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  • Separação dos poderes [Dicionário Global]

    Separação dos poderes [Dicionário Global]

    Atualmente, a separação dos poderes constitui um importante vetor principiológico que apresenta duas dimensões essenciais: por um lado, uma dimensão negativa, a remeter expressamente para imperativos de “divisão”, “limite” e “controlo”, assim se estabelecendo uma medida jurídica ao poder do Estado; por outro lado, uma dimensão positiva, a implicar a ordenação e organização do poder estatal com vista à tomada de decisões funcionalmente eficazes e materialmente justas (CANOTILHO, 2003, 250).

    De um ponto de vista jurídico-normativo, a separação dos poderes tem sido qualificada de indispensável por diversas razões, incluindo: 1) trata-se de uma condição sem a qual não é possível pensar-se na efetiva moderação do poder do Estado, prevenindo-se os seus abusos e, desse modo, a tirania; 2) está hoje comprovado que os diferentes órgãos estatais são mais ou menos apropriados para o exercício de determinadas funções, tarefas e competências; 3) certas “alocações” de autoridade têm, pela racionalidade que lhes subjaz, o condão de incrementar a legitimidade de políticas e medidas jurídico-normativas que venham a ser adotadas pelos órgãos estatais (MARTINEZ, 2012, 548).

    Tal explica porque as várias Constituições modernas, ao ousar apresentar-se como estatuto jurídico do político (A. Castanheira Neves), não dispensam a consagração da separação dos poderes como um dos seus alicerces fundantes e norteadores – ou, se quisermos, uma das mais importantes e valiosas expressões do seu património genético.

     

    Breves notas sobre o percurso da separação dos poderes na História das Ideias

    De acordo com a doutrina, no quadro da herança civilizacional do “Ocidente”, os primeiros escritos sobre separação dos poderes foram produzidos ao longo dos séculos XVII e XVIII, designadamente como uma reação ao absolutismo régio e acompanhando o florescimento da filosofia política iluminista e liberal (MIRANDA, 2014, II, III, 384). Tal facto não nos deve fazer olvidar, porém, que já na Grécia e na Roma antigas eram identificáveis lampejos daquela ideia. Pensemos, por exemplo, na teoria da “constituição mista” ou do “governo misto”, que muito ficou a dever aos contributos, inter alia, de Aristóteles, Políbio e Cícero. Em todos estes casos, e não obstante eventuais desalinhamentos ou até mesmo divergências, ficou patente uma preocupação de equilíbrio ou balanceamento das várias classes sociais em termos de participação no exercício do poder político (PIÇARRA, 1989, 31-40).

    Não obstante, a ideia de separação dos poderes em sentido orgânico-funcional só surgiu na Inglaterra setecentista, num contexto de acirrada disputa entre a Coroa e o Parlamento (Lordes e Comuns). Para tal contribuiu, igualmente, a emergência do Rule of Law, expressão jurídico-política par excellence da resistência inglesa ao absolutismo régio que grassava pelo continente europeu, chegando mesmo a separação dos poderes a ser qualificada como um dos essentialia daquele. Neste cenário, destacaram-se os contributos de John Locke, mormente aqueles vertidos na sua obra Dois Tratados do Governo Civil (1689). Aí defendeu o filósofo que a cada órgão do Estado deve ser atribuído um poder ou função, sendo este um pressuposto essencial para a tutela dos valores primaciais da segurança, da propriedade e da liberdade. Assim, propôs o reconhecimento de um poder legislativo (incumbido de elaborar normas gerais e abstratas), de um poder executivo (a abranger, simultaneamente, a execução administrativa e judicial), de um poder federativo (encarregado dos aspetos relativos às relações internacionais e à segurança) e de uma prerrogativa real (responsável pela defesa do Estado em situações de excecionalidade ou de anormalidade). Sendo o legislador a expressão orgânica da vontade popular, John Locke defendeu a sua supremacia no interior do Estado, embora não deixando de reconhecer a importância do estabelecimento de limites internos ao seu poder (PIÇARRA, 1989, 78). Trata-se de uma referência muito incipiente – alguns dirão mesmo: efabulada ou forçada – a aquilo que, já no século XVIII, se transformou na doutrina da “balança dos poderes” (balance of powers) ou dos “pesos e contrapesos” (checks and balances), tão presente no pensamento de alguns Founding Fathers da Constituição norte-americana (pense-se, por exemplo, nas palavras de Madison em O Federalista n.º 51).

