Proteção Social [Dicionário Global]
Proteção Social [Dicionário Global]
Noção: aproximações
A proteção social é um conceito que, apesar da sua ressonância, está longe de ser inequívoco, encontrando-se variantes quer no plano normativo quer doutrinário, nomeadamente quando se tem presente a multiplicidade de ordenamentos jurídicos e a pluralidade de “níveis” (nacional, supranacional e internacional) envolvidos. Numa aceção muitíssimo ampla, corresponderia ao campo dos direitos sociais, que, na perspetiva dos direitos humanos, se espelha paradigmaticamente no Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966.
Se olharmos para o plano da União Europeia, é recorrente a formulação – proteção social –, mas ainda aí o uso não é uniforme. O MISSOC (EU’s Mutual Information System on Social Protection) compreende diferentes áreas (para além do financiamento), a saber: cuidados de saúde, doença, parentalidade (maternidade/paternidade), invalidez, velhice, sobrevivência, acidentes de trabalho e doenças profissionais, prestações familiares, desemprego, garantia de recursos mínimos/rendimento mínimo garantido e cuidados de longa duração. Quanto ao Tratado da União Europeia (TUE), o art. 3.º estabelece a obrigação de promoção da justiça e proteção sociais. No que se refere ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), os arts. 9.º – que consagra “objetivos transversais” (Querschnittsziele), incluindo a luta contra a exclusão social (KOCHER, 2023), Rn. (Número de margem) 9 – e 151.º falam de “proteção social adequada”, entendida como uma dimensão programática, que mobiliza um conceito mais amplo do que o do artigo 153.º, na medida em que abrange também a proteção social no local de trabalho (KOCHER (2023a), Rn. (número de margem) 39). Na verdade, o art. 153.º, n.º 1 fala, na alínea c), de “segurança social e proteção social dos trabalhadores” e, na alínea k), estabelece-se o concurso da União para apoiar e completar a ação dos Estados-Membros no que toca à “[m]odernização dos sistemas de proteção social”. Na Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho, no art. 3.º, n.º 1, alínea e), utiliza-se um conceito de proteção social que “inclui […] a segurança social e os cuidados de saúde”. No Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 (RGPD – Regulamento Geral de Proteção de Dados), no art. 9.º, n.º 2, alínea b), refere-se “matéria de legislação laboral, de segurança social e de proteção social”.
O recorte das diferenças pode depender também da diversidade de tradições nacionais. Em França, embora encontremos obras intituladas Droit de la Sécurité Sociale (v.g. LAFORE & BORGETTO, 2023), predominam os textos dedicados ao Droit de la Protection Sociale (v.g. KESSLER, 2020, XXV, que considera que o “núcleo duro da proteção social” é dado “pelos mecanismos ditos de ‘segurança social’”).
Em termos mais precisos e numa perspetiva diacrónica, a proteção social é bastante mais antiga do que a segurança social, pois esta remonta à segunda metade do século XIX (na Alemanha), ou mesmo à primeira metade do século XX, consoante a noção que se adote. Partirmos de uma conceção de segurança social ampla (concretizada em 3.2.), que: a) não se limita à segurança social pública, antes compreende também a segurança social privada; b) na proteção de base ou primária, considera, do ponto de vista organizacional, diferentes entidades (no caso português, não se confunde com a Segurança Social, integrando também a Caixa Geral de Aposentações (CGA) e a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores – CPAS); c) não se circunscreve aos regimes obrigatórios, mas abraça também os regimes facultativos, públicos e privados. Nesta perspetiva mais alargada, que aqui se acolhe, em termos sincrónicos, tende a coincidir com proteção social, a não ser que se queira utilizar a última expressão de forma a abranger também, entre nós, os próprios cuidados de saúde, não curando agora da discussão em torno do domínio de acidentes de trabalho, em Portugal assegurado por seguros privados obrigatórios (NEVES, 2001, 568). Aliás, olhando para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o conceito é utilizado nuclearmente para compreender a segurança social (numa aceção que não se circunscreve à previdência, abrangendo também, desde logo, a ajuda social, essencial no combate à pobreza, tradicionalmente conhecida como assistência social), abraçando ainda, às vezes, os próprios cuidados de saúde (OIT, 2023: “Os países despendem em média 12,9 por cento do PIB em proteção social (excluindo a saúde)”, itálico nosso).
No mundo de língua portuguesa, se comparamos Portugal e Brasil, veremos que, enquanto no primeiro caso, a Constituição da República Portuguesa (CRP) distingue claramente, no plano jusfundamental, entre o direito à segurança social (art. 63.º) e o direito à proteção da saúde (art. 64.º), do outro lado do Atlântico, o direito à seguridade social integra o próprio direito à saúde (art. 194.º da CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil), além da previdência e da assistência social.
