• PT
  • EN
  • Rousseau, Jean-Jacques

    Rousseau, Jean-Jacques

    Com a epígrafe ovidiana, Barbarus hic ego sum quia non intelligor illis (“Sou aqui bárbaro porque não me entendem”), da sua primeira obra filosófica, o Discours sur les Sciences et les Arts (1750), Rousseau assumia uma via de divergência com os companheiros enciclopedistas. Seria, contudo, estribado nela que se tornaria um dos mais importantes esteios da modernidade. Fundador das ciências do homem (Lévi-Strauss) com o Discours sur les Origines et les Fondements de l’Inégalité parmi les Hommes (1755) e pai da educação moderna com o Émile (1762), é nome incontornável da política moderna e da noção moderna do direito com o Contrat Social (1762), a entrada “Economie politique” (1755) da Encyclopédie, o Project de Constitution pour la Corse (1765) e as Considérations sur le Gouvernement de Pologne (1771); da modernidade religiosa com as profissões de fé de Júlia em La Nouvelle Heloïse (1761) e do Vigário de Saboia no Émile; enfim, dos direitos humanos, que decorrem do seu sistema de pensamento e também das desventuras de uma vida sofrida.

    Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 1712. Órfão da mãe em circunstâncias de parto, viu o pai expatriar-se com 10 anos. Plutarco foi leitura predileta de menino, bebendo nele um “espírito livre e republicano” e um carácter “impaciente de jugo e de servidão” (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 9). Sob tutela de um tio, experimentou duros caminhos de vida. Aos 16 anos abandonou Genebra para vida incerta por Itália e França como pensionário, lacaio, preceptor e copista de música. Calvinista, aderiu ao catolicismo, a que renunciaria em 1754 para reaver a cidadania de Genebra. Apaixonado pela música, nunca teve grandes sucessos, mas d’Alembert convidou-o para escrever as entradas sobre o tema para a Encyclopédie (1749). Passou a juventude em estratagemas de sobrevivência, sentindo que “quanto mais conhecia o mundo menos se afazia ao seu tom” (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 156). No outono de 1741 foi para Paris, chocando-o a miséria, a exploração e as desigualdades. Amizades e alguns méritos facilitaram-lhe a nomeação, em 1743, para secretário do embaixador da França em Veneza, o conde de Montaigu. O caso deixou-lhe marcas profundas, ao conhecer os meandros e a podridão do mundo político em que as “estúpidas instituições civis” iludiam, por sistema, a justiça e imolavam o mais fraco ao mais forte. Abandonou a frustrante experiência com a ideia de redigir uma ambiciosa obra – as Institutions Politiques – que desse resposta à grande questão do melhor governo possível, pois vira que “tudo se prendia radicalmente com a política” (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 404). Não a acabou, mas dela resultaria o Contrat Social. Em 1745 ligou-se à humilde Thérèse Le Vasseur que lhe deu cinco filhos, todos entregues num hospício. 1749 será o ano mais decisivo da sua vida e obra. A caminho da prisão de Vincennes para visita a Diderot, deu com o anúncio de um concurso da academia de Dijon sobre o tema “Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs”. Concorreu e venceu com o Discours sur les Sciences et les Arts. “Todo o resto da minha vida e das minhas desgraças foram consequência inevitável deste instante de desvario”, confessa (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 351). Ao reconhecimento geral contrapôs-se a comunidade intelectual do seu círculo, que considerou a obra como afronta à razão e ao progresso, sentimento potenciado com a Lettre à d’Alembert sur les Spectacles (1758), que desmerecia a entrada da Encyclopédie “Genève”, do visado, e com o segundo Discours e o Contrat Social, que afrontavam o artigo “Droit naturel” de Diderot. Por razões inversas, tornava-se o inimigo número um do status enquanto destruidor de tronos e altares. Censuras, queima de livros e perseguições sucederam-se e agravaram-se com a Lettre à Christophe de Beaumont (1763) e as Lettres Écrites de la Montagne (1764). David Hume chegou a dar-lhe proteção em Londres (1766). Desiludido e perturbado, isolou-se à sombra de um complot persecutório universal que em parte ideou. A par das póstumas Les Confessions (1782 e 1789), os últimos escritos foram de natureza autobiográfica e justificativos da vida e da obra. Redige Rousseau Juge de Jean-Jacques – Dialogues, entre 1772 e 1776, e Les Rêveries du Promeneur Solitaire entre 1776 e a sua morte, em Ermenonville, em 1778. O panteão francês honraria a sua grandeza dando guarida aos restos mortais em 1794.