    Não obstante o que até aqui foi dito, a teorização iluminista e liberal da separação dos poderes tem sido maioritariamente imputada a Montesquieu, com particular destaque para a sua obra O Espírito das Leis (1748). Recuperando a ideia de que a preservação da liberdade sempre pressupõe “divisão”, “limite” e “controlo” do poder, o autor arrumou os poderes ou funções do Estado numa trilogia que se tornou clássica – poderes legislativo, executivo e judicial (RANGEL, 2023, 58). E refere: “tudo seria perdido se o mesmo homem, ou mesmo corpo dos notáveis, ou dos nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes” (Livro XI, Capítulo VI). É justo notar, no entanto, que Montesquieu não propôs uma separação absolutamente fixa, rígida e mecanicista daqueles três poderes ou funções, como tende a ser afirmado por alguma doutrina; antes tratou de arquitetar aquelas em profunda interação, em termos de dependência recíproca. Tal surge patente nas seguintes palavras da sua autoria: “para que ninguém possa abusar do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder limite o poder” (Livro IX, Capítulo IV). Consequentemente, a cada órgão do Estado deve ser atribuída uma faculté de statuer (isto é, o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que tenha sido ordenado por outro), mas também uma faculté d’empêcher (isto é, o direito de tornar nula ou anular uma resolução tomada por quem quer que seja). Um exemplo paradigmático desta última faculdade é a concessão de um poder de veto ao executivo sobre os atos emanados pelo legislativo. A conceção da separação dos poderes de Montesquieu – que Paulo Rangel qualifica de “hipóstase organizatória do ideal de constituição mista” (RANGEL, 2023, 57) – veio inspirar largamente os revolucionários norte-americanos e franceses, assim se transformando numa imagem de marca do constitucionalismo moderno.

    Dignos de menção são ainda os contributos de Jean-Jacques Rousseau, essencialmente plasmados na sua obra Do Contrato Social (1762), não obstante este tenha subscrito uma visão radicalmente monista do poder político do Estado, o que explica a sua tentação de reduzir a separação dos poderes a um instrumento de garantia da supremacia da lei, expressão normativa da vontade geral (Livro III, Capítulo I). Do mesmo modo, não esquecemos Immanuel Kant e a sua obra Metafísica dos Costumes (1797), na qual o autor afirma que qualquer Estado contém em si uma trias politica: o poder soberano, na pessoa do legislador; o poder executivo, na pessoa do governante, e submetido àquele primeiro; e o poder judicial, na pessoa do juiz, incumbido de atribuir a cada um aquilo que é seu de acordo com a lei. E acrescenta que todos estes poderes se apresentam como “proposições de um silogismo prático: a premissa maior, que contém a lei daquela vontade, a premissa menor, que contém o preceito de proceder em conformidade com a lei, i.e., o princípio de subsunção à lei, e a conclusão, que contém o veredicto judicial (a sentença) sobre o que é de Direito em cada caso (“A Doutrina do Direito”, 2.ª Parte, 1.ª Secção, § 46).

    Ao longo do século XX, a conceção iluminista e liberal da separação dos poderes conheceu importantes desenvolvimentos, mormente em razão do surgimento do designado “Estado Social” e, consequentemente, do alargamento das tarefas materiais dos órgãos estatais. Neste cenário, passou a privilegiar-se a repartição racionalizada das várias funções do Estado pelos seus diversos órgãos, não só tendo em conta os já mencionados critérios de “divisão”, “limite” e “controlo”, mas também de “eficiência” e “responsividade” (neste sentido, cf. NOVAIS, 2019, 39).

    Nos dias que correm, a separação dos poderes continua a apresentar-se como uma teoria não acabada, que se reinventa continuamente. Para tal contribuem as profundas transformações espoletadas pelos processos de globalização e de mundialização em curso, os desafios colocados pelo “tempo de crises” (Michel Serres) em que vivemos, os fenómenos que complexificam e enervam as relações entre Estado e sociedade, bem como as crescentes ineficiências ou inaptidões no exercício do poder (por vezes mesmo, a transformá-lo num autêntico fardo…). Independentemente de tudo isso, qualquer Estado que se pretenda afirmar como um verdadeiro Estado de Direito haverá de garantir uma separação dos poderes em termos que assegurem a organização ótima das funções estatais, o que pressupõe uma estrutura orgânica funcionalmente adequada, legitimação para a tomada de decisão e responsabilidade pelas decisões tomadas (PIÇARRA, 1989, 262).