Proteção social: porquê e como
Para se compreender o “porquê” da proteção social, importa partir de um nível fundamental, que toma a sério a condição antropológica. Na base, está a fragilidade estrutural da condição humana – somos seres que, não apenas morrem, mas também adoecem e, nos primeiros tempos das nossas vidas, dependemos radicalmente de cuidados dos outros. A esta fragilidade estrutural, soma-se uma fragilidade epocal e circunstancial, traduzida, por exemplo, em novos riscos sociais, com diferente impacto. Algumas pessoas padecem de uma fragilidade especialmente acrescida (vulnerabilidade), em virtude de estarem afetadas por deficiências, físicas e/ou psíquicas, que exigem, em maior ou menor medida, cuidados adicionais. Num corte diacrónico, a paleta de respostas (o como da proteção social) é diversificada e encontramos uma diferença subsistémica das soluções e da natureza das obrigações (religião, moral e direito), uma pluralidade de sujeitos envolvidos (família, pessoas, instituições sociais e Estado) e diferentes técnicas de proteção social, inespecíficas ou indiferenciadas – tradicionalmente, a solidariedade familiar, a poupança, a caridade e a filantropia, a responsabilidade civil, entre outras; mais recentemente, o recurso a medidas de direito fiscal (KESSLER, 2020, 4-30) – ou específicas, como a previdência assente em seguros sociais (modelo bismarckiano, segurista ou laborista, com uma nota de obrigatoriedade, diferenciando-se da tradição mutualista voluntária), a assistência pública, tradicionalmente destinada a mitigar a pobreza (hoje, num quadro de direitos fundamentais, é preferível falar de ajuda social, como se faz na Alemanha) e ainda instrumentos de uma proteção social com vocação de universalidade (Nova Zelândia, em 1938 e 1939, e, pelo seu impacto, o modelo proposto no Relatório Beveridge).
Se considerarmos a sua história, no quadro do constitucionalismo moderno, vemos que a segurança social é uma resposta recente à questão da proteção social. A sua emergência e afirmação resultou, essencialmente, de quatro condições: a) socioeconómica (industrialização e riscos sociais e passagem a uma “sociedade técnica de massas”); b) político-institucional, resultante do desenvolvimento do Estado Social, da relevância dos partidos políticos e do alargamento do sufrágio; c) político-ideológica, no quadro da questão social ou operária (na Alemanha, conhecida como Arbeiterfrage – questão dos trabalhadores), num tempo marcado pelo desenvolvimento do movimento operário e a difusão do pensamento marxista e social-democrata por um lado e o contributo da ética social cristã (no quadro do catolicismo, a Doutrina Social da Igreja) por outro; d) jurídica, tendo-se recortado o princípio do Estado Social ou da socialidade e, mais tarde, os direitos económicos, sociais e culturais (no século XX, embora com alguns antecedentes no constitucionalismo oitocentista).
Em termos de modelos da segurança social, face aos socorros mútuos, tradicionalmente assentes numa base voluntária, Bismarck avançou com seguros sociais obrigatórios (conceção laborista ou segurista), sem prejuízo da existência de alguma legislação prussiana anterior. O quadro normativo passou por leis sobre o seguro de doença (1883), sobre o seguro de acidentes de trabalho (1884) e sobre o seguro de invalidez e velhice (1889). Tratava-se de seguros públicos (sociais) e não privados, com um âmbito subjetivo de proteção limitado, pois apenas eram protegidos os assalariados industriais e agrícolas, bem como outras pessoas com rendimentos baixos. Sem prejuízo da gestão do sistema estar a cargo de entidades autónomas (dimensão organizacional), sublinha-se a garantia estatal do sistema e, no plano do financiamento, o concurso das entidades empregadoras por via de contribuições, sendo estas determinadas em função do montante dos salários no caso dos segurados, não relevando os riscos pessoais para a fixação do seu montante. Na Dinamarca, numa sociedade marcadamente rural, optou-se por acolher um modelo assistencialista da segurança social, em 1891, que encontrará expressão também na Nova Zelândia, no Old Age Pensions Act, em 1898, com especificidades em relação ao modelo dinamarquês. A assistência era compreendida como um verdadeiro direito. Diferentemente da Alemanha, tratava-se de prestações não contributivas, sendo cobertas todas as pessoas mais velhas (idade de acesso: 65 anos, no caso dos homens; 60 anos para as mulheres) que necessitassem, de acordo com um “teste de meios” (condição de recursos, na terminologia tradicional entre nós). Em relação ao financiamento, na Dinamarca os custos eram divididos entre o Estado e os municípios.
O modelo dos seguros sociais foi acolhido entre nós: sem prejuízo de legislação anterior, costuma assinalar-se o papel dos diplomas de 1919, mas este pacote normativo teve uma aplicação limitada (com outras indicações, LOUREIRO, 2019).
