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  • Romantismo [Dicionário Global]

    Romantismo [Dicionário Global]

    Quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou e proclamou, em 1948, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, baseada na Carta aprovada em São Francisco em 1945, sabia que tudo era resultante de um já longo e árduo trabalho de múltiplas gerações de diversas geografias que, sendo ao momento passado a letra de forma, não era um caso encerrado, outrossim a promessa da continuidade de uma luta ainda hoje inconclusa. Se o antropocentrismo renascentista já se preocupou com a dimensão humana, coube ao Romantismo ser o pioneiro da reflexão sobre o homem com a devida acuidade ao seu mundo interior e, muito particularmente, à sua relação com o outro, ainda que muito circunscrito a um europeísmo arrogante. O Romantismo é, antes de mais, “um facto social, paidético, formativo e filosófico do que um facto exclusivamente artístico” (FERREIRA, 1965, 18), que se revolta contra a autoridade e a ortodoxia através da assunção do individualismo, gerador da emancipação do eu, arrebatadamente imaginativo e sensível. Surge assim uma inadaptação à vida real e a consequente evasão espácio-temporal, geridos pelo êxtase e pela exaltação religiosa, política, social e amorosa. Trata-se de uma emancipação de recalcamentos normativos que agiliza a imaginação, a sensibilidade e o desejo de liberdade. Surge na Europa, em finais do século XVIII, e vai-se espalhando, atingindo o seu apogeu na primeira metade do século XIX, ainda que com dissemelhanças temporais nos vários países europeus, de acordo com as idiossincrasias geográficas e sociais. Tal explica que o Romantismo surgisse numa Inglaterra em luta com o liberalismo napoleónico da França revolucionária, tivesse um cunho historicista e invocasse a aristocracia medieva; numa Alemanha que, após a Guerra dos Trinta Anos, lutasse pela independência procurando nas lendas e tradições a sua verdadeira identidade; e numa França em que à contrarrevolução de Chateaubriand (1768-1847) e Madame de Staël (1766-1817) se seguisse o humanitarismo socialista de Eugène Sue (1804-1857), Victor Hugo (1802-1885) ou Pierre Beranger (1780-1857). Impondo-se numa época convulsiva e de movimentos revolucionários, em que se destacam as revoluções Industrial e a Francesa, absorveu e sofreu as transformações políticas, sociais, económicas e religiosas. Ainda que a Alemanha tenha sido o país que mais contribui para o seu desenvolvimento, o Romantismo assoma em Inglaterra através de pensadores como Robert South (1774-1843), William Wordsworth (1770-1850), Samuel Coleridge (1772-1834) ou Joseph Thomson (1700-1747), que recuperaram temas das artes medievais. O ressurgimento do neogótico e a atração pela natureza selvática, solitária, ligada à simplicidade do quotidiano bem como a lendas ancestrais, marcaram a poética de Edward Young (1681-1785) e de Thomas Gray (1716-1771). Saliente-se ainda S. Richardson (1689-1761), dito criador do romance moderno que terá influenciado Rousseau (1712-1778), Walter Scott (1771-1832), pioneiro do romance histórico impregnado do feudalismo medieval, Ana Radcliffe (1764-1823), criadora do romance negro que poderá ter influenciado Camilo Castelo Branco, Lord Byron (1788-1824), célebre representante do mal du siècle, Shelley (1792-1822) ou John Keats (1795-1821). Na pintura, Van Dyck (1599-1641), William Turner (1755-1851) e John Constable (1776-1837) foram os principais artistas das paisagens tempestuosas. Não se pode, no entanto, ignorar o movimento Pré-Rafaelita, onde nomes como os de William Hunt (1827-1910), Dante Rossetti (1828-1882) e Burne-Jones (1833-1898) criticaram, em uníssono, o academismo vigente, optando por temas e motivos medievais e concedendo à natureza um primeiríssimo plano. Na Alemanha, dadas as circunstâncias atrás referidas, o romantismo teve, antes demais, uma base filosófica que punha em causa o materialismo racionalista que teria depurada expressão no positivismo de Auguste Comte (1798-1857). Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), Johann von Herder (1744-1893), Friedrich von Schiller (17591805), Friedrich von Schlegel  (17721829), Novalis (1772-1801), destacaram-se pela crença no método científico, valorizaram a natureza e, ainda que reconhecendo o mérito das atividades coletivas, pautaram-se pelo  individualismo em demanda do idealismo. O grito de revolta face ao abulismo literário e artístico foi dado por Friedrich Klinger (1752-1831), na peça Sturn und Drang, assim categorizando todo o movimento que, para além dos nomes já citados, teve em Goethe (1749-1832) e Richard Wagner (1813-1883) os expoentes máximos da guerra às convenções, e do acolhimento aos impulsos do coração.  