    Aqui chegados, e antes de avançarmos, é interessante questionar o porquê de, ao longo dos tempos, existir um consenso praticamente generalizado quanto à correção da separação dos poderes à luz de uma tríade funcional: poderes ou funções legislativa, executiva e judicial/jurisdicional. Como bem refere Maria Lúcia Amaral, a explicação é fundamentalmente de índole histórico-empírica, ou seja, foi a própria “observação das coisas que permitiu que se concluísse que, fosse qual fosse o seu tempo e a sua circunstância concreta, qualquer sistema de organização estadual minimamente estruturado tenderia a agir, sempre, por intermédio de processos e formas que se viriam a reconduzir a uma das três ‘funções’ típicas atrás enunciadas” (AMARAL, 2021, 157). É certo que vários autores procuraram inovar e apresentar alternativas a esta construção, embora sem grande sucesso. No contexto da memória constitucional portuguesa, o caso mais influente foi o de Benjamin Constant, que defendeu a importância de um poder moderador (a par dos tradicionais poderes legislativo, executivo e judicial…), destinado à resolução neutra de conflitos e, assim, assegurando o funcionamento harmonioso da estrutura organizatória do Estado. Entre nós, um tal poder foi expressamente acolhido pela Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa de 1826: “O poder moderador é a chave de toda a organização política, e compete privativamente ao Rei, como Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos” (artigo 71.º). Apesar de os restantes textos constitucionais portugueses terem optado por não acolher um poder moderador, nem por isso a doutrina deixa de reconhecer que as competências exercidas pelo Presidente da República à luz da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 – desde logo, nas suas vestes de garante do regular funcionamento das instituições democráticas – são fortemente inspiradas pela construção teórica de B. Constant, chegando mesmo, segundo alguns, a devolvê-la à sua verdadeira origem (MOREIRA, 2021, 509-511).

    A separação dos poderes na CRP de 1976

    A separação dos poderes constitui um princípio histórico (Konrad Hesse), pelo que a forma como é concretizada não é a mesma em todos os sistemas jurídico-constitucionais, nem sequer daqueles com fortes laços culturais. Ao longo dos próximos parágrafos, será nossa preocupação analisar, ainda que perfunctoriamente, em que termos este vetor principiológico veio a ser acolhido pela CRP de 1976, considerando as idiossincrasias da memória e realidade portuguesas, bem como as exigências que estas colocam (MIRANDA, 2014, II, III, 397).

    Estabelece o n.º 1 do art. 111.º da CRP que “os órgãos de soberania devem observar a separação e interdependência estabelecidas na Constituição”. Desde logo, importa notar que, muito embora este preceito jurídico-constitucional se reporte exclusivamente aos “órgãos de soberania”, ele vale face a todas as estruturas decisórias públicas (OTERO, 2010, II, 11). Por outro lado, torna-se possível constatar que a separação dos poderes foi conformada constitucionalmente como um princípio jurídico-normativo autónomo de matriz organizacional. Segundo J. J. Gomes Canotilho, está em causa um princípio orgânico-institucionalmente referenciado e funcionalmente orientado (CANOTILHO, 2003, 557). Assim, nenhum órgão do Estado pode, por iniciativa própria, concentrar em si todo o poder correspondente a uma função estatal, nem invadir a esfera de autoridade que integre diferente função (OTERO, 2010, II, 11). Tal não significa, naturalmente, que toda e qualquer sobreposição das linhas divisórias das várias funções signifique, por si só, a violação deste vetor principiológico; ponto é que se mantenha intacto o “núcleo essencial” da ordenação constitucional de poderes. Pensemos, por exemplo, na admissibilidade de concessão de competências legislativas ao Governo (art. 198.º da CRP), desde que o exercício das mesmas respeite a esfera de competências reservadas à Assembleia da República (arts. 164.º e 165.º da CRP), órgão a quem cabe, por determinação constitucional, o exercício das competências legislativas ditas nucleares. Há mesmo quem, indo mais longe, afirme que “o referido ‘núcleo’ tem uma dimensão material que […] se impõe ao próprio poder constituinte quando este conforma a distribuição de competências pelos órgãos soberanos” (MORAIS, 2015, 55). Finalmente, a nossa lei fundamental aponta para uma ordenação de funções que se deve revelar controlante-cooperante, o que só será possível mediante a edificação de um complexo sistema de corresponsabilidades e interdependências (CANOTILHO & MOREIRA, 2014, II, 46). Várias e pertinentes razões justificam que assim seja: por um lado, a mera “divisão” do poder não impede que um certo órgão do Estado venha a abusar do poder que lhe foi conferido, exercendo-o de forma omnipotente, desproporcionada ou desrespeitosa; por outro lado, a articulação dos vários órgãos estatais no exercício das competências que lhe foram atribuídas para a prossecução de distintas tarefas imprime na sua atuação uma marca de maior eficiência, contribuindo para o bom funcionamento de todo o sistema político (MORAIS, 2015, 59-60).