    Passados onze anos da sua morte, a Revolução Francesa respondia com estrondo a uma situação social degradada e a um absolutismo impiedoso, sustentada por uma intelectualidade que abrira caminhos a mudanças profundas no domínio dos saberes, da religião, da política, da moral, da educação e de uma axiologia que relevava valores como liberdade, igualdade, fraternidade, educação, felicidade, progresso, tolerância, paz… num quadro de imanência que tinha na natureza e na razão referenciais privilegiados. Dois momentos se destacaram nesta ebulição revolucionária de 1789: o do “decreto” de 4 de agosto contra o passado, que aboliu feudalismo e privilégios; e o da publicação, em 26 de agosto, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, “credo da nova idade” (Michelet), que perspetivou o futuro e marcou, definitivamente, a história universal dos direitos humanos, tão longa quanto a da luta do homem pela justiça e pela liberdade. Nela cabe a antiguidade, as declarações inglesas mais formais, como a Magna Carta (1215) ou o Bill of Rights (1689), as americanas, como a da Virgínia (1776). Mas foi a francesa que se tornou a maior referência dentro e fora da França até à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. GARAPON (1998, 9) chamará à primeira a “grande irmã” desta, elencando aproximações e dívidas em objetivos, ambiência e conteúdos e dando sustentação a Prélot (1993, 7, 713), que considerara a última como o último ato cirúrgico sobre a de 1789.

    Entre os filósofos que tiveram papel central na destruição da velha ordem e no esboço de alternativas, é consensual dar relevância especial a Rousseau nos acontecimentos revolucionários e na inspiração da ideia e substância dos direitos que a declaração de 1789 consagrou e que a de 1793 aprofundou. Os direitos consagrados no art. 1.º da de 1789 – “os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos…” –, replicados na segunda, só ganham sentido, diz Reis Marques (2015, 212), tendo em conta o figurino do Contrat Social. Esta foi, aliás, a convicção já expressa por discípulos e detratores coevos do genebrino, ao fazerem assentar nele as alavancas principais da esperança ou das desgraças do século. Barruel e Condorcet representam bem os dois campos. O primeiro considerando a data da publicação do Émile e do Contrat Social como o momento da viragem qualitativa do mundo; o segundo vendo na igualdade individual e das nações a esperança no futuro feliz da humanidade e reconhecendo expressamente que as questões da igualdade e dos direitos humanos nunca mais poderiam ser esquecidas face à precisão, extensão e força com que Rousseau as tratou. Assim o lerão também, em tempos atuais, muitos estudiosos do autor, das Luzes e da Revolução Francesa. Furet (1983, 53) escreverá que “Rousseau não é em nada ‘responsável’ pela revolução francesa, mas é verdade que construiu, sem o saber, os materiais culturais da consciência e da prática revolucionárias”, “Será nele que assentarão com rigor, a análise teórica sobre as condições necessárias ao exercício da soberania pelo povo”. Ora, colocando os revolucionários franceses Rousseau nas preferências das suas leituras, (MARQUES, 1991, 58), não é de estranhar que o filósofo tenha inspirado, mais que qualquer outro, os redatores da Declaração de 1789 (GAGNEBIN, 1964, XXII), entre os quais constavam bons conhecedores e discípulos, casos de Mirabeau, que redigiu o preâmbulo, e de Sieyès, que seria presidente da Constituinte. Houve, é certo, inspiração nas declarações americanas, mas não em decalque, como opina Georg Jellinek. Estas, nomeadamente a da Virgínia (1776), colheram forte inspiração no genebrino, desde o título à linguagem, à natureza da liberdade e da igualdade, à escravatura, ao direito à resistência, ao estado natural, à soberania do povo e ao papel dos magistrados, como bem demonstra Janet (1887, XIV, XV, XXXV-XXXVIII, XLVI), que lembra também que a liberdade de imprensa clama pelo Émile queimado e por Rousseau banido.

