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  • Romero, Óscar [Dicionário Global]

    Romero, Óscar [Dicionário Global]

    O dia 24 de março, data em que foi assassinado o arcebispo católico de El Salvador Óscar Romero (1917-1980), foi escolhido pelas Nações Unidas, a 21 de dezembro de 2010, como o Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e Dignidade das Vítimas. A 14 de outubro de 2018, D. Romero foi canonizado pelo Papa Francisco, numa cerimónia que também contou com a presença da Igreja luterana. A Igreja Anglicana colocou uma estátua de Romero na fachada da Catedral de Westminster, ao lado outras figuras cristãs que marcaram o século XX pelo seu empenho na defesa dos direitos humanos: Martin Luther King e Dietrich Bonhoeffer.

    O reconhecimento do trabalho de D. Óscar Romero pelos direitos humanos começou ainda durante os seus últimos anos de vida: em 1979 o seu nome foi indicado como candidato ao Prémio Nobel da Paz, que viria a ser recebido pela Madre Teresa de Calcutá. A 2 de fevereiro de 1980, a Universidade de Lovaina atribuiu-lhe o título de doutor honoris causa, em “reconhecimento do seu trabalho em defesa dos direitos humanos”. A 9 de março de 1980 recebeu o Prémio Paz da Ação Ecuménica Sueca, pela sua ação baseada na “mensagem do Evangelho, pela reconciliação entre os homens, pela justiça e a humanidade, bem como pela sua significativa ajuda em favor dos oprimidos”.

    Óscar Arnulfo Romero e Galdámez nasceu a 15 de agosto de 1917, em Ciudad Barrios, uma pequena cidade situada a oriente da capital de El Salvador e a 900 metros de altitude, na província de San Miguel, perto da fronteira com as Honduras. Entrou aos 13 anos para o seminário de San Miguel, dirigido por Claretianos. Enviado pelo bispo para Roma, onde esteve entre 1937 e 1943, estudou na Universidade Gregoriana. Foi ordenado em 1942. Quando regressou a San Salvador, Romero começou por trabalhar como pároco em Anamorós, mas passados dois meses, foi chamado pelo bispo de San Miguel para trabalhar como seu secretário. Desempenhou múltiplas funções na diocese, entre as quais a de reitor do seminário menor e animador do seminário diocesano. Em 1967 foi nomeado secretário da Conferência Episcopal de El Salvador (CEDES), funções que desempenhou até junho de 1973, e mudou-se para a capital do seu país. Também em 1967 assumiu funções como secretário executivo do Conselho Episcopal da América Central (CEDAC), cargo que exerceu até finais de 1972. As novas funções exigem-lhe ir regularmente à Guatemala participar em reuniões.

    Óscar Romero, com uma posição inicial bastante distante de qualquer vanguardismo teológico ou social, aplicaria as suas qualidades de estudioso a analisar os documentos renovadores do Concílio Vaticano II e o Documento de Medellín, produzido pelos bispos da América Latina, em 1968. Esta reflexão seria um dos fatores que o levariam a assumir de uma forma cada vez mais consciente a “opção preferencial pelos pobres” como orientação ética de uma doutrina social da Igreja renovada.

    Nos jornais em que escrevia – Orientación, La Prensa Gráfica, El Diario de Oriente – mostrava a sua fidelidade quer ao espírito de renovação conciliar, quer ao magistério de Paulo VI, que via como um “papa do equilíbrio” na crise pós-conciliar. Romero procurava conciliar “tradição e progresso” e, nos seus textos, citava os teólogos empenhados no Concílio Vaticano II: Karl Rhaner, Marcos MacGrath, Eduardo Pironio, Leon Suenens.

    Em junho de 1970 foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador, a capital do país. A 15 de outubro de 1974, foi nomeado bispo de Santiago de María, uma diocese rural com 20 paróquias e outros tantos padres, e meio milhão de fiéis. No exercício das funções episcopais mostrou uma notável sensibilidade pastoral e empenho na “cura das almas”. Dinamizou cursilhos de cristandade e associações com os Alcoólicos Anónimos, apoiou a Caritas, criou lares para os pobres e impulsionou comunidades de base.

