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    Propriedade [Dicionário Global]

    A ideia de propriedade é prévia ao Direito e não é por ele empregue na exclusividade, ao servir de objeto a outros quadrantes da vida e do saber (nomeadamente, à Filosofia, à História, à Economia, à Sociologia, à Antropologia). A densificação de propriedade é naturalmente desafiadora, sendo capaz de assumir contornos distintos.

    Na cultura ocidental, a “propriedade” representa uma instituição que em muito caracteriza a posição do indivíduo perante a sociedade e perante o poder político, numa relação que, sobretudo a partir dos séculos XVII e XVIII (com o advento da modernidade), conheceu significativas alterações estruturais, separando-se a tradição aristotélica e a tradição moderna. Na aceção aristotélica, acreditava-se existir uma distinta forma de vida que mereceria ser qualificada como vida boa, para a qual contribuíam as capacidades e as aptidões das pessoas. Todas as ações representariam um meio para atingir esse fim, pelo que aquelas que o promoviam eram tidas como ações boas e, contrariamente, se as ações desse fim se afastassem, seriam tidas como ações más. E viver uma vida distintamente humana implicaria ainda a disponibilidade sobre os recursos materiais. Já na tradição moderna, a identificação objetiva dos aspetos da vida humana deixa de fazer sentido, caindo a pretensão de isolar os traços característicos da vida boa, e é salientada a vontade e a escolha. Na conceção utilitarista, releva assegurar que as preferências de cada um sejam realizadas na maior medida possível. As escolhas são importantes porque revelam as preferências das pessoas. Na conceção de Kant e de Hegel, as escolhas são importantes porque exprimem a liberdade e a autonomia de cada um (BRITO, 2010, 9 e ss.).

    No pensamento de John Locke, associado ao movimento liberal, todos os homens são iguais em direitos e, para além da vida e da liberdade, a propriedade constitui um direito natural ao ser humano, cabendo a qualquer sistema de governo assegurá-lo (LOCKE, 2007, 55 e ss.). Numa vertente socialista é defendida a coletivização da propriedade, a ser usada para benefício de todos. Numa versão limite deste pensamento, Proudhon responde à pergunta “[o] que é a propriedade?” dizendo “é o roubo”, surgindo, aqui, propriedade e roubo como “termos sinónimos” (PROUDHON, 1997, 11 e ss.).

    Estas são apenas algumas das construções erigidas em torno do conceito propriedade, e, atendendo ao âmbito do presente Dicionário, procurar-se-á apenas abordar o conceito à luz de uma perspetiva jurídica, que o reconduz à esfera dos direitos – enquanto direito fundamental e direito subjetivo.

    Enquanto direito subjetivo, a propriedade (art. 1302.º e ss. do Código Civil) é um direito de carácter real – aliás, é o direito real de gozo prototípico (já que é por referência a ele que os outros direitos reais se constroem) –, pressupondo o domínio ilimitado e exclusivo de uma pessoa sobre uma coisa (SAVIGNY, 1981, 367). Não sendo simples, ainda assim, definir propriedade – especialmente perante construções que negam a existência de uma propriedade, antes se admitindo várias propriedades, já que o respetivo conteúdo será variável em função do objeto e da natureza (DUARTE, 2007, 48) –, é possível, pelo menos com maior segurança, identificar aquelas que são as características do direito de propriedade. O direito de propriedade diz-se, então, i) tendencialmente pleno, abrangendo todos os poderes que sobre uma coisa podem existir (uso, fruição, disposição); ii) elástico, tendendo a expandir-se até ao máximo das faculdades que pode comportar; iii) perpétuo, não tendo princípio, prazo, pelo que não cessa pelo decurso do tempo; iv) transmissível, por ato inter vivos ou mortis causa. O direito de propriedade permite que o respetivo titular exija que todos os terceiros se abstenham de qualquer invasão na esfera desse direito, operando erga omnes e revelando que em causa está uma relação privada de uma pessoa singular ou coletiva com determinados bens e que pressupõe um dever de abstenção ou de não perturbação, ou seja, uma obrigação universal de respeito.

    Não obstante, a recondução do direito de propriedade ao universo das coisas é castradora: na verdade, o objeto do direito de propriedade abrange, para além da propriedade de coisas (móveis e imóveis), a propriedade científica, literária ou artística, outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, direitos de crédito, partes sociais), não coincidindo, na plenitude, com aquele conceito civilístico. É exatamente neste sentido mais amplo, diversificado e garantísticamente mais extenso que o direito de propriedade é elevado a direito fundamental, constitucionalmente consagrado. De qualquer forma, o âmbito da consagração constitucional da propriedade privada deverá ser integrado pela lei ordinária (aqui se incluindo, evidentemente, o disposto no Código Civil), que faz parte inclusivamente do regime do respetivo direito fundamental.