    O objetivo primordial das declarações de direitos é enfrentar os males das sociedades e buscar soluções. Nas do século XVIII, o princípio estruturante foi afirmar que havia direitos que, a não existirem, punham em causa a natureza de homem. Eram direitos de essência, intemporais, inalienáveis, imprescritíveis e prévios à sociedade, ao Estado e ao direito positivo. Nesta base, qualquer associação política devia ter como objetivo primordial preservá-los. Liberdade, igualdade, independência, segurança, propriedade, soberania do povo, vontade geral, lei, insurreição… são direitos naturais, correlatos ou condições apodíticas que constam nessas declarações e que clamam expressivas influências de Rousseau. Sigamos o pensamento do autor.

    Movendo-se no quadro do jusnaturalismo, do contratualismo e do enciclopedismo, Rousseau não aceitou, para reposição da dignidade e felicidade humanas conspurcadas, medidas conciliadoras, e propôs-se inverter a relação de prevalência existente da política sobre a moral, submetendo aquela totalmente a esta. Tal inversão é vista por Cassirer (1987, 52) como a postura mais revolucionária do filósofo. Não pactuando com os males da sociedade, postulava para esta uma mudança séria e radical assente na virtude, na fraternidade e na justiça.

    Defina-se a situação pela fórmula do Contrat Social: “O homem nasceu livre e por toda a parte vive aprisionado. Como aconteceu esta mudança? Ignoro. O que pode torná-la legítima? Acho que posso resolver este problema” (ROUSSEAU, 1959-1969, III, 351). O ponto de partida para esta resolução é antropológico e desenvolve-o no Discours sur l’Inégalité. Temática já com história, a sua perspetiva é portadora de referenciais inovadores e logo na altura controversos (cf. MACHADO, 2000, 63-84). Organizou a teoria do homem natural à revelia do paradigma cultural existente, divergiu dos filósofos do Direito Natural da época e acabou por escandalizar os enciclopedistas. A diferença maior foi ir além da mera definição e conhecimento do homem natural, propondo que este se realizasse e projetasse para uma nova ordem moral, educacional, religiosa e política. Que homem natural é esse? Já não existe; não nos chegou por indagação histórica; é irreconhecível no Homem de hoje; já não o descobrimos em nós. Vai então construí-lo através de uma metodologia de teor genético, fixando o que permaneceu comum entre as mudanças que as circunstâncias produziram nele. Tal processo será, na leitura de Kant, um dos maiores méritos do filósofo. Desenvolve-o numa versão laicizada e marginal ao quadro bíblico, fixando como qualidades comuns e definidoras da essencialidade humana a liberdade e a perfectibilidade. Por esta, desdivinizava o homem e projetava-o para uma historicidade incompatível com o Génesis; pela primeira, afrontava a clássica visão filosófica que fazia da razão a diferença específica e arrastava como condição necessária da sua preservação a igualdade. O quadro deste homem natural – selvagem, isolado, naturalmente bom, amoral e associal – era de felicidade “tanto quanto o podia ser pela sua natureza” (ROUSSEAU, 1959-1969, III, 171). Mas a situação natural de solidão e bondade não era conveniente à realização da perfectibilidade, já que mantinha quase impercetível a fronteira entre o homem e o animal. Um longo processo tecido de acasos que o segundo Discours e o Essay sur l’Origine des Langues (1871) fixam, foi alargando o horizonte humano e mostrando que a espécie não conseguiria sobreviver no estado originário. Desta fraqueza nascerá o imperativo da sociabilidade, que abrirá caminho a uma genealogia da razão e da moral, a uma humanidade com história, arrancando o homem de “animal estúpido e tacanho” e de uma “situação primitiva para sempre” para um ser inteligente, um homem (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 364). Em contrapartida, tal condição abrir-se-á a todos os males e vícios, dando azo a uma degeneração do “tout est bien” pela grande porta da desigualdade. A esta dualidade incompatível entre o homem natural, por imperativo da espécie, mas sem ideia de futuro, e o homem social, por circunstância, degradado mas exigido pela perfectibilidade, responderá Rousseau com uma solução política. Assim, uma vez que o homem é originariamente bom, a moralização não visará este, mas as causas da sua perversão, as instituições sociais. Tal intento perseguiria uma estratégia que devia conseguir: a) a criação de um espaço que possibilitasse aos homens a felicidade sem o regresso à primitividade; b) uma mudança da maneira de ser sem mudar o ser; c) poder ser cidadão sem deixar de ser homem. O homem-natural da natureza daria lugar a um homem-natural-da-cidade. O que se é seria, então, matriz estruturante do que se deve ser. Eis a que responde o seu Contrat Social.