O grande modelo alternativo ao quadro segurista e laborista resultou do famoso relatório Beveridge (Social Insurance and Allied Services – 1942), elaborado durante a Segunda Grande Guerra Mundial (para uma síntese em português, LEAL, 1978, 347-348; NEVES, 1996, 154-157). Rapidamente traduzido, total ou parcialmente, em diferentes línguas, entre as quais a portuguesa (em Portugal, cf. BEVERIDGE, 1943; no Brasil, BEVERIDGE, 1943a), esta conceção assenta nas seguintes linhas de força: a) quanto ao âmbito subjetivo ou pessoal de proteção (universalidade): cobertura dos residentes, e não apenas dos nacionais, não estando a garantia limitada aos trabalhadores; b) integração das tradicionais técnicas de assistência e de previdência; c) uniformidade (mas apenas tendencial) do montante das prestações; d) diversificação do financiamento (contribuições, mas importância significativa dos impostos); e) gestão dos regimes em termos de serviço público (NEVES, 156-157, 1996). Um aspeto muito relevante foi a criação do National Health Service (NHS) para a prestação dos cuidados de saúde, assente na via fiscal, e que veio a ser fonte de inspiração da Constituição de 1976 (Serviço Nacional de Saúde).
Segurança social: algumas precisões
Reconduzida a proteção social atualmente e neste quadro à noção de segurança social, impõem-se algumas precisões, a saber: a diferença entre social(idade) em sentido amplo e em sentido restrito; a noção de segurança social.
Social(idade) em sentido amplo e social(idade) em sentido restrito
Na esteira de Hans Zacher, sublinha-se a diferença entre social(idade) em sentido amplo e em sentido restrito (ZACHER, 2009). Na impossibilidade de reconstituir aqui a história do conceito, e de uma forma necessariamente sucinta, incapaz de dar voz aprofundada à construção deste nome maior do Direito da segurança social, dir-se-á que em sentido amplo nos movemos no âmbito da internalização do social, nota marcante do Estado Social. Segundo Zacher, esta internalização nos campos e nas relações que conformam a normalidade do social (v.g. o mercado) é atestada na proteção por via do Direito do trabalho, em termos de disciplina dos contratos e de estabelecimento, por exemplo, de salários mínimos dignos, ou da proteção do consumidor enquanto parte mais fraca ou vulnerável. Já o social em sentido estrito é o território da segurança social, visando resolver défices: de rendimentos, em virtude da ocorrência de eventualidades (riscos sociais, em termos sociológicos), geradoras de perda de rendimentos e de aumento de encargos, tais como a doença e o desemprego, entre outras; de cuidados, respondendo a situações de pessoas, que estão ou são vulneráveis (isto é, especialmente frágeis, como cidadãos com deficiências profundas); de relações, que ainda se poderia reconduzir à anterior, mas que merece autonomização, domínio em que a intervenção da segurança social é limitada – pela natureza da amizade (philia), ninguém pode obrigar outrem a ser seu amigo na aceção própria –, ainda que não irrelevante, ao possibilitar a existência de espaços de relacionalidade, mitigando a solidão (centros de dia, por exemplo).
Segurança social: noção
É discutível se é viável uma aceção material ou substantiva de segurança social, mais adequada, mas também mais problemática, que permita recortar o seu campo, possibilitando comparações entre Estados, ou se teremos de nos contentar como uma conceção formal, variável de país a país. É possível uma primeira aproximação, que tome a sério a historicidade e não desconheça as necessárias contextualizações, desde que se assuma que essa caracterização material se inscreve no domínio dos conceitos tipológicos e não dos conceitos definitórios (MELO, 1988, 24-26). Por outras palavras: diferentemente das definições, no caso dos conceitos tipológicos não é necessário que se verifiquem todas as características, mas apenas as mais importantes (“um núcleo significativo ou representativo delas”: MELO, 1988, 25), pelo que nem todas as notas têm de estar presentes numa ordem jurídica concreta.
De uma forma sintética e densa, a segurança social surge como uma resposta coletiva, em regra externalizada, a um conjunto de necessidades socialmente reconhecidas, assente num conjunto de prestações, em dinheiro ou espécie, únicas ou periódicas, dependentes ou não de condição de recursos, a título próprio ou derivado, assumindo o Estado e/ou outras entidades públicas funções de prestador ou garantidor, sem prejuízo de a prestação ser feita por outras entidades, com ou sem escopo lucrativo, como cobertura primária ou secundária (complementar), visando a solução de défices, em termos de rendimentos (neste caso, através da sua substituição total ou parcial, assentes num critério de garantia do mínimo ou do standard de vida) ou de cuidados (em sentido amplo), surgidos ou não no quadro da profissão, da família ou de outras esferas de interação social, utilizando técnicas específicas (por exemplo, previdência) e alicerçado numa pluralidade possível de meios de financiamento (para o desenvolvimento destes pontos, cf. LOUREIRO, 2014, 48-53).
Variando as concretizações consoante o ordenamento jurídico, é possível identificar domínios típicos da segurança social, que acrescem às duas asas tradicionais (previdência e assistência/ajuda social): pense-se, desde logo, na ação social, mas também na compensação ou reparação social (atribuição, pela comunidade e via fiscal, de prestações sociais a vítimas).
Proteção social: alguns desafios
Em geral, a proteção social confronta-se com desafios resultantes de mutações demográficas, económicas, sociais, ambientais e tecnológicas, entre outras. Contudo, a par destes reptos, não desapareceram problemas clássicos, como a diferença fáctica da proteção social no que toca às mulheres, bem como o impacto da pobreza infantil. A crescente relevância da proteção das gerações futuras ou vindouras é motivo-diretor que se expressa no recorte de um princípio de justiça intergeracional que, só em parte, coincide com o princípio da sustentabilidade (LOUREIRO, 2010, 279).