    Enquanto direito fundamental, à luz de uma conceção constitucional liberal-burguesa, o direito de propriedade correspondia ao primeiro dos direitos fundamentais, enquanto fundamento de todos os outros. Porém, com a Constituição de 1976, o direito de propriedade continuou a ser concebido enquanto direito fundamental, conhecendo expressa consagração no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa (“direito de propriedade privada”), mas integrado entre os “direitos económicos”. A inserção sistemática do art. 62.º é reveladora de que a propriedade privada constitui um importante instrumento da realização da democracia económica, social e cultural, de promoção da igualdade e de correção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (MIRANDA & MEDEIROS, 2017, 898). Neste sentido, mais do que consagrar um direito de propriedade, o art. 62.º estabelece também um direito à propriedade de natureza social (FRANCO & MARTINS, 1993, 168 e ss.). É, assim, garantido não só um direito de os particulares adquirirem bens com valor patrimonial, revestindo-se de uma natureza negativa ou de defesa, afastando a interferência do Estado e, por isso, sendo tido como um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, mas também um direito geral de apropriação cuja promoção incumbe ao Estado. Há um compromisso constitucional com um espaço de cidadania em que todas as pessoas dispõem da possibilidade de se tornar proprietárias (MIRANDA & MEDEIROS, 2017, 898), encontrando-se na Lei Fundamental garantias desta dimensão. Refira-se, a título de exemplo, a própria Constituição fiscal, da qual decorre o princípio da legalidade do imposto (arts. 165.º, n.º 1, alínea i), 103.º, n.º 2) e o princípio da capacidade contributiva (art. 104.º), numa clara proteção da propriedade dos contribuintes.

    O conteúdo básico do direito de propriedade privada integra: i) o direito de aceder à propriedade, com a liberdade de adquirir bens (o que não implica que todos os bens sejam ou devam ser suscetíveis de apropriação privada); ii) o direito de não ser dela arbitrariamente privado, afastando-se investidas arbitrárias dos poderes públicos; iii) o direito de transmitir a propriedade inter vivos ou mortis causa (sem prejuízo, nomeadamente, das obrigações de venda, do direito de preferência, das limitações de disposição testamentária); e iv) o direito de livremente usar e fruir a propriedade, sem prejuízo das restrições previstas (AMORIM, 2014, 226). Acrescenta-se também uma quinta dimensão: o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém direito de propriedade (CANOTILHO & MOREIRA, 2014, 802), num poder de perseguição sobre os mesmos.

    O aludido art. 62.º institui, ainda, objetivamente, quer uma garantia de existência de propriedade (de valores patrimoniais concretos e existentes), quer um direito de aquisição de propriedade (de valores patrimoniais abstratos), protegendo, desta forma, a possibilidade ou a expectativa de titularidade da propriedade. Subjetivamente, o direito de propriedade a nenhum “titular” (cidadão – art. 12.º, n.º 1; pessoa coletiva – art. 12.º, n.º 2, estrangeiros e apátridas – art. 15.º, todas da Constituição) pode deixar de ser reconhecido, nem pode ser objeto de restrições fundadas na qualidade subjetiva do titular (como a residência, a nacionalidade ou outra).

    Não se trata, de qualquer forma, de um direito garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e com as restrições previstas na Constituição. Tais restrições assentam, desde logo, em razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional.

    No plano constitucional, o direito de propriedade, para além de ser consagrado e disciplinado como direito fundamental, é também tido como direito institucional de propriedade, pública, cooperativa e social, ou privada, sendo definida a propriedade como elemento integrante da organização económica, no art. 82.º da Constituição (FRANCO & MARTINS, 1993, 171).

    Histórica e culturalmente, o direito de propriedade é um direito exterior à pessoa do proprietário, pelo que será duvidoso que, no âmbito de proteção deste direito, venha a caber o direito a dispor do próprio corpo ou de partes do corpo (CANOTILHO & MOREIRA, 2014, 806). O domínio sobre o corpo é mais consentâneo, assim, com um tipo de direito de personalidade, enquanto espécie de direito subjetivo absoluto que a cada qual se concede, em defesa da respetiva dignidade.

    De resto, o direito de propriedade é alvo de proteção por via de instrumentos de Direito Internacional (art. 17.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 1.º do Protocolo adicional n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos) e de Direito da União Europeia (art. 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

    Bibliografia

    AMORIM, J. P. de (2014). “Direito de propriedade privada e garantia constitucional”. In L. P. Cunha et al. (org.). Boletim de Ciências Económicas. Homenagem ao Prof. Doutor António José Avelãs Nunes, 57 (1), 225-304.

    BRITO, M. N. (2010). Propriedade Privada: Entre o Privilégio e a Liberdade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

    LOCKE, J. (2007). Segundo Tratado do Governo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

    FRANCO, A. L. S.  & MARTINS, G. O. (1993). A Constituição Económica Portuguesa – Ensaio Interpretativo. Coimbra: Almedina.

    MIRANDA, J. & MEDEIROS, R. (2017). Constituição Portuguesa Anotada. (vol. I) (2.ª ed. rev.). Lisboa: Universidade Católica Editora.

    PRODHON (1997). O que é a Propriedade? Trad. M. Caeiro. Lisboa: Editorial Estampa.

    Autora: Andreia Barbosa

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