    Quatro conceitos principais dão estrutura à nova situação: pacto social, vontade geral, soberania e lei. O primeiro é o ato fundador da sociedade pelo qual um povo é um povo. A alienação de cada um a toda a comunidade é livre e completa, permanecendo assim a igualdade incólume, a obediência nula e a dependência ausente. O primeiro efeito deste pacto foi colocar cada um sob a suprema direção da vontade geral, onde está também a sua e que, para o ser, “tem de partir de todos para se aplicar a todos” (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 373). A esta competirá definir o padrão do bem comum, ser o fundamento das decisões coletivas e ser a base donde emanam as leis em que, como se vê, “todo o povo estatui para todo o povo” (ROUSSEAU, 1959-1969, I, 379). Como assinala Gagnegin (1990, 320), a democracia está inteira neste conceito. Quanto à soberania, o conceito mais forte da revolução, que mais dignificou o povo e que se tornou a herança principal para o Estado moderno e a democracia, não é mais do que o exercício da vontade geral, sendo o soberano o corpo político resultante do pacto fundador, ou seja, o povo. Assim, à semelhança da liberdade individual, a soberania também nunca pode ser alienada, já que vontades particulares tendem para o privilégio e a vontade geral e a lei para a igualdade; pelas mesmas razões ela é indivisível, pois alienar ou dividir a soberania equivaleria a desnaturá-la, destruí-la. Desta forma, o povo é fundamento e protagonista exclusivo do seu exercício. Eis a maior diferença de outros contratualistas. Entre os quatro níveis que Derathé (1950, 44) elenca para a participação do povo no exercício da soberania à luz dos vários pactos – ser totalmente seu, partilhá-lo com um governo, aliená-lo sob condições ou aliená-lo sem reservas –, o primeiro cabe ao autor do Contrat Social. Só ele dispensava os reis, pois continham o germe do despotismo e a hereditariedade era incompatível com a liberdade da nação. Eis como Rousseau legitimava a ordem social transferindo o figurino dos direitos essenciais do indivíduo para os direitos coletivos de um povo e transformando o homem-natural da natureza em homem-natural-da-cidade. O pressuposto era claro: antes de se ser cidadão, é-se homem.

    São claras as diferenças entre Rousseau e os outros. Nos jusnaturalistas, o pacto era ato ditado por condições já existentes de desigualdades de ser, de ter e de poder ou por necessidades extremas dos indivíduos ou da espécie. Eram contratos de submissão que Rousseau considerava nulos, já que a força não pode produzir direito. Foi assim em Hobbes, com alienação forçada da liberdade a um poder absoluto exterior por temor mútuo da guerra de todos contra todos; em Pufendorf, em que o povo alienou a sua soberania à conta de uma “obediência fiel”; com Grócio, que se abriu a uma alienação consentida da liberdade, admitindo uma escravatura voluntária. Ora, foi neles que se inspirou Diderot para a entrada “Droit naturel” da Encyclopédie. A mesma diferença se nota nos conceitos implicados de liberdade e igualdade. Os jusnaturalistas viam o estado de independência como metafísico; os enciclopedistas consideravam liberdade e igualdade naturais como inquestionáveis, mas não tendo lugar como exercício real, sobretudo a igualdade. No artigo “Égalité” do seu Dictionnaire, Voltaire concebia a dominação como um absurdo, mas provava a seguir a fatalidade da existência de opressores e oprimidos; Joucourt, autor da entrada “Égalité naturelle” da Encyclopédie, seguia Montesquieu e Voltaire e considerava esta como enteléquia imprópria à cidade real, abrindo-se a lenitivos como a caridade e outros para absolver os pecados sociais existentes. Ora, Rousseau não pactuou com estas posturas e afirmou como real a liberdade natural e quimérica a do direito positivo, formatado para avantajar ricos e poderosos (ROUSSEAU, 1959-1969, III, 258). Nele, a igualdade ia além da dimensão política. A igualdade social povoa a sua obra. Tem sentido a leitura de Soubul (1987, 22) quando afirma que a esperança popular na mudança social não encontrou grande eco nos filósofos das Luzes a não ser em Rousseau. Ricos e poderosos que usavam a sua força para tiranizar atiçavam a sua malquerença. A natureza não fazia reis, grandes, cortesãos ou ricos. Por isso denunciou estratégias e ações injustas de enriquecimento numa apóstrofe a si aplicada pela hipótese “Se eu fosse rico” (ROUSSEAU, 1959-1969, IV, 678). Não nega a propriedade privada, mas considera-a a caixa de Pandora por onde entraram os males da civilidade: crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores (ROUSSEAU, 1959-1969, III, 164). Ainda assim, considerá-la-á uma alavanca indispensável à humanização. A questão estava no seu mau uso, introduzindo desigualdades excessivas, dependência e excessos contrastantes de opulência e miséria que esmagavam a humanidade. Neste âmbito, não mediu esforços na defesa dos oprimidos e pobres a quem, quanto mais o mundo lhes deve, mais a sociedade lhes recusa, sendo eles a quase totalidade do género humano a que o Povo dá expressão: “É o povo que compõe o género humano; o que não é povo é tão pouca coisa que não vale a pena tê-lo em conta” (ROUSSEAU, IV, 509). Sieyès aprenderia bem a lição e abri-la-ia à prática.