    Foi elevado a arcebispo de San Salvador, a capital de El Salvador, a 22 de fevereiro de 1977. Nesse ano, era um país com cerca de 4 milhões de habitantes em 21.393 quilómetros quadrados. Um pequeno país marcado por grandes clivagens sociais e políticas e que se tornou um centro de disputa ideológica num período de recrudescimento da Guerra Fria, o que contribuiu para o espoletar da guerra civil em 1980.

    Em 1978, a arquidiocese de El Salvador contava com 1.312.030 católicos, dos quais, formalmente, 229 era sacerdotes. Mas este número era ainda mais baixo – 185 –, pois muitos eclesiásticos eram expulsos, naquele contexto de grande conflituosidade social e política. As quatro dioceses do país (Santa Ana, San Miguel, San Vicente e Santiago de María) prestavam assistência a mais 2.476.390 católicos.

    Um momento de viragem na sua ação pastoral, inicialmente vista como tímida e conservadora, foi o assassinato, a 12 de março de 1977, do jesuíta Rutílio Grande, juntamente com dois camponeses, um idoso e um rapaz. Um biógrafo de Romero observou que na homilia de exéquias pelo padre assassinado, o arcebispo de San Salvador abraçou a mensagem de Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, uma exortação apostólica de apoio da Igreja Católica a todos os que lutavam pela dignidade humana nos chamados países em vias de desenvolvimento (CLARKE, 2014, 101).

    Após o assassinato de Rutilio Grande, uma assembleia do clero de San Salvador, reunida a 15 de março, pediu ao arcebispo que no domingo seguinte fosse celebrada uma “missa única”: os fiéis seriam dispensados de assistir à missa na respetiva paróquia, para se reunirem numa única celebração, na catedral, como sinal de unidade do clero, no momento de assassinato de um dos seus membros. O núncio era contrário à iniciativa. A “missa única” foi celebrada a 20 de março, com a participação de 100 mil fiéis. No entanto, as relações entre o arcebispo e o núncio tornam-se crispadas. É neste contexto de críticas pelas suas atitudes, provenientes da própria Igreja Católica, que Romero foi recebido, a 20 de março de 1977, pelo Papa Paulo VI, em audiência privada, que lhe disse: “Coragem! O líder sois vós!” (CLARKE, 2014, 101).

    É a partir da morte de Grande que se multiplicam os gestos de Romero incómodos para o poder político, alguns poderes eclesiásticos e famílias que tinham os seus filhos em colégios católicos. A sua homilia dominical do arcebispo na rádio Ysax passa a ter ouvintes em todos os sectores sociais: dirigentes políticos profissionais, empresários, militares, camponeses, revolucionários. Era ouvido, regularmente, por 73% da população rural e 47% da população urbana. Além disso, a emissora oficial da arquidiocese, por duas vezes destruída por bombas, tornou-se a única fonte fidedigna sobre um número crescente de desaparecidos devido à violência política. Segundo algumas estimativas, entre 1979 e 1981, os esquadrões da morte eliminaram mais de 30 mil pessoas (CLARKE, 2014, 131). As duas maiores causas de morte em El Salvador eram a diarreia e o assassínio, por esta ordem (CLARKE, 2014, 134).

    Na quarta e última “carta pastoral” de Óscar Romero, de 6 de agosto de 1979, identificava “três idolatrias” como fatores de crise do país, sendo duas atribuídas à direita e uma à esquerda: a “riqueza”, a “segurança nacional” e a “organização”. A idolatria da riqueza defendia a propriedade dos ricos e mostrava-se indiferente à miséria imerecida da maioria da população. A idolatria da “segurança nacional” representava a “institucionalização da insegurança dos indivíduos” e travava a democracia e a justiça social. A idolatria da “organização” era explicada por Romero como a perda do objetivo do bem comum como prioridade e fim da organização.