Deste último, basta evocar o seu conceito de Gesamtkunstwerk, sintetizador de todas as artes, ou exitosas óperas, como Tannhäuser, Der Ring des Nibelungen ou Tristan und Isolde. Já Johann Wolfgang von Goethe, polímata e estadista, foi o escritor de maior projeção, sendo o epistolar Werther considerado a Bíblia do Romantismo europeu. A pintura de cunho popular e paisagístico, de género, com recurso a lendas, foi assinada por nomes como Casper David Friedrich (1774-1840), Heinrich Bürkel (1802-1869) ou Ludwig Richter (1803-1884), entre outros que viriam a relacionar-se com a Escola de Pintura de Düsseldorf, com uma influência significativa na Escola do Rio Hudson nos Estados Unidos. O espírito da magnificência nacional, rebuscando na Idade Média lendas cavalheirescas, foi o antídoto do amorfismo causado por todas as convulsões políticas. O Romantismo em França foi mais tardio, pelas circunstâncias político-sociais subjacentes, como a Revolução e Restauração Francesas, e nasceu, antes de mais, de lutas internas e de ideias revolucionárias sobre classes sociais e ideologias políticas instituídas como base do governo, cujo lema Liberté, Égalité, Fraternité abalou toda a Europa. Assim se começaram a valorizar os Direitos Humanos e a respeitar a liberdade do ser comum, renegando posturas aristocráticas e excessivamente racionalistas. A derrota de Napoleão e a corte de Luís XVIII franquearam as portas às influências dos romantismos alemão e inglês, sobretudo com escritores como os já referidos Chateaubriand,  Madame de Staël (1766-1817), autora de um dos primeiros manifestos românticos, e Victor Hugo (1802-1885), sua figura cimeira, que, no prefácio de Cromwell (1827), desenvolveu a verdadeira doutrina romântica; a estes se poderão juntar o pioneiríssimo Rousseau (1712-1778), o místico Lamartine (1790-1869) ou o crítico, romancista e também autor de um manifesto, Henri-Marie Beyle, mais conhecido por Stendhal (1783-1842). Muitos outros se poderiam enumerar, sendo certo que, visando um público burguês, optavam pelo maravilhoso cristão e, libertando a inspiração, mesclavam o sublime com o grotesco, exibiam o pitoresco e a cor local e, acima de tudo, eram subjetivos e individualistas na interpretação de estados interiores e exteriores. Nas artes plásticas, o grito romântico é dado pela insurreição de Théodore Géricault (1791-1824) na obra Le Radeau de la Méduse (1818-1819), a que se seguiram Eugène Delacroix (1798-1863), Jean-Auguste Dominique Ingres (1781-1867) ou David d’Angers (1788-1856), tão exaltado por Alfred de Vigny (1797-1863), e Victor Hugo pela perspetiva unificadora de todas as artes. Portugal estava atento e recetivo aos movimentos europeus, às ideias da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, aos ideais de liberdade política do indivíduo e às alterações sociais e económicas, assumindo o Romantismo uma vigorosa carga ideológica de cariz nacionalista,  sem deixar de se abrir às inovações técnicas. O triunfo das novas ideias liberais provocou profundas mudanças, dando lugar a assertivas reformas administrativas geradoras do progresso económico, político e social da burguesia. Tal se deve a políticos como Mouzinho da Silveira (1780-1849) e Joaquim António de Aguiar (1792-1874), bem como à abolição da censura absolutista. O jornalismo tem agora um notável incremento, enquanto divulgador das novas ideias políticas e artísticas, em periódicos como O Panorama (1837-1868), dirigido por Alexandre Herculano (1810-1877), Revista Universal Lisbonense (1841-1853), liderada pelo polémico Feliciano de Castilho (1800-1875), ou o antecessor, O Investigador Portuguez em Inglaterra (1811-1819), aí publicado, mas patrocinado pela Coroa portuguesa, à altura residente no Rio de Janeiro. Os maiores vultos das letras portuguesas aderiram e inspiraram-se nos romantismos europeus acima mencionados pelo seu pioneirismo e pela proximidade geográfica, apesar de o movimento se ter expandido por todos os continentes de formas singulares e em tempos diversos. Almeida Garrett (1799-1854) absorve a influência francesa de Rousseau, de Chateaubriand, este traduzido por Filinto Elísio (1734-1819) e Camilo Castelo Branco (1825-1890), de Lamartine, vertido para português pela Marquesa de Alorna (1750-1839), grande propaladora dos românticos estrangeiros, e do Messias do humanismo, Victor Hugo. Defensor ativo das causas liberais, espalha o gosto pelo confessional, pelo fatalismo passional, pelo medievalismo, pelo exotismo, pelo espiritualismo e mesmo por uma melancólica religiosidade. A estadia do autor de Folhas Caídas (1853) em Inglaterra dará novo impulso às letras de que é exemplo a obra Viagens na Minha Terra (1846). Por outro lado, Garrett deve algo a Schlegel na ideia da criação de um teatro nacional e no gosto pela poesia popular. Na “Memória ao Conservatório Real” de Frei Luís de Sousa (1843), o autor, para além de se mostrar crédulo no ressurgimento do país, controlado pela ditadura de Costa Cabral, através do sebastianismo da personagem Telmo, erige um hino aos direitos humanos num autêntico manifesto romântico: “O estudo do homem é o estudo deste século, a sua anatomia e fisiologia moral as ciências mais buscadas pelas nossas necessidades atuais. […]. Este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo… ou não se faz” (GARRETT, 1963, II, 1086-1087). Em Alexandre Herculano (1810-1877), destaque-se a grande influência do historiador francês Jacques Thierry (1795-1856), bem como da literatura inglesa, na criação do romance histórico. Autor multifacetado, historiador consistente, a ele se deve a publicação de documentos medievos, facilitadores e incentivadores de posteriores estudos dessa época, bem como a divulgação de autores alemães, através de traduções da já citada Marquesa de Alorna. A poesia alemã foi traduzida e seguida por escritores como Castilho ou Soares de Passos (1826-1860).  