    Embora o quadro dos direitos humanos a que Rousseau deu maior inspiração, fundamentação e projeção se situe no âmbito da essencialidade individual e dos povos, outros há, decorrentes ou não destes, que lhe mereceram cuidado e preocupação. Destacamos alguns.

    A educação é o mais valioso. Dedica-lhe o escrito mais importante, o Émile ou de l’Éducation, e é peça estratégica do seu projeto político. Se o segundo Discours apresenta a perspetiva filogenética do conhecimento, evolução e degeneração da espécie, o Émile responde num plano ontogenético ao conhecimento, evolução e regeneração do indivíduo para construir o homem-natural-da-cidade do seu Contrat Social. É por isso direito indispensável. Repulsa a velha teoria do homúnculo e vê a criança como ser em desenvolvimento: “A infância tem o seu lugar na ordem da vida humana”, como “a humanidade tem o seu na ordem das coisas” (ROUSSEAU, 1959-1969, IV, 303). Segue as lições da natureza, que não engana sob o pressuposto que abre a obra, paralelo ao do Contrat Social: “Tudo está bem ao sair das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem”. Mantendo a liberdade como base do processo educacional, promove uma educação negativa, que não dá virtude mas previne vícios, não ensina a verdade mas preserva dos erros, conduzindo a criança ao verdadeiro e ao bem apenas quando está em condições de os compreender e amar.

    Entre várias especificações que emergem da liberdade, a religiosa mereceu-lhe relevo especial. Preenchia o maior campo do valor tolerância e foi causa de numerosas guerras. Muitos lhe deram atenção: Bayle, Locke, Voltaire… Rousseau seguiu-lhes o rasto e com ela deu matéria ao penúltimo capítulo do Contrat Social: “Da religião civil”. Aí acrescenta aos dogmas positivos da religião, apropriada ao seu sistema político, o dogma negativo da intolerância. A sentença é drástica: “Alguém que ouse dizer, fora da Igreja não há salvação, deve ser expulso do Estado”. A fórmula do Émile qualificará a mesma atitude como “princípio da sanguinária intolerância” (ROUSSEAU, 1959-1969, IV, 554-555). O princípio era claro: a crença não é negócio do Estado, a não ser que comporte algo contra a ordem pública ou contra o contrato.

    Da opressão ou incumprimento do pacto nasce o direito de desobediência, resistência ou insurreição. É direito já pugnado por outros, mas Rousseau dá-lhe âmbito mais amplo e radical, sustentando-o em imperativos de liberdade e igualdade. Torna-o, até, em dever, pois não reagir renunciando à liberdade é renunciar a ser homem, além de que aquele exercício ilegítimo poria em causa o direito à vida (ROUSSEAU, 1959-1969, III, 191 e 356).

