• PT
  • EN
  • Sanches, António Nunes Ribeiro [Dicionário Global]

    Sanches, António Nunes Ribeiro [Dicionário Global]

    António Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699-Paris, 1783) foi figura cimeira da Ilustração portuguesa e, seguramente, a mais reconhecida na comunidade científica europeia da época. Além da fama na sua área profissional, a Medicina, foi notável o rasto científico que deixou em campos tão variados como a Farmacologia, a Pedagogia, a Política, a Economia, a Antropologia, a Etnografia, a Botânica, a Linguística ou a Religião, com obra vasta e de enorme projeção, desde logo a sua Dissertation sur l’Origine de la Maladie Vénérienne (Paris, 1750). Centrada na “doença do século”, a sífilis (morbus gallicus), que à época afligia a Europa, a obra teve um sucesso retumbante, com várias edições em França e na Holanda e uma versão nas línguas inglesa e alemã. Sobre a mesma problemática, apareciam, em 1774, em Lisboa, o Examen Historique sur l’Apparition de la Maladie Vénérienne en Europe, et sur la Nature de Cette Épidémie e, dois anos após a sua morte, aquela que foi tida como uma das mais importantes obras da sifilografia da época, as Observations sur les Maladies Vénériennes. Êxito paralelo teve a Mémoire sur les Bains de Vapeur de Russie (Paris 1782), com duas edições em língua russa (1779 e 1791), duas em língua alemã (1789 e 1819) e duas recentes em língua portuguesa (1991 e 2011). Entretanto, Diderot rendera-se aos méritos do sábio e convidou-o a colaborar na Encyclopédie. Fê-lo na entrada “Vérole, grosse, maladie vénérienne”, através da especificação “Maladie vénérienne inflammatoire chronique (1765). Foi o único português a integrar o maior projeto científico-cultural do século das Luzes. É também autor da obra pioneira em Medicina de Saúde Pública, Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (Paris, 1756), com outras edições em França e em Portugal e uma tradução em Espanha. Em Portugal, encontrou eco sobretudo em obras de natureza pedagógica: Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760), de feição pedagógico-política, e Método para Aprender e Estudar a Medicina (1763), visando reformas na Universidade de Coimbra. Escritos pedagógicos aplicados à Rússia fazem-no figurar na história educacional deste país. Muitos outros sobre matérias várias continuam quase ocultos ou em forma manuscrita (cf. SANCHES, s.d.; SÁ, 1980). Tão subidos méritos deram-lhe pertença a várias academias científicas europeias e a uma enorme rede de relações com a mais insigne comunidade científica do tempo (cf. LEMOS, 1911; 1912). Esta singular notoriedade contrasta com o desprezo que lhe votou a pátria. Dêmos breve conta do seu percurso existencial.

    Três circunstâncias se destacam no rumo desse percurso: ser cristão-novo em Portugal, ter-se cruzado com Boerhaave na Universidade de Leida e ter vivido longos anos na Rússia.

    São conhecidas a violência da Inquisição em Portugal e a prevalência da sua ação contra judeus e cristãos-novos estrategicamente “fabricados”, de cujos bens se nutria. Sanches sofreria toda a vida as agruras deste fanático sistema. Como outros da mesma condição, foi batizado, educado e praticante sincero da fé cristã, alimentando até o sonho de uma carreira eclesiástica que, saberia mais tarde, a “impureza” de sangue impedia. Mas o ambiente de sistemática intolerância e vexame que foi notando contra os da sua nação, incluindo familiares – avós, pais, tios, primos, cunhados… –, e que cedo começou a sofrer na pele, depressa lhe imprimiu a consciência da diferença, que lhe foi cavando um sofrido anátema que só a morte erradicou. Já maduro, exprimiria com revolta esta pungente mágoa de criança: “Tanto que um Menino Cristão-novo é capaz de brincar com os seus iguais, logo começa a sentir a desgraça de seu nascimento, […] a ser insultado com o nome de Judeu e de Cristão-novo. […] Entra este Rapaz no Comércio do mundo, e a cada passo observa que os Cristãos velhos por trinta modos o insultam e desprezam (SANCHES, 2019, 368). Por esmero e receio, os pais mandaram-no com 13 anos para casa de parentes, na Guarda.

