Refugiados [Dicionário Global]
Refugiados [Dicionário Global]
Foi na Idade Moderna, nos séculos XVI e XVII, que a categoria dos refugiados começou a ser reconhecida. Aplicava-se às vítimas de perseguição religiosa, que existiu de forma intensa na Europa durante esse período. Os primeiros alvos foram os judeus, que, ainda no século XV, em 1492, foram expulsos de Espanha por ordem dos Reis Católicos. Em 1496, foi decretada, por D. Manuel I de Portugal, a expulsão dos judeus que não se convertessem à fé cristã. Com a Reforma, novos movimentos de refugiados irão verificar-se com grande intensidade na Europa.
Às vítimas de perseguição religiosa juntaram-se depois as vítimas de perseguição política. Em particular durante o século XIX, as sucessivas revoluções e contrarrevoluções eram acompanhadas por exílios e fugas em grande escala, normalmente de carácter temporário, que atingirão máxima expressão na primeira metade do século XX. A proteção dos refugiados é, num primeiro momento, encarada como uma prerrogativa da Coroa, que a pode ou não conceder, não havendo nada que a imponha. Progressivamente, começam a surgir sinais de alguma mudança no sentido de reconhecer um dever, primeiro moral, depois jurídico, de proteger os refugiados.
No plano internacional, o problema dos refugiados recebeu atenção no século XX, entre as duas grandes guerras. Em 1921, foi criado o Alto Comissariado para os Refugiados, cargo que foi atribuído a Fridtjof Nansen, responsável pela criação dos passaportes Nansen, documentos de identidade atribuídos a alguns refugiados (primeiro, russos, depois também arménios, sírios e turcos), o que constituiu uma primeira etapa no caminho de conceder um estatuto jurídico de proteção aos refugiados. No âmbito da Sociedade das Nações, foram feitos esforços nesse sentido, que conduziram à adoção e aplicação de alguns instrumentos internacionais de proteção nos anos 30 do século XX. Todos estes instrumentos tinham um escopo muito limitado, garantindo apenas proteção pontual de grupos determinados e não encarando o problema mais vasto e complexo do estatuto jurídico dos refugiados. Em todo o caso, neles começa a esboçar-se uma definição de “refugiado” em torno de dois elementos que são entendidos como condições necessárias e suficientes para o reconhecimento da qualidade de refugiado: a ausência do território do Estado de origem e a falta de proteção por parte do governo do mesmo Estado.
No pós-guerra, deram-se passos importantes no sentido de garantir proteção jurídica efetiva aos refugiados. Logo em 1946, foi constituída a Organização Internacional para os Refugiados, sob a égide da então recentemente criada Organização das Nações Unidas, para prestar assistência às pessoas que, em consequência da guerra, não podiam pedir proteção ao Estado da sua nacionalidade ou da sua anterior residência. Em 1949, a Assembleia Geral das Nações Unidas criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Mas o grande passo haveria de ser dado em 1951, com a Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados. Neste instrumento, avançou-se de modo significativo no que diz respeito à definição de “refugiado” e ao reconhecimento de alguns direitos básicos a esta categoria de pessoas.
Quem é refugiado? Nos termos do art. 1.º da Convenção, há pressupostos positivos e negativos para que alguém reúna as condições para ser reconhecido como refugiado. Em primeiro lugar, tem de ser alguém que receia, com razão, ser perseguido em virtude da raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, que se encontra fora do país de que tem a nacionalidade e que não pode ou não quer, em virtude daquele receio, pedir a proteção do Estado da sua nacionalidade (ou, nos casos de múltipla nacionalidade, tem motivos para temer perseguição em todos os Estados de que é nacional). Ser perseguido não tem aqui o significado corrente de ser vítima de um acosso individual de que a pessoa em causa é um alvo concreto e individualizado. O termo “perseguição” refere-se a uma grave violação dos direitos fundamentais da pessoa, cujas vida, liberdade ou integridade correm risco no Estado de origem. Os motivos para essa situação de perigo têm de associar-se a um dos cinco motivos constantes da Convenção: raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
A raça e a nacionalidade são, atualmente, raramente invocadas como motivo de perseguição e, apesar de na Convenção surgirem diferenciadas, referem-se à mesma realidade da discriminação de “grupos étnicos” definidos em função de determinadas heranças biológicas e culturais. A perseguição religiosa constitui um motivo persistente e muito relevante para se requerer o estatuto de refugiado. Nas suas origens, na Europa, o exercício da liberdade religiosa foi motivo para grandes movimentos de refugiados, mas, atualmente, continua a ser um motivo correntemente invocado para pedir estatuto de refugiado. As opiniões políticas são também um motivo importante e persistente de perseguição grave em regimes autoritários e opressivos. A filiação em certo grupo social é o motivo de perseguição referido na Convenção de Genebra em termos menos claros, na medida em que não se vislumbra exatamente qual o sentido da perseguição cujas vítimas, por esta via, se pretende proteger. Tem constituído uma espécie de cláusula aberta que permite uma interpretação dinâmica da Convenção de Genebra e a sua aplicação a situações de perseguição não previstas em 1951. Assim tem acontecido, por exemplo, com a perseguição fundada em motivos de género ou de orientação sexual. A perseguição tem de criar no indivíduo uma situação subjetiva de receio, mas que tem um fundamento objetivo, ou seja, é justificada pela análise da situação do Estado de origem. A perseguição deve ainda ser atual, razão pela qual o estatuto de refugiado é sempre temporário. Assenta num juízo de prognose relativamente às previsíveis consequências do regresso do indivíduo ao território do Estado de origem. Se, diante de uma alteração de circunstâncias, a situação deste se tornar segura, deixando de existir receio de perseguição ou, pelo menos, deixando de existir razões objetivas para esse receio existir, o estatuto de refugiado deve cessar.