    Dá também grande relevo ao direito da paz. Estende os princípios individuais naturais de não poder haver autoridade sobre o semelhante e de a força não produzir direito, à questão coletiva da guerra. Evitar esta deve ser guia dos soberanos para felicidade dos povos. Foi nesta convicção e com esse fim que se atreveu a escrever a Frederico II, ilustrado mas belígero, que ficou melindrado. É valor a incutir desde a meninice. O Emílio amava-a porque o educou na naturalidade do amor de si mesmo, da piedade e da fraternidade contra o amor-próprio (ROUSSEAU, 1959-1969, IV, 544-545).  

    Finalmente, o direito ao trabalho. Rousseau faz simbiose entre dignidade do homem e trabalho, pois este é garantia de liberdade sem dependências e, nesta base, condição de essencialidade humana. É etapa obrigatória na educação do Emílio enquanto dever social. Comer na ociosidade o que não se ganhou é roubar o que come. Além disso, é no exercício do trabalho que melhor se sentem as iniquidades da desigualdade. Na Nouvelle Heloïse pinta de forma contundente o espetáculo dos contrastes entre senhorios exploradores, rendeiros ávidos ou mestres desumanos com os sofridos, fatigados e famintos camponeses e outros. No amadurecimento destas ideias florescerá o princípio do direito em vez da necessidade de trabalho, abrindo vias à humanização deste e ao fim da exploração.

     

    Em Portugal

    Sabemos como Portugal se fechou à filosofia das Luzes e quão requintado foi o aparelho repressivo contra os “novadores do século” até à Revolução de 1820. Entre estes pontifica o “botafogo das cabeças francesas”, mas foi também ele quem mais deslumbrou os académicos portugueses do último quartel do século XVIII, como prova o informado censor régio João Pedro Ribeiro. As suas obras começaram cedo a povoar censuras, processos inquisitoriais e editais de proibição e a ser objeto de maciças apreensões. Só no edital pombalino de proibição ou queima, de 24 de setembro de 1770, constaram o Émile, as Lettres de la Montagne, a Nouvelle Héloïse, a Lettre à Beaumont, o Contrat Social, Oeuvres Diverses, Oeuvres Complètes e Miscelâneas com textos do autor. Mesmo assim, o seu curso por cá foi muito abundante (cf. MACHADO, 2000, Parte II, caps. II e III), e é isso que explica o vasto conhecimento das suas ideias e teorias demonstrado por apoiantes ou oponentes logo após a Revolução liberal. Entre as tribunas desta constatação, relevamos as Cortes Constituintes, a imprensa periódica, os catecismos políticos, múltiplos escritos e a voz da Igreja, quer em toadas de loas, quer de críticas e repulsa (MACHADO, 2000, 535-601).

    Nas Cortes Constituintes, que alguns classificaram como “câmaras à Rousseau”, o genebrino sentou-se, de facto, ao lado de muitos constituintes. Em amostra curta do Diário das Cortes, foi-nos fácil localizar 20 nomes de deputados que recorreram a Rousseau, integrando a maioria deles o núcleo dos que tiveram maior influência na feitura da lei fundamental. Liberdade, igualdade, pacto, vontade geral e leis, religião, direitos humanos e democracia direta foram matérias abertas às suas lições. Mas foi a da soberania do povo/nação que sustentou os mais encomiásticos louvores e as mais violentas refutações. Era aí que assentava a mola do sistema constitucional. Rei com soberania do povo e sem poder de veto não é rei; nação ou povo sem soberania não é povo nem nação…eis o núcleo central das contendas. A segunda teria vencimento e ficou consagrada no art. 26.º da Constituição de 1822, dando consistência aos direitos de liberdade, segurança e propriedade (art. 1.º) e de igualdade perante a lei (art. 9.º); ao conceito de lei como expressão da vontade geral (art. 104.º); à dispensa da sanção real à Constituição, às alterações desta e às leis emanadas da constituinte (art. 112.º); ao juramento real sobre a provisão do bem da nação, etc.