Demografia: pessoas
A revolução biomédica gerou um conjunto de possibilidades de aumento muito significativo da esperança média de vida, as quais, em virtude do triunfo do Estado Social (por via da proteção social), se tornaram acessíveis em muitas sociedades, nomeadamente na Europa, de acordo com um princípio da universalidade das prestações. Ou seja, a proteção social contribuiu para os problemas de sustentabilidade do próprio sistema, falando-se de riscos de “segunda ordem” (expressão de Leisering citada por ULLRICH, 2005, 66). Esta extensão da esperança de vida gera despesas acrescidas nos sistemas, ao aumentar relevantemente o número de pessoas que atinge a idade da pensão de reforma ou de aposentação, ao mesmo tempo que se assistiu a quedas dramáticas do número de nascimentos, tendo-se invertido a chamada pirâmide demográfica. Em Portugal, na lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro (Lei da Bases da Segurança Social), estabeleceu-se a promoção da natalidade como uma das funções do sistema de proteção social, dispondo o n.º 2 do art. 27.º que as condições “podem consistir, designadamente, no desenvolvimento de equipamentos sociais de apoio na primeira infância, em mecanismos de apoio à maternidade e à paternidade e na diferenciação e modulação das prestações”.
Envelhecimento, redução da ratio entre pessoas no ativo e pensionistas, questões de justiça intergeracional, são alguns dos tópicos mobilizados na discussão. Na verdade, confrontamo-nos com a crise dos sistemas de repartição e a discussão de outros modelos (de capitalização e mistos) e ainda com a emergência de novos riscos sociais ou, pelo menos, da sua extensão. Pense-se nos cuidados, por exemplo, com um leque que vai desde prestações – por exemplo, entre nós, o complemento de dependência – à criação de um Estatuto do Cuidador Informal (com projeção, na legislação portuguesa, em termos de seguro social voluntário, incluindo uma taxa contributiva mais favorável para os cuidadores informais principais – cf. arts. 170.º, n.º 2, alínea e), 172.º, n.º 4, e 184.º, n.º 5, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social).
Globalização: espaços, mobilidade e “atopia”
Os modernos sistemas de proteção social foram criados num quadro de um Estado social basicamente nacional. Apesar do anúncio da “atopia” (WILLKE, 2001) – a irrelevância do local – e da existência de nómadas digitais, os Estados e a conformação dos sistemas de segurança social e a qualidade das suas prestações não são indiferentes. Sem prejuízo de traços de desglobalização, o processo de globalização (reduzido à sua dimensão económica, de globalismo – BECK, 1998) tem-se traduzido numa redução da capacidade ou margem de decisão dos Estados nacionais, num contexto marcado por uma fortíssima concorrência internacional, com impacto na segurança social. Perante enormes fluxos de migrações, de riscos que não conhecem fronteiras (como nos recordou recentemente a experiência pandémica) e com efeitos mundiais, assegurar, num mundo profundamente desigualitário, uma efetiva (e não apenas uma normativa – no papel) proteção social (ainda que básica: KALTENBORN, 2022, 1856) para todos os seres humanos não se afigura tarefa fácil.
Ambiente: proteção ecossocial
No quadro de uma “ecologia integral”, o desafio ambiental não deixa intocado os sistemas de proteção social. O Estado Social é (re)compreendido como um Ecoestado (BECKER, 2023), discutindo-se a adequação da segurança social, nomeadamente o lugar dos seguros sociais e dos mecanismos de compensação social neste âmbito (BECKER, 2023, 4-5).
Sublinha-se a diferente vulnerabilidade dos países. A título ilustrativo e limitando-nos ao mundo lusófono, assinala-se que um relatório sobre proteção social em Timor-Leste em 2023 (WORLD BANK, 2023) abre com a questão do “risco climático e da vulnerabilidade”, mobilizando o INFORM Risk Index 2023, em que o país se situa na 71.ª posição em 191, com um peso significativo de riscos como terramotos e inundações. Numa série de Estados, o impacto das alterações climáticas em curso aponta para cenários marcados pelo crescimento da desigualdade e da pobreza, com repercussão em termos de comida (recorde-se que o direito à alimentação tem proteção em sede de Direito Internacional dos direitos humanos – vg. no art. 11.º do PIDESC –, merecendo até autonomização no plano constitucional em diferentes países: v.g. art. 6.º da Constituição da República Federativa do Brasil).