    Frequentaria a Universidade de Coimbra, mas acabou por desistir, desiludido com o nível do curso e, quiçá, por a cidade ser sede de inquisição. Cursaria Medicina em Salamanca (1720-1724), confessando mais tarde o doce sentimento de libertação do opróbrio judaico que aí sentira. Exerceu dois anos em Benevento, onde conheceu o grande amigo, confidente e mediador com a pátria Pacheco Valadares. Entretanto, leituras aconselhadas ou motivadas por curiosidade e vivências, advertências contra a Inquisição, conversas discutidas e exegeses bíblicas foram criando em si sérias convicções da razão religiosa judaica, acabando por abraçar a causa com 23 anos. A nova situação potenciou o perigo inquisitorial, tornado iminente com a denúncia sabida de um primo, em 1726. Fugiu à pressa e sem retorno do país, fixando-se em Londres, numa comunidade de foragidos judaicos. Aí seguiu a nova crença, que selou com a circuncisão, depressa tornada novo labéu existencial. É que a desilusão fermentada em novas leituras, reflexões e atitudes de muitos correligionários fê-lo duvidar da justeza da nova crença, retornando ao cristianismo. Esta decisão espoletou novas angústias, fundadas quer na incongruência entre o retorno a um credo intolerante de que continuava a ser vítima, quer na traição à comunidade judaica que solidariamente o amparava. Neste viver atormentado, um acaso lhe abriria portas a uma nova etapa de vida: acompanhar um jovem que ia cursar Medicina em Leida, onde exercia o célebre Herman Boerhaave.

    Seguindo as lições de Boerhaave, Sanches impressionou o mestre pelo saber e postura. Este facto fá-lo-ia encabeçar uma lista de três médicos que a imperatriz russa Ana Ivanovna solicitara ao sábio neerlandês. Sanches aceitou o inesperado desafio. O contrato vantajoso não só o remia da dependência da comunidade judaica, como lhe dava esperança de se libertar, em terras novas e distantes, do anátema de sangue que o perseguia. Viveu na terra dos czares entre 1731 e 1746, afirmando méritos em atividades e cargos eminentes, desde médico do Senado e da cidade de Moscovo, da imperatriz, dos exércitos imperiais, do corpo de cadetes e da corte, com foro de fidalgo hereditário, a presidente da Chancelaria Médica e conselheiro de Estado. A participação na campanha da guerra russo-turca (1735-1739) oferecer-lhe-ia, em observações, experiências e recolhas, um pecúlio essencial à inovação e ao desenvolvimento científico-cultural que os seus escritos sustentam. Mas esta paz libertadora e fecunda seria de novo interrompida pelo ferrete da sua condição, por intriga de colega. A saída era imperativa, já que a nova czarina Elisabete Petrovna era inimiga figadal dos judeus. Paris recebeu-o, e lá permaneceria até à morte.

    Ribeiro Sanches professou um pensamento humanista muito refletido em práticas humanitárias. Há um reconhecimento generalizado deste seu perfil, como se prova pela majestosa divisa do símbolo heráldico com que foi agraciado por Catarina II: Nec sibi, sed toti genitum se credere mundo [“Não se julgou nascido para si próprio, mas para o mundo”]; pelo remate da biografia de Charles Andry (1959-1966, 20), em que, depois de enaltecer o seu préstimo para com os pobres, afirma que “Tal é a vida de M. Sanches que não passou um único dia sem se ocupar da felicidade dos homens em geral e sem fazer por cada um em particular uma ação generosa”; ou pelo tom do Elogio feito em 1784 por Vick-D’azyr (1819), ilustrado com exemplos do contínuo e resguardado desvelo solidário do seu bem-fazer.