    Entre a última carta pastoral de Romero e o seu assassinato dá-se um golpe de Estado, a 15 de outubro de 1979, formam governo duas Juntas Revolucionárias e a “idolatria da segurança nacional”, crescente exponencialmente. Em ambos os governos se verifica a existência de uma clivagem entre aqueles que apoiam reformas estruturais e os que pretendem, a todo o custo, reprimir a insurreição revolucionária. O segundo governo, formado por acordo entre as forças armadas e a Democracia Cristã, é marcado por uma vaga de violência política: em janeiro de fevereiro de 1980 são assassinadas 600 pessoas por razões políticas. Em contraponto à repressão, os diversos grupos de guerrilha encetaram um processo de unificação.

    Óscar Romero falava com todos e exigia ao Governo que parasse a repressão, iniciasse as reformas, explicasse os desaparecimentos, punisse os culpados e indemnizasse as vítimas. Congratulou-se com o projeto de reforma agrária dos democratas-cristãos, mas considerou que a repressão lhe retirava credibilidade. Apoiou as tomadas de posição das organizações populares a favor do regresso à democracia, mas pedia-lhes a renúncia à violência.

    Óscar Romero foi assassinado na igreja do Hospital da Divina Providência, na capital de El Salvador, a 24 de março de 1980, atingido no coração por uma bala de calibre 22, quando celebrava uma missa iniciada às seis da tarde. Uma das suas últimas frases da homilia foi: “Que este sangue imolado, este sangue sacrificado pelos seres humanos, também nos alimente a nós, para que possamos entregar o nosso corpo e o nosso sangue ao sofrimento e à dor…como Cristo, não por vanglória, mas para trazer a justiça e a paz ao nosso povo” (CLARKE, 2014, 27).

    Após o fim da guerra civil, em 1992, foi constituída uma Comissão de Verdade para El Salvador, sob a égide das Nações Unidas. O relatório final da comissão foi publicado a 15 de março de 1993, com a identificação do mandante do assassinato – o ex-major Roberto D’Aubuisson – e a reconstituição da ação criminosa executada por quatro homens.

    Três anos após a morte de Romero, a 6 de março de 1983, João Paulo II visitou El Salvador em plena guerra civil e, contrariando um programa da visita que evitava a evocação do arcebispo assassinado, rezou junto do túmulo de Romero, na catedral. Durante o período de recolhimento exclamou, por diversas vezes: “Romero é nosso!” (ROCCA, 2015, 187). Pelo “nosso” entendia-se a Igreja Católica, antes de qualquer causa política. Passou uma década antes que o processo de reconhecimento de Óscar Romero fosse iniciado em San Salvador. João Paulo II viria a declarar Óscar Romero Servo de Deus quatro anos depois. Porém, só em julho de 2005 foram confirmadas a “ortodoxia e a lealdade” de Óscar Romero à Igreja Católica. Cerca de um mês antes de renunciar, Bento XVI apoiou a retoma do processo de beatificação de Romero.

    São três os objetivos da comemoração de um Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e Dignidade das Vítimas a 24 de março:

    – Honrar a memória das vítimas de brutais e sistemáticas violações de direitos humanos e promover o direito à verdade e à justiça;

    – Prestar tributo a todas e todos que dedicaram e perderam as suas vidas a defender e promover direitos humanos;

    – Reconhecer, em particular, o valor do trabalho de Óscar Romero, na defesa dos direitos humanos dos mais pobres, na promoção da dignidade humana e na oposição a todas as formas de violência.

    Estes três objetivos resumem, de forma lapidar, o legado de D. Óscar Romero no campo dos direitos humanos.

    Bibliografia

    CLARKE, K. (2014). Óscar Romero. O Amor deve Triunfar. Prior Velho: Paulinas.

    Romero Não Morreu!, Suplemento do Boletim Reflexão Cristã (1980, novembro-dezembro). Lisboa: Centro de Reflexão Cristã.

    ROCCA, R. M. della (2015). Oscar Romero. A Biografia. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração.

    ROMERO, Ó. A. (2015). A Igreja Não Pode Calar-se. Escritos Inéditos 1977-1980. Textos recolhidos, selecionados e comentados por Jesús Delgado. Prior Velho: Paulinas.

    Autor: João Miguel Almeida

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