    Por sua vez, o n.º 2 do art. 111.º da CRP – o qual estabelece que “nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei” – surge como um corolário lógico do princípio da separação dos poderes. Como bem notam Jorge Miranda e Rui Medeiros, “se fosse admitida sem limites de sujeitos, de conteúdo e de tempo, a delegação vulneraria a própria lógica interna do sistema” (MIRANDA & MEDEIROS, 2018, II, 287).

    Em suma, como bem mencionou o Tribunal Constitucional português no seu acórdão n.º 214/2011, de 29 de abril (relator: Vítor Gomes), entre nós, “o princípio da separação de poderes não cumpre apenas o papel, com que entrou na história do constitucionalismo, de repartição orgânico-funcional dos poderes do Estado com vista à proteção das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. Desempenha uma pluralidade de funções constitucionais: funções de medida, função de racionalização, função de controlo e função de proteção”. Se assim é, poderá inclusive fundamentar a inconstitucionalidade de toda e qualquer norma que puser em causa o arranjo jurídico-constitucional de competências, legitimação, responsabilidade e controlo (CANOTILHO & MOREIRA, 2014, II, 46).

    Aqui chegados, importa agora que nos debrucemos sobre o modo como este vetor principiológico é concretizado, em termos práticos, no quadro do nosso sistema jurídico-constitucional. Pela natureza deste escrito, não podemos ir além de brevíssimas considerações, acompanhadas da apresentação de alguns exemplos ilustrativos.

    A separação vertical dos poderes remete para a delimitação de funções, tarefas e competências, bem como das relações de controlo recíproco segundo critérios fundamentalmente territoriais. A estrutura unitária do Estado português (art. 6.º da CRP) não esvazia esta dimensão do seu relevo. Afinal de contas, entre nós, a unidade não surge acompanhada de unicidade, tendo-se procedido ao estabelecimento de graus diferenciados de descentralização adaptados às exigências específicas das diferentes parcelas do território nacional (AMARAL, 2021, 362 e 369). Basta atentar-se no estatuto constitucionalmente reconhecido às estruturas autónomas regionais (em consonância com um modelo de descentralização político-administrativa, nos termos do art. 225.º da CRP) e às estruturas autónomas locais (segundo um modelo de descentralização administrativa, em consonância com o disposto no art. 237.º da CRP).

    Impõe-se, igualmente, notar que o processo de integração europeia no qual Portugal tem participado e com o qual se comprometeu expressamente (art. 7.º, n.º 6, da CRP) tem vindo a enriquecer este princípio com novas facetas tão interessantes quanto desafiantes, mormente no plano jurídico-político. Tal deve-se, desde logo, às novas exigências de “partilha” do poder entre os órgãos estatais nacionais e as instituições, órgãos e organismos da União Europeia, bem como destas últimas entre si (MORAIS, 2015, 80-82). No primeiro caso, assumem particular relevância os princípios de repartição e exercício de competências (com destaque para os princípios das atribuições limitadas, da subsidiariedade e da proporcionalidade); no segundo caso, a própria União Europeia tem procurado desenvolver uma visão autónoma da separação dos poderes, a qual se tem manifestado sob a forma de um princípio de paridade institucional ou, se quisermos, de um princípio de igual dignidade e equilíbrio institucionais (DUARTE, 2021). Para garantir a sua observância, foram criados diversos mecanismos de controlo intra- e interorgânico, bem como meios processuais orientados para a defesa das prerrogativas das instituições, órgãos e organismos da União Europeia face a intromissões de outras.

    Por sua vez, a separação horizontal