    De vários catecismos políticos, quase todos aferidos com a mudança, emanam esplêndidas lições de Rousseau para entender a estrutura e o alcance dos direitos do homem e dos cidadãos. Mas é em escritos autónomos e na imprensa periódica que há maior acervo e mais matérias em torno da figura, conceitos e teorias de Rousseau. As controvérsias são frequentes e longas. Exultações e fantasmas conviveram no período da liberdade vintista, mas fantasmas e repulsas ganharam ênfase depois do golpe que suspendeu a Constituição, em 1823. Neste combate desigual é fácil ver, por via negativa, a importância do autor na definição e difusão dos direitos humanos em Portugal. Prosélitos do poder pervertido imprecavam o filósofo pelo quimérico e falacioso sistema da liberdade e da igualdade; pelo embuste do pacto social; pela impossibilidade de transpor os direitos do homem-natural para a cidade; pelo “aborto” da Revolução Francesa que nele assentou; pela “heresia” da soberania do povo lida como “crime de Lesa-Majestade”, “quadratura do círculo”, ou “estultícia de todo o povo determinar sobre todo o povo”. A par, a Igreja festejava o contrato social dos dez mandamentos e opunha ao antigo crime de “inconstitucionalidade” os de “incristitucionalidade” e tolerantismo.

    Teve pouco eco no Portugal liberal o valor e o direito à educação. A voz e a pena mais inquietas foram as de Almeida Garrett. Em tribunas e jornais e sob o lema da “educação como maior negócio da pátria”, apregoava a sua importância e zurzia os constituintes que não a valorizavam: “Dai luzes ao povo e o povo quererá ser livre, tapai-lhe as luzes e ele dormirá nos ferros”. Mas foi em 1829, com a obra Da Educação, que introduziu de forma cabal no país o pensamento educacional do seu mestre (cf. MACHADO, 1993).

    Liberdade e felicidade articulam a filosofia política de Rousseau. No seu lastro se alimentaram factos e ideias que tornaram mais firmes e urgentes os caminhos da humanização e da democracia. Os direitos humanos a que declarações e constituições deram visibilidade foram instrumento incontornável desse caminhar, como o foi e é o pensamento do filósofo na valoração da sua importância e na materialização substantiva dos seus enunciados.

    Bibliografia

    CONDORCET (1793-1794). Esquisse d’un Tableau Historique des Progrès de l’Ésprit Humain. Paris: Chez Henrichs. 

    DERATHÉ, R. (1970). Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps. (2.ª ed.). Paris: Librairie Philosophique J. Vrin.

    Diário das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa (1821, 27 de janeiro) (1822, 25 de janeiro). (5 tomos). Lisboa.

    FURET, F. (1983). Pensar a Revolução Francesa. Trad. R. F. de Carvalho. Lisboa: Edições 70.

    GAGNEBIN, B. (1964). “Introductions – Les écrits politiques”. In J.-J. Rousseau. Oeuvres Complètes. (vol. III).

    “Rousseau (Jean-Jacques)” (1989-1990). In Encyclopaedia Universalis (318-321). (vol. 20). Paris: Encyclopaedia Universalis France.

    GARAPON, A. (1998). “Humanité bafouée/Humanité promise”. In 1948-1998 – Cinquantième Anniversaire Déclaration Universelle des Droits de l’Homme (8-13). Paris: Ministère des Affaires Etrangères. 

    GODECHOT, J. (1970). Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris: Garnier-Fammarion.

    JANET, P. (1887). Historie de la Science Politique dans ses Rapports avec la Moral. Paris: Félix Alcan Éditeur.

    MACHADO, F. A. (1993). Almeida Garrett e a Introdução do Pensamento Educacional de Rousseau em Portugal. Porto: Edições ASA.

    MACHADO, F. A. (2000). Rousseau em Portugal: Da Clandestinidade Setecentista à Legalidade Vintista, Porto: Campo das Letras.

    MARQUES, M. R. (2015). “O itinerário jusnaturalista dos direitos humanos da ‘primeira geração’”. In A. P. Barbas Homem & C. Brandão (orgs.). Do Direito Natural aos Direitos Humanos (187-229). Coimbra: Edições Almedina.

    MARQUES, V. S. (1991). Direitos Humanos e Revolução. Lisboa: Edições Colibri.

    PRÉLOT, M. (1992-1995[1793]). “Droits de l’homme – Déclarations des droits”. In Encyclopaedia Universalis (710-713). (vol. 7). Paris: Encyclopaedia Universalis France.

    ROUSSEAU, J.-J. (1959-1969). Oeuvres Complètes. (4 vols.). Paris: Galimard.

     

    Autor: Fernando Augusto Machado

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.