Para se ser reconhecido como refugiado, não basta que estes pressupostos positivos se encontrem preenchidos. É ainda necessário que não se verifiquem na situação concreta determinados “pressupostos negativos”, usualmente designados como “cláusulas de exclusão”, que são a prática de atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas, a comissão de crimes graves de direito comum, especialmente de crimes contra a paz, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. A quem não se apliquem estas cláusulas e cumpra satisfatoriamente os pressupostos positivos deve ser reconhecido o estatuto de refugiado.
A Convenção de Genebra especifica os direitos que devem ser reconhecidos no âmbito daquele estatuto nos arts. 2.º e seguintes: direito à não discriminação, liberdade religiosa, direito à propriedade (aquisição e locação), à propriedade intelectual e industrial, direito de associação, de acesso aos tribunais, direito ao trabalho, direito à habitação, à educação, entre outros. Para além deste conjunto de direitos, a Convenção prevê direitos aos refugiados que comprimem as prerrogativas de soberania usualmente reconhecidas aos Estados relativamente aos estrangeiros que se encontram no seu território. Assim, nos termos do art. 31.º, devem os Estados abster-se de sancionar refugiados que “cheguem ou se encontrem no seu território sem autorização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes exponham razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares”. Também não podem expulsar refugiados, salvo por motivos de segurança nacional ou de ordem pública e no âmbito de um procedimento previsto na lei para o efeito, devendo ser concedido ao refugiado um prazo razoável para procurar admissão legal noutro país, nos termos previstos no art. 32.º. Finalmente, o art. 33.º consagra aquela que é reconhecida como a principal garantia que os instrumentos de Direito Internacional concedem aos refugiados: o direito ao non-refoulement, ou seja, o direito de não ser expulso especificamente para um território onde “a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.
A Convenção de Genebra, apesar de ser um dos primeiros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos criados no pós-guerra, continua a ser o referente fundamental da proteção dos refugiados. Bem revelador dessa importância é o art. 18.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que inclui o direito de asilo entre os protegidos pela Carta nos seguintes termos: “É garantido o direito de asilo, no quadro da Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951 e do Protocolo de 31 de janeiro de 1967, relativos ao estatuto dos refugiados, e nos termos do Tratado que institui a Comunidade Europeia”.
Apesar do consenso criado em torno do conceito “convencional” de refugiado, este foi sempre objeto de alguns pronunciamentos críticos, sobretudo por nele não se incluírem pessoas vítimas de conflitos armados ou de outras situações de grave violência nos Estados de origem, pessoas vítimas de catástrofes naturais ou de fenómenos de degradação progressiva das condições ambientais, ou ainda pessoas cuja sobrevivência está ameaçada por não se garantirem no território do país de origem condições materiais vitais mínimas. A exclusão destas pessoas da categoria de “refugiado” continua a ser hoje objeto de questionamentos vários e tentativas de superação de alguns destes limites. Assim, diversos Estados e organizações internacionais de âmbito regional têm vindo a alargar o âmbito da proteção internacional para integrar pessoas que, não sendo refugiadas, face à definição da Convenção de Genebra, devem também ser protegidas. No que diz respeito à União Europeia, foi criada em 2004 a figura da “proteção subsidiária” para garantir acolhimento a pessoas que, ainda que não possam ser consideradas refugiadas, têm motivos para temer o regresso ao país de origem pelo risco de aí sofrerem ofensas graves aos seus direitos fundamentais. Tais ofensas podem consistir na aplicação da pena capital, no risco de tortura ou de tratamento desumano ou degradante, ou ainda na ameaça grave e individual contra a vida ou a integridade física de um civil, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno.
Os “refugiados ambientais” e os “refugiados económicos” não são ainda integrados na categoria de “refugiado”, tal como esta se encontra prevista nos instrumentos internacionais, de âmbito universal ou regional, atualmente em vigor.
Bibliografia
CHETAIL, V. (2019). International Migration Law. Oxford: Oxford University Press.
GOODWIN-GILL, G. S. & McADAM, J. (2007). The Refugee in International Law. Oxford: Oxford University Press.
GRAHL-MADSEN, A. (1966). The Status of Refugees in International Law (vol. I). Leiden: A.W. Sithjoff.
GRAHL-MADSEN, A. (1972). The Status of Refugees in International Law (vol. II). Leiden: A.W. Sithjoff.
HATHAWAY, J. & FOSTER, M. (2014). The Law of Refugee Status (2.ª ed.). Cambridge: Cambridge University Press.
OLIVEIRA, A. S. P. (2009). O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de Um Direito Fundamental. Coimbra: Coimbra Editora.
OLIVEIRA, A. S. P. (2014). “Refugiados”. In N. C. Mendes & F. P. Coutinho (orgs.). Enciclopédia das Relações Internacionais (453-455). Lisboa: Dom Quixote.
OLIVEIRA, A. S. P. (2017). “Proteção dos refugiados e justiça global”. In A. G. Martins et al. (orgs.). IX Encontros de Professores de Direito Público (7-23). Lisboa: Universidade Católica Editora.
OLIVEIRA, A. S. P. & RUSSO, A. (coords.) (2018). Lei do Asilo Anotada e Comentada. Lisboa: Petrony.
Autora: Sofia Pinto Oliveira