    Paralelamente, foi paladino dos direitos humanos, no esteio da filosofia e da axiologia das Luzes. Liberdade, igualdade, humanidade, felicidade, tolerância, justiça, educação, trabalho e progresso são valores que lhe povoam obras e ação figurados como direitos. Enfatizando a natureza e a razão, segue o modelo universalista de Rousseau, que projeta para a realidade portuguesa. Antes de mais, reconhece o estado deplorável do país, que qualifica como “reino cadaveroso”, bem como a imperiosa necessidade da sua regeneração. Em segundo lugar, assume que a elevação ou degradação de uma nação decorre, primordialmente, do exercício político da governação (SANCHES, 1959-1956, I, 101, 319); depois, firmará que não se pode construir um reino novo assente nas leis do velho (SANCHES, 1936, 78); finalmente, proporá a regeneração do reino velho, assente nas “leis do fanatismo”, pelos ditames do Direito Natural, que contém a “boa filosofia” da utilidade e da felicidade das nações e do género humano (SANCHES, 1959-1966, I, 101). Se o segundo Discurso de Rousseau retrata o processo de desnaturação da espécie elencando causas e consequências, Sanches prosseguirá propósitos paralelos, nas Cartas sobre a Educação da Mocidade, aplicados à pátria. A obra é uma denúncia e uma explicação vivas do sistema teocrático da nossa monarquia, que, à sombra da ignorância, permanecia com laivos góticos, ignorando ou combatendo as leis da humanidade. Acompanhemos a teoria.

    À luz da sociabilidade natural, Sanches situa o vínculo e fundamento do Estado civil e político na convenção do pacto entre soberano e súbditos, ato que sacraliza no juramento de fidelidade mútua através da caução testemunhal da divindade mais venerada. Assim foi em Portugal com as aclamações de Afonso Henriques e do Mestre de Avis, que consagraram o poder supremo dos nossos reis. Deste emergirá a primeira lei: a conservação do Estado civil pelo soberano, que concentrará nas suas mãos o poder dos súbditos, ficando na posse destes os sagrados direitos de propriedade e de liberdade interior. Deste corpo civil resultará, então, uma igualdade, tornando-se a utilidade pública e particular o “vínculo e alma” da vida civil (SANCHES, 1959-1966, I, 221). Eis o que o tempo perverteu. Eis o que o Estado já não era. Neste percurso degenerativo, coloca a Igreja no papel principal, pela ação continuada contra a separação de poderes e o apoderamento da majestade civil pelas “fortalezas inexpugnáveis” da educação, dos conventos, das confissões e da temerosa Inquisição. Com elas construiu uma Respublica Christiana, que inverteu as ordens da essencialidade e da circunstancialidade. Antes de se ser cristão (circunstância), é-se homem e cidadão (SANCHES, 1959-1966, I, 28). Antes, buscavam os cidadãos o seu amparo e defesa nas leis civis e no Direito das gentes emanados do Estado; agora, a Igreja imperava e fundia na sua a jurisdição secular, aplicando penas civis (prisão, tortura, expropriação, morte…) sobre ações ofensivas da religião (heresia, blasfémia, cisma, usura, concubinato…). Assim, o que o altar perdia em essência ganhava-o em poder, esvaziando dele o Estado. Ora, é na hermenêutica deste processo que Sanches encontrará a origem da deterioração e perda dos dois direitos naturais da essencialidade humana: a liberdade e a igualdade. Fá-lo através da análise de opostos que considera núcleos primordiais desses direitos: a escravatura e a intolerância. Liga a origem da primeira à nobreza, e a da segunda ao clero, se bem que ferindo ambas os dois direitos. Escreve: “Dos privilégios da fidalguia concedida pela constituição da Monarquia Gótica, se seguiu a escravidão” (SANCHES, 1959-1966, I, 270). Condenando o benefício que feria a igualdade e os efeitos que limitavam a liberdade e lesavam a utilidade pública, o autor situa as causas do facto na circunstância de termos sido país de descobertas e conquistas em que a fidalguia teve papel relevante e recompensas largas. Neste acontecer, torna a Igreja cúmplice, ao permitir que a escravatura prossiga e que sejam escravos meninos nascidos de pai ou mãe escravos.

    As questões da escravatura, do cerceamento da liberdade e da desumanidade são nele recorrentes. Nas suas Cartas, denuncia a forma como os fidalgos dispunham do corpo, dos bens e da honra de criados e vilões, focando a denúncia na tirania do ato e na perversão da igualdade, pedra angular do vínculo social. É que a natureza violentada tende ao estado natural, criando ambiente de revoltas. Foi para precaver tais efeitos que a Rússia de Pedro, o Grande, se abriu a práticas de humanidade e sã política com servos e escravos, ditadas não tanto por clemência, mas pela lei natural e por imperativos de justiça. A ausência de liberdade oblitera a natureza e a dignidade humanas e impede também a boa educação, o progresso, a cultura, a arte e a economia dos povos: “Não podem existir escritos sólidos e interessantes a não ser nos países em que é permitido ser-se homem e cidadão”, sendo também a prosperidade dos Estados função da liberdade das pessoas, das coisas e das ações, o que impele à rejeição da escravatura (SANCHES, 1768-1782, fls. 181v., 209v.).