Técnica(s): inteligência artificial e revolução 4.0
Fala-se hoje de uma segurança social 4.0 (BECKER & CHESALINA, 2021), que tem em atenção alterações trazidas pela inteligência artificial marcada por algoritmos aprendentes, pelos megadados (big data), pelas impressoras 3D, pela economia das grandes plataformas, etc. Embora a revolução cibernética provenha já do século passado, num primeiro tempo (3.0 – marcado pela automação –, transpondo a terminologia das revoluções industriais proposta por SCHWAB, 2017) assentou essencialmente numa transferência de registos do analógico para o digital. Multiplicam-se os chamados nómadas digitais, o teletrabalho a partir de casa (com uma “erosão”, diz Annemarie Aumann (2019, 22), de “fronteiras entre a esfera do trabalho e a esfera privada”), discute-se a possibilidade de (re)ativação das pessoas com deficiência (ativação social), mas também questões do financiamento da segurança social (a chamada tributação dos robôs, por exemplo). Também se debatem problemas da pobreza digital, desde logo em termos de pobreza económica e/ou de conhecimento e a sua eventual refração prestacional. O impacto da robótica em termos de (des)emprego gera forte controvérsia, tendo sido o argumento trazido também para a disputa em torno do rendimento básico incondicional, universal ou de cidadania.
Dimensões internacionais, supranacionais e nacionais do direito da proteção social
Proteção social e direitos humanos
O direito da proteção social articula-se com os direitos humanos e, no plano nacional (também da União Europeia), com os direitos fundamentais. Em última análise, funda-se no princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, uma visão não mutilada da dignidade exige que se tomem a sério as condições materiais de existência. No tipo Estado Constitucional, deve ser garantido, desde logo, o “mínimo para uma existência condigna” (ANDRADE, 2004). A segurança social vai muito para lá do combate à pobreza (em especial, à miséria, entendida como pobreza extrema), mas não há dúvidas quanto à relevância de políticas públicas nesta área. A própria previdência social, um dos campos tradicionais do que é hoje a segurança social, desempenha um papel essencial na sua prevenção. O campo da assistência social, num Estado Constitucional em que se passou a reconhecer tutela constitucional ao direito a um mínimo para uma existência condigna, melhor se denomina de ajuda social, ainda que esta designação possa revestir diferentes concretizações consoante as ordens jurídicas a que se refere. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relevam claramente em matéria de proteção social, quer se assuma esta expressão em sentido mais amplo, quer mais estrito. Tendo em vista alcançar uma proteção social universal, merece especial atenção logo o primeiro: “Erradicar a pobreza em todas as suas formas. Erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas em todos os lugares. Reduzir pelo menos pela metade a proporção de homens, mulheres e crianças de todas as idades que vivem na pobreza. Implementar sistemas e medidas de proteção social nacionalmente apropriados para todos. Garantir que todos têm direitos iguais aos recursos económicos e acesso a serviços básicos”.
Segundo os números da OIT relativos à meta 1.3. (“Implementar, a nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo limiares, e até 2030 atingir uma cobertura substancial dos mais pobres e vulneráveis”), só cerca de metade da população mundial (47%) é que está abrangida, mais de 2/3 das crianças não recebem prestações monetárias.
Direito Internacional da segurança social (mundial)
No plano internacional, os ventos da globalização e a mobilidade que lhe está associada tornaram mais necessário o desenvolvimento de um Direito Internacional da segurança social. Remonta ao princípio do século XX um Direito Internacional operário, sendo considerado um marco a celebração de tratados na área da previdência social internacional, o primeiro dos quais franco-italiano (1904).
- Tarefas
No Direito Internacional da proteção social, pode pretender-se prosseguir escopos de harmonização – de aproximação dos conteúdos dos regimes jurídicos de segurança social – ou de coordenação, ou seja, de articulação de diferentes ordens jurídicas, tratando de problemas como a determinação da ordem aplicável, procurando afastar quer o vazio de proteção quer a acumulação ilegítima de prestações sociais, face à conexão com o quadro normativo de mais de um país. A pedra de toque da coordenação é, pois, a mobilidade e a conexão com diferentes ordens jurídicas. Soluções que podem resultar de convenções internacionais, bilaterais (no caso português, Convenção sobre Segurança Social entre a República Portuguesa e a República de Angola, assinada em Luanda em 27 de outubro de 2003, por exemplo) ou multilaterais (v.g. Convenção Multilateral Ibero-Americana, adotada em Santiago, Chile, em 10 de novembro de 2007).
- Instrumentos internacionais globais
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem (redenominada dos Direitos Humanos), de 10 de dezembro de 1948, assumem especial relevância os arts. 22.º e 25.º. O primeiro consagra o direito à segurança social em registo de universalidade: “Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país”.
Já o art. 25.º, prevê, no n.º 1, o direito a um nível de vida suficiente e um “direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na velhice ou noutros casos de perda de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”. No n.º 2, garante-se especial proteção da maternidade e da infância. Esse direito a um nível de vida suficiente inclui um direito à alimentação, considerado um direito humano básico.
O Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) não deixa de considerar a segurança social como um direito (art. 9.º), incluindo o seguro social que nos remete para o campo previdencial. O art. 11.º afirma o direito a um nível de vida suficiente.
