também só. Que é solidário, mas também dotado de uma identidade própria. Mas, principalmente, que é capaz de buscar na sua essência aquilo que o torna Homem, sem o que não há condições de qualquer exercício de autonomia, discernimento e liberdade. A ser assim, a privacidade usualmente triunfa sobre a esfera pública, pela sua pertinência e pelo seu significado na possibilidade de tornar o ser humano capaz de exteriorizar aquilo que ele é, em sua intimidade e absoluta particularidade.

    Bibliografia

    ARENDT, H. (2009). La Condición Humana. Buenos Aires: Paidos.

    ELIAS, N. (1994). O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar.

    HABERMAS, J. (2003). Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

    MACDOUGALL, B. (2005). “Privacy”. In M. C. Horowitz (ed.). New Dictionary of the History of Ideas. Farmington Hills: Thomson Gale.

    MARX, K. (1993). A Questão Judaica. Lisboa: Edições 70.

    RENGEL, A. (2013). Privacy in the 21st Century. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers.

    RICHARDSON, J. (2016). Law and the Philosophy of Privacy. New York: Routledge.

    RICHARDSON, M. (2017). The Right to Privacy: Origins and Influence of a Nineteenth-Century Idea. Cambridge: Cambridge University Press.

    ROESSLER, B. & MOKROSINSKA, D. (2015). Social Dimensions of Privacy: Interdisciplinary Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.

    TERESA DE JESUS, S. (1951). Castillo Interior o las Moradas. In Obras Completas. Madrid: Aguilar.

    STAPLES, W. G. (ed.). Encyclopedia of Privacy. Westport, CT: Greenwood Press.

    SCHOEMAN, F. D. (1998). Privacy and Social Freedom. Cambridge: Cambridge University Press.

    SCHOEMAN, F. D. (ed.) (1984). Philosophical Dimensions of Privacy: An Anthology. Cambridge: Cambridge University Press.

    WACKS, R. (ed.) (1993). Privacy. New York: New York University Press.

    WACKS, R. (2010). Privacy a Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press.

    WESTIN, A. (1967). Privacy and Freedom. New York: IG Publishing.

     

    Autor: Edgard Leite Ferreira Neto

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