    A luta mais veemente pelos direitos humanos do despatriado português centrou-se na liberdade religiosa e consequente intolerância religiosa e civil. Ser útil à pátria e à religião que definhavam e acabar com a vida sofrida dos cristãos-novos foram propósitos que sustentaram este combate. Ora, se os privilégios da nobreza geraram escravidão, dos privilégios da Igreja nasceu a intolerância, que passou de religiosa a civil. O instrumento principal do ardil da transferência do quadro legislativo e punitivo da esfera da religião para o Estado civil que conduziu à dissolução deste e à ruína do seu fundamento foi a Inquisição, esse “tribunal inventado pela fúria mais infernal que se mostrou neste mundo” (SANCHES, 1768-1782, fl. 157). Sanches sentia profunda aversão por este tribunal. Admitia-o enquanto vigilante da pureza da fé, mas face à sua ação assumiu a necessidade da sua erradicação total. O argumento da sua ignominiosa ação era que a tolerância e a liberdade de consciência religiosa eram contrárias à conservação do catolicismo. Refutava Sanches a tese pelo adverso das consequências reais, ilustrando com a histórica nacional as práticas de outras geografias (Rússia, França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Itália, Dinamarca, Alemanha), argumentos filosóficos de numerosos autores (Espinosa, Bacon, Locke, Bayle, Voltaire…), enfim, os múltiplos testemunhos vivenciais, incluindo o seu. Recorde-se que a aceitação da sua ida para a Rússia teve importante assento no facto de a religião não ser aí impedimento a ser reputado homem, cidadão ou servidor do Estado.

    O esforço de Sanches nesta luta teve quase sempre em foco a questão dos judeus e cristãos-novos em Portugal. É nesta base que tem de se olhar para um dos mais notáveis escritos do século sobre liberdade, igualdade e dignidade humanas e o mais importante na matéria em causa (cf. MACHADO, 2019). Falamos de Origem da Denominação de Cristão-Velho e Cristão-Novo no Reino de Portugal […]. A decisão da sua escrita terá sido por 1731, antes de ir para a Rússia, mas a ideia terá já fervilhado em Londres, onde recolhera dados entre foragidos e vítimas da Inquisição. Em 1735, dava o texto como acabado. O documento servia a estratégia de “fazer de judeus cristãos e de cristãos-novos cristãos-velhos (SANCHES, 2019, 368) com plenitude de direitos. O título é programático. Enuncia o problema, remete para as causas e para o método de solução e explicita o fim em vista. É um libelo violento contra a intolerância e a Inquisição, demonstrando com doutrina e com a realidade a injustiça, a perversidade, a irracionalidade, a desnaturação e a subversão jurídica das ações desta e desmentindo a intenção do que dizia prover: o aumento da religião e a utilidade do Estado. Apraz realçar que a lei pombalina de 1773 que acabou com aquela infame distinção terá tido inspiração direta ou mediada nesta “relação” e que o reiterado combate que Sanches desenvolveu contra as causas primeiras que acometeram a liberdade, a igualdade e a tolerância corresponde às primeiras medidas com que os revolucionários franceses puseram fim, em 1789, ao Antigo Regime, perspetivando, dias depois, o futuro com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

    Além da liberdade, igualdade e tolerância, outros direitos receberam aturada atenção por parte do português. O da educação sobressai como a base mais estruturante da glória de uma nação e da felicidade de um povo, superando exércitos ou riquezas. Por isso, a sua natureza é mais de teor metodológico e político do que técnico-pedagógico. Sendo o maior campo de exercício da utilidade pública, deve ser jus da majestade fundar escolas públicas e promovê-las entre a mocidade, para esta adquirir hábitos da virtude e o Estado as ciências de que necessita. Assim, não sendo curial manter a educação confinada à nobreza e ao clero, anuncia o seu intento de “propor tal ensino [público] a toda a mocidade dos dilatados domínios de Sua Majestade” (SANCHES, 1959-1966, I, 286). Eis porque celebrará a festa da sua secularização contra o império da Respublica Christiana (MACHADO, 2001, 19-63). A importância atribuída a este direito e à escola pública levou-o a preconizar a existência de um secretário de Estado que presidisse a esta área. Mesmo assim, como Voltaire e outros, não teve ânimo para consagrar o princípio da universalidade dos educáveis, pensando cumprir melhor a utilidade pública não desviando parte da mão de obra do trabalho.