Júlio Dinis (1839-1871), criador do romance campesino de influência inglesa, e Camilo Castelo Branco, autor de uma vasta obra onde Neoclassicismo, Romantismo e Realismo interagem em perfeita harmonia, são outros autores incontornáveis de uma das épocas áureas das letras portuguesas que nada ficam a dever a nomes como Giacomo Leopardi (1798-1837), James Cooper (1789-1851) ou Allan Poe (1809-1849). Todas estas características se vestigiam também numa arquitetura nacionalista, de características predominantemente neomanuelinas, de que são exemplos, entre outros, o Palácio da Pena e o Palácio do Bussaco, que conseguem estabelecer um intenso diálogo com uma natureza sombria, independente e selvagem. Exportado para o Brasil, o estilo neomanuelino também por lá proliferou, destacando-se o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Nas artes plásticas, artistas como Domingos Sequeira (1768-1837), Tomás da Anunciação (1818-1879) ou Francisco Metrass (1825-1861) deram conta da alteração de mentalidades através de pinturas de costumes populares, paisagísticas, retratísticos e de momentos históricos. Mas este comprometimento com os direitos humanos, através do pensamento das letras e das artes, é também visível na música europeia onde compositores como Schubert (1797-1828), Berlioz (1803-1943), Mendelssohn (1809-1847), Chopin (1810-1849), Schumann (1810-1856), Liszt (1811-1886), Tcahikovsky (1840-1893), Verdi (1813-1901), Augusto Machado (1845-1924), Alfredo Keil (1850-1907), Mahler (1860-1911) ou o já mencionado Wagner expressavam as emoções de forma intensa e vigorosa, ostentando dores e pensamentos profundos comuns a toda a humanidade e recreando temas e motivos das outras artes em harmonias dissonantes. Destarte o Romantismo erige-se como pioneiro numa luta que, reagindo ao racionalismo e ao materialismo iluministas e à revolução industrial, enfatiza as emoções e o individualismo e exalta a natureza desorganizada e rebelde que os acolhe num egotismo incessante. A liberdade do ser humano, as suas espontaneidade e subjetividade, o ilimitado imaginário, o sentimentalismo exacerbado, contrariam os preceitos harmónicos do Classicismo controlador de movimentos e ações. Tratando-se de um movimento mais ligado às artes, teve enorme repercussão nas ciências sociais e naturais, na educação e na política, posto que o seu tom emotivo tenha sido acolhido e usado pelas mais diversas sensibilidades ideológicas. Aparentemente desvinculado do progresso, as suas características são muitas vezes contraditórias e antagónicas, inequivocamente ligadas à circunstância do ser. Contrastes entre o sublime e o grotesco, oscilação de estados da natureza de acordo com o mundo íntimo, o medievalismo de mão dada com o exótico indianismo, o boémio byronismo apelando à angústia, enformam um ser nostálgico, mas convicto da sua valia. O desenvolvimento científico trouxe aumento da qualidade e esperança de vida ao homem, que, repentinamente, tinha ao seu dispor o automóvel e o cinema, a eletricidade e os caminhos de ferro. O individualismo e a expressão dos sentimentos com base no misticismo obviaram a liberdade individual edificadora de uma nova maneira de estar no mundo, com naturalidade, na senda do mito do beau sauvage de Rousseau. Por isso a natureza selvagem e desprendida giza o espaço propício à liberdade de sentimentos e sentidos. Consciente do que deve e a quem se deve, o ser humano olha agora o passado para construir o futuro, criando também o conceito de preservação de património, seja ele material ou imaterial. Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada em 10 de dezembro de 1946, anunciando os direitos e a igualdade do homem, já no legendário café Le Procope 1686, situado no Quartier Latin, em Paris, Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Rousseau ou Diderot (1713-1784) tinham discutido o movimento nascido na Europa no século XVII – Les Lumières –, que marcaria decisivamente a geração romântica. Nesse espaço emblemático, Benjamin Franklin (1706-1790) poderá ter escrito algumas notas para a futura Constituição dos Estados Unidos, e Alphonse de Lamartine (1790-186), Victor Hugo e Alfred Musset (1810-1857) seguramente se concentraram e empenharam na luta pela suprema dignidade da pessoa humana e por todos os seus inalienáveis direitos, tendo em mente a Magna Carta Inglesa (1215).

    Bibliografia

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    Autora: Isabel Ponce de Leão

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