Assume particular relevo, em termos institucionais, mas com relevantíssima projeção normativa, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada em 1919 (Tratado de Versalhes), que contribui decisivamente para recortar um standard de proteção social – em relação à Constituição da Organização e às Convenções, Recomendações, Declarações e Resoluções, cf. OIT (2019). No início da sua centenária história, encontramos a defesa de seguros sociais obrigatórios, com tradução numa primeira geração normativa, que vai de 1919 a 1944, ano da Declaração de Filadélfia (sobre as gerações normativas da OIT, PENNINGS & SCHULTE, 2006). Com esta, ganha fôlego a exigência de universalidade e aprova-se, em 1952, a Convenção n.º 102, que estabeleceu uma norma mínima de segurança social, tomando a sério uma pluralidade de riscos sociais, configurando-se como um instrumento de harmonização. Também aqui a assimetria e a desigualdade do mundo é marcante: nalgumas zonas do globo (desde logo, em diferentes países africanos), a proteção social por via de segurança social (nomeadamente, o enquadramento previdencial) é muito limitada, quer do ponto de vista da cobertura pessoal quer das prestações sociais e dos seus montantes.
Além dos instrumentos gerais de segurança social, ainda no campo de fontes com vocação universal, importa ver textos sectoriais que têm previsões específicas no campo da segurança social. Pense-se, por exemplo, na Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 26.º) ou na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 28.º – Nível de vida e proteção social adequados; na doutrina, SOUSA, 2020, 271-277).
Direito do Conselho da Europa
Quanto ao direito do Conselho da Europa, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (entretanto rebatizada dos Direitos Humanos – CEDH) centra-se nos tradicionais direitos civis e políticos. Contudo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (agora dos Direitos Humanos – TEDH), a partir de um conjunto de direitos, alicerçou prestações do campo da segurança social (na doutrina, v.g. COUSINS, 2008). A título ilustrativo, mencionem-se preceitos como o art. 2.º CEDH (direito à vida), o art. 3.º CEDH (tratamento desumano ou degradante), o art. 4.º (proibição do trabalho forçado e da escravatura) e o art. 1.º do Protocolo Adicional n.º 1 (propriedade)).
Registe-se ainda a Carta Social Europeia (18 de outubro de 1961), revista em 3 de maio de 1996, a Convenção Europeia sobre o Estatuto Jurídico do Trabalhador Migrante (24 de novembro de 1977), o Código Europeu de Segurança Social (1964) e Convenção Europeia de Segurança Social e Acordo Complementar (1972). Assinale-se o papel da Carta Social Europeia, seja ou não na sua versão revista, que não foi ratificada por todos os Estados obrigados pela convenção internacional de 1961, não beneficia da proteção jurisdicional do TEDH e opera segundo um mecanismo de relatórios nacionais e de queixas coletivas, estando a sua garantia a cargo do Comité Europeu dos Direitos Sociais. Limitando-me à segurança social em sentido estrito (não compreendendo, portanto, os cuidados de saúde), veja-se, desde logo, o art. 12.º, que na, sua versão revista, dispõe:
“Com vista a assegurar o exercício efetivo do direito à segurança social, as Partes comprometem-se: 1) A estabelecer ou a manter um regime de segurança social; 2) A manter o regime de segurança social num nível satisfatório, pelo menos igual ao necessário para a ratificação do Código Europeu de Segurança Social; 3) A esforçar-se por elevar progressivamente o nível do regime de segurança social; 4) A tomar medidas, mediante a conclusão de acordos bilaterais ou multilaterais apropriados ou por outros meios e sob reserva das condições fixadas nestes acordos, para assegurar: a) A igualdade de tratamento entre os nacionais de cada uma das Partes e os nacionais das outras Partes no que respeita aos direitos à segurança social, incluindo a conservação dos benefícios concedidos pelas legislações de segurança social, quaisquer que possam ser as deslocações que as pessoas protegidas possam efectuar entre os territórios das Partes; b) A atribuição, a manutenção e o restabelecimento dos direitos à segurança social por meios como, por exemplo, a soma dos períodos de segurança ou de emprego completados de harmonia com a legislação de cada uma das Partes”.
À semelhança do que acontece noutras fontes normativas, o direito à assistência social não está compreendido neste preceito, merecendo tratamento autónomo no art. 13.º.
Direito da União Europeia
Cabe basicamente aos Estados nacionais a competência na conformação dos seus sistemas de segurança social. Falando-se hoje de uma Europa social, regista-se que, logo nas negociações que levaram ao Tratado de Roma (1957), se confrontaram visões distintas quanto à proteção social, defendendo os franceses a importância de uma harmonização social, posição que mereceu a oposição da Alemanha (sobre este processo, FUCHS, 2022, 36).
Para além de normas relevantes constantes dos Tratados (cf., por exemplo, as indicadas supra, no n.º 1, consagrado à noção de proteção social), assinala-se a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), cujo art. 34.º tem como epígrafe “Segurança Social e assistência social” (na doutrina, cf. ABRANTES et al. (2013). Lê-se no preceito:
“1. A União reconhece e respeita o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência ou velhice, bem como em caso de perda de emprego, de acordo com o direito da União e com as legislações e práticas nacionais.
2. Todas as pessoas que residam e se desloquem legalmente no interior da União têm direito às prestações de segurança social e às regalias sociais nos termos do direito da União e das legislações e práticas nacionais.
3. A fim de lutar contra a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito da União e com as legislações e práticas nacionais”.
Repare-se que a expressão “segurança social” é aqui utilizada numa aceção mais restrita do que a noção proposta, pois a chamada assistência social aparece autonomizada em relação à segurança social. Recorda-se ainda a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (9 de dezembro de 1989), em que, sob a epígrafe Proteção Social, se lê: “De acordo com as regras próprias de cada país: 10. Todos os trabalhadores da Comunidade Europeia têm direito a uma proteção social adequada e devem beneficiar, qualquer que seja o seu estatuto e a dimensão da empresa em que trabalham, de prestações de segurança social de nível suficiente. As pessoas excluídas do mercado de trabalho, quer porque a ele não tenham podido ter acesso quer porque nele não se tenham podido reinserir, e que não disponham de meios de subsistência devem poder beneficiar de prestações e de recursos suficientes, adaptados à sua situação pessoal”.
A determinação da proteção em termos de segurança social é, como referimos, competência, em primeira linha, dos Estados nacionais. Já a coordenação dos sistemas nacionais de segurança social reveste especial importância na ação da União, enquanto contributo para efetivar a liberdade de circulação. Com efeito, na ausência destes mecanismos de coordenação, um trabalhador que ao longo da sua vida profissional desempenhasse a sua atividade mudando de Estado-Membro corria o risco de, por exemplo, não conseguir cumprir o prazo de garantia necessário para o acesso a uma pensão de velhice em nenhum dos países. Destacam-se o Regulamento (CE) n.º 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril (regulamento de base, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 988/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro) e o Regulamento (CE) n.º 987/2009 (regulamento de aplicação) do Parlamento Europeu e do Conselho, também de 16 de setembro. Estamos perante um direito de conflitos, que determina qual a ordem jurídica nacional aplicável. Valem aqui princípios tais como: a unicidade da legislação aplicável (no que toca às regras gerais, art. 11.º do Regulamento n.º 883/2004), normalmente a lex loci laboris, isto é, a legislação do Estado-Membro onde exerça a atividade como trabalhador dependente ou independente; igualdade de tratamento (proibição da discriminação dos nacionais dos Estados-Membros – art. 45.º, n.º 2, do TFUE; art. 4.º do Regulamento (CE) n.º 883/2004); equivalência ou assimilação (Igualdade de tratamento de prestações, de rendimentos e de factos – art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 883/2004: cf. HENNIONS et al. (2017), 235-236); princípio da totalização dos períodos de seguro, de emprego, de atividade por conta própria ou de residência (art. 48.º, alínea a), do TFUE; art. 6.º do Regulamento (CE) n.º 883/2004); exportação ou transferibilidade das prestações, previsto no art. 48.º, alínea b), do TFUE e no art. 7.º do Regulamento (CE) n.º 883/2004, sem prejuízo da existência de algumas exceções em que releva o lugar de residência (prestações especiais “que estão relacionadas com o contexto económico e social do interessado” – Considerando n.º 16 –, por exemplo). Há uma significativa jurisprudência neste domínio, que, à semelhança do que acontece, no plano nacional, com os acórdãos do Tribunal Constitucional, não pode ser aqui considerada.
Além disso, no campo da coordenação de sistemas de pensões complementares (HENNION et al., 2017, 243-255), mencionem-se a diretiva 98/49/CE do Conselho, de 29 de junho (relativa à salvaguarda dos direitos a pensão complementar dos trabalhadores assalariados e independentes que se deslocam no interior da Comunidade) e a diretiva 2014/50/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril (requisitos mínimos para uma maior mobilidade dos trabalhadores entre os Estados-Membros, mediante a melhoria da aquisição e manutenção dos direitos a pensão complementar).
Uma referência ainda ao Método Aberto de Coordenação (MAC) social. No art. 156.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, dispõe-se o seguinte:
“[…] a Comissão incentivará a cooperação entre os Estados e facilitará a coordenação das suas ações no domínio da política social abrangidos pelo presente capítulo, designadamente em questões relativas: […] – à segurança social […] Para o efeito, a Comissão atuará em estreito contacto com os Estados-Membros, realizando estudos e pareceres e organizando consultas, tanto sobre os problemas que se colocam ao nível nacional, como sobre os que interessam às organizações internacionais, nomeadamente através de iniciativas para definir orientações e indicadores, organizar o intercâmbio das melhores práticas e preparar os elementos necessários à vigilância e à avaliação periódicas. O Parlamento Europeu é plenamente informado. Antes de formular os pareceres previstos no presente artigo, a Comissão consultará o Comité Económico e Social”.
Estamos perante um método de governança (governance), no quadro de uma “aprendizagem mútua”, de uma “coordenação soft” (CANTILLON & VAN MECHELEN, 2012, 178).
Portugal: Constituição da República Portuguesa e Lei de Bases da Segurança Social
Sem prejuízo da relevância das fontes de Direito Internacional, os atores essenciais na realização da proteção social são os Estados nacionais. Neste contexto, limitar-nos-emos a uma breve referência à CRP e à Lei de Bases da Segurança Social (lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, alterada pela lei n.º 83-A/2013, de 30 de dezembro).
Nas Bases da Constituição Portuguesa (1821) encontramos primícias de proteção social – recorde-se o art. 37.º, em que, para lá da referência à instrução pública, se dispõe que “As Cortes farão e dotarão Estabelecimentos de caridade”, prevendo-se depois na Constituição de 1822, no art. 240.º, com que encerra, que “As Cortes e o Governo terão particular cuidado da fundação, conservação, e aumento das Casas de Misericórdia, e de Hospitais Civis e Militares, especialmente daqueles que são destinados para os soldados e marinheiros inválidos; e bem assim de Rodas de Expostos, Montes Pios, civilização dos Índios e de quaisquer outros estabelecimentos de caridade”. A questão não é ignorada na Carta Constitucional (art. 145.º, § 29.º, relativo aos socorros públicos, por via da receção literal de um artigo da Constituição brasileira de 1824), na Constituição de 1838 (art. 28.º, n.º 3, também sobre a garantia de socorros públicos) e na Constituição republicana de 1911 (art. 3.º, n.º 29, consagrando o direito à assistência pública) e depois na Constituição de 1933 (o n.º 3 do art. 6.º impunha ao Estado “[z]elar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aquelas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente”, dispondo-se no art. 41.º que “O Estado promove e favorece as instituições de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade”, além da menção, no art. 13.º, n.º 3, do “salário familiar”). Contudo, é na Constituição da República Portuguesa (1976) que encontramos as linhas de força do atual sistema de segurança social. Na nossa lei fundamental, relevam especificamente diferentes preceitos, para além do art. 63.º, que merece tratamento autónomo: arts. 56.º, n.º 2, alínea b) (direito das associações sindicais à participação na gestão das instituições de segurança social), 59.º, n.º 1, alíneas e) e f), relativas, respetivamente, à assistência material em caso de desemprego involuntário e à assistência e justa reparação no que toca a vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais, 68.º (paternidade e maternidade), 69.º (infância), 70.º, n.º 1, alínea b) (juventude), 71.º, n.º 2 (cidadãos portadores de deficiência) e 72.º (terceira idade); ainda os arts. 165.º, n.º 1, alínea f) CRP (Lei de Bases da Segurança Social, como matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e o art. 105º, n.º 1, alínea b) CRP) (orçamento da Segurança Social). Na versão vigente, estabelece-se no art. 63.º (Segurança Social e solidariedade):
“1. Todos têm direito à segurança social.
2. Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.
3. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
4. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de atividade em que tiver sido prestado.
5. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º”.
Constituição da República Portuguesa que se situa num quadro de internormatividade. Com efeito, o legislador nacional não está apenas vinculado pela Constituição, mas também em termos de Direito Internacional (com especial relevo, neste caso, para as convenções internacionais) e pelo Direito supranacional (Direito da União Europeia). Há interações do ponto de vista interpretativo – Ulrich Becker, a propósito dos direitos humanos e a segurança social na Europa, fala de “integração através da interpretação” (BECKER, 2023a, 95), densificando com os exemplos dos efeitos da CDFUE na interpretação do TEDH (v.g., no caso Gáll v Hungary, n.º 49570/11, de 25 de junho de 2013, citando o art. 34.º da Carta, n.os 19 e 69) e da convocação da CEDH pelo Tribunal de Justiça (TJUE).
É impossível proceder aqui a uma análise da multiplicidade de prestações sociais que concretizam o nosso sistema de segurança social (CONCEIÇÃO, 2023), em resposta a um conjunto de riscos sociais (juridicamente, eventualidades), e a um tratamento da malha legislativa de segurança social nacional. Ao contrário de outras ordens jurídicas, entre nós há, por agora, apenas uma codificação parcial em sede contributiva – falamos do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CARVALHO, 2022). Assume um papel fundamental a Lei de Bases da Segurança Social, que, no art. 23.º, dispõe que integram o sistema de segurança social: o sistema de proteção social da cidadania – compreendendo o subsistema de ação social (arts. 29.º-35.º LBSS), o subsistema de solidariedade (arts. 36.º-43.º LBSS) e o subsistema de proteção familiar (arts. 44.º-49.º LBSS) –, o sistema previdencial (arts. 50.º-66.º LBSS) e o sistema complementar (arts. 81.º-86.º LBSS).
Conclusão
A proteção social é essencial para a garantia de um conjunto de bens fundamentais e possibilitar o desenvolvimento das capacidades (SEN, 2012). Numa aceção mais lata, não se limita ao campo da segurança social, mas alarga-se, por exemplo, ao domínio da prestação de cuidados de saúde. Aqui, tendo presente a distinção da Constituição da República Portuguesa entre o direito à segurança social e o direito à proteção de saúde (este, objeto de entrada autónoma na Dignipédia), centrámo-nos no primeiro, sem que se olvide as interações. Ao fim e ao cabo, trata-se de perceber que não apenas a sobrevivência, mas o “florescimento” da pessoa humana, dependem também do acesso e da efetiva proteção social, estruturada por princípios como a igualdade e a solidariedade.
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Autor: João Loureiro