    O trabalho é outro vetor que o absorve. Fazendo-o emergir dos direitos de liberdade e de igualdade, enaltece-o e luta pela sua humanidade e dignidade. O ócio degradante do clero e da nobreza é alvo assíduo dos seus remoques, pela inutilidade que figuram, pelo fardo em que se tornam e pelo aviltamento que promovem de tal direito. Por isso, mede como pernicioso o exercício de funções da nobreza nas cortes, pela aversão ao trabalho que nelas se cultiva, e queixa-se, com ironia, da ação nefasta das atividades fradescas do canto, da contemplação e da arte argumentativa, em detrimento do trabalho, da indústria e da virtude. Verberando a injustiça das vexantes desigualdades de proventos entre quem tem privilégios ou vive folgado no ócio e quem trabalha, louva políticas de países como a Hungria ou a Rússia, que regulam ou inibem estas situações. No opúsculo laudatório de Pedro, o Grande, Meios Que Pedro Primeiro Imperador da Rússia Tomou para Regrar os Eclesiásticos do Seu Império e Estabelecer a Sua Subsistência (1769), visa os políticos portugueses. Com as Réflexions sur l’État Désavantageux des Laboureurs de Russie, des Esclaves, des Domaines et des Seigneurs, mostra preocupações com a necessidade de melhorar nesse império as condições de vida, de humanidade e de dignidade no trabalho. A luta ativa que aí travou pela libertação dos camponeses servos da Coroa criou escola e teve discípulos, como foi o caso do príncipe Dmitri Galitsyn. No que respeita a Portugal, o lastro deixado nesta matéria atravessa as principais obras e é tema incisivo noutras menores. Veja-se o exemplo de uns pouco conhecidos e incompletos Apontamentos para Promover Toda a Sorte de Trabalho em P xx [Portugal] (1777). Ao enfatizar a necessidade de desenvolver e valorizar o trabalho no país, tem a ousadia de aconselhar o rei a buscar dinheiro para investimentos em quem o tinha – fidalgos, eclesiásticos e cidadãos –, ao abrigo da máxima do Direito romano, que evoca Salus populi suprema lex esto [“Que a lei suprema seja a salvação do povo”] (SANCHES, s.d., 130). É a mesma coragem que cobre a indignação que tantas vezes exprime contra a filosofia que ligava o trabalho à desonra e que ecoa no repúdio expresso de uma tal “lei oral” que portugueses e espanhóis instituíram nas colónias da América, visando, com o opróbrio, nativos e escravos negros: “Homem branco não trabalha” (SANCHES, s.d., 162). Humanidade e trabalho foram sempre, em Sanches, vertentes convergentes da lei natural.

    Como pioneiro da política de saúde pública, Sanches sentiu-se profundamente sensibilizado por uma problemática de minguada tematização e de estranho alheamento da Igreja, por tamanha tirania: as prisões. A realidade era pungente, pelas condições físicas insalubres, pelas leis que as regiam, pelo desprezo a que os presos eram votados e pela disparidade entre a exiguidade do espaço e o universo dos acolhidos, fruto, como refere, das muitas leis que havia para punir crimes e das poucas para os prevenir. Eram, por isso, locais onde florescia a violência, a injustiça e a desumanidade. Mesmo antes de serem julgados, os presos viviam morrendo, aniquilando-se assim o uso futuro da sua força e saúde ao serviço do bem comum. Nesta base, proporá uma política de Habeas Corpus de matriz inglesa que possibilitasse o uso da liberdade antes da condenação (SANCHES, s.d., 140).

    O direito à proteção social dos desamparados foi outro dos seus cuidados. Chocava-o muito o amplo fenómeno das crianças enjeitadas. A grave situação na Rússia impeliu-o a escrever um Plan sur la Manière de Nourrir et d’Élever les Enfants Trouvés dans l’Hôpital de Moscou (1764), traduzindo, na sequência, o regulamento londrino para servir de modelo ao russo.

    Registamos, finalmente, o direito de propriedade, que, como o direito à vida e o direito à honra, decorre do Direito Natural. Sanches enquadra politicamente a questão e tira consequências. Base essencial das monarquias fundadas no trabalho e na indústria como foi a nossa, e um dos direitos sagrados dos súbditos por ditame do pacto, o seu esbulho por crimes de natureza religiosa era perversão contra os súbditos e o Estado civil.

    Em síntese, a dimensão humanista de defesa dos direitos humanos de Sanches, abonada por sistemático e discreto humanitarismo para com infelizes ou deserdados, mostra o perfil singular de um homem cuja existência doída o impeliu a lutar, por ação, escrita e exemplo, e antecipando a História, pelos direitos de todos os homens, com vista a uma pátria e a um mundo mais livres, iguais, tolerantes, justos e humanizados.

    Bibliografia

    ANDRY, Dr. C. (1959-1966). “Précis historique sur la Vie de M. Sanchès”. In SANCHES, A. N. R. Obras (vol. II) (1-20). Coimbra: Universidade de Coimbra.

    BIBLIOTHEQUE DE LA FACULTÉ DE MEDECINE. António Nunes Ribeiro Sanches. Journal, 1768-1782. Ms. 2015, Paris.

    LEMOS, M. (1911). “Amigos de Ribeiro Sanches”. Arquivo Histórico Português, 8, 281-295 e 447-469.

    LEMOS, M. (1912). “Amigos de Ribeiro Sanches”. Arquivo Histórico Português, 9, 111-162.

    MACHADO, F. A. (2001)- Educação e Cidadania na Ilustração Portuguesa – Ribeiro Sanches. Porto: Campo das Letras.

    MACHADO, F. A. (2019). “A defesa da igualdade das condições sociais: A origem da menorização dos descendentes de judeus e mouros – António Nunes Ribeiro Sanches, Origem da denominação…”. In J. E. Franco & C. Fiolhais (dirs). Obras Pioneiras da Cultura PortuguesaPrimeiros Textos sobre Igualdade e Dignidade Humanas (vol. 14) (67-103). Lisboa: Círculo de Leitores.

    SANCHES, A. N. R. (s.d.). Dificuldades Que Tem Um Reino Velho para Emendar-Se e Outros Textos. Sel., apres. e notas de V. de Sá. Porto: Editorial Inova.

    SANCHES, A. N. R. (1911-1913). “Cartas de António Nunes Ribeiro Sanches ao Dr. Pacheco Valadares [ed. M. Lemos]”. In M. Lemos (ed.). Arquivos da História da Medicina Portuguesa (vols. II-IV). Porto: Lemos e C.ª, Suc.or.

    SANCHES, A. N. R. (1936). “Três cartas inéditas de António Nunes Ribeiro Sanches (1758-1760) a Francisco de Pina e Melo”. In A. Ferrão (org.). Portugueses Ilustres – Ribeiro Sanches e Soares de Barro, Lisboa: s.n.

    SANCHES, A. N. R. (1959-1966). Obras (2 vols.). Coimbra: Universidade de Coimbra

    SANCHES, A. N. R. (2019). “Origem da denominação de cristão-velho e cristão-novo no reino de Portugal, e as causas da continuação destes nomes, como também da cegueira judaica. Com o método para se extinguir em pouco tempo esta diferença entre os mesmos súbditos, [e a] cegueira judaica, tudo para aumento da religião católica e utilidade do Estado”. In J. E. Franco & C. Fiolhais (dirs). Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa – Primeiros Textos sobre Igualdade e Dignidade Humanas (vol. 14) (361-395). Lisboa: Círculo de Leitores.

    VICK-D’AZIR, F. (1819). “‘Elogio do Doutor António Nunes Ribeiro Sanches’, composto em francês por… [1783], vertido em português, e dedicado à pátria, e aos portugueses, que têm em preço os que a honram, por Filinto Elísio”. In Obras Completas de Félix Vick d’Azir (t. IX) (1-53). Paris: Oficina de A. Bobée.

    Autor: Fernando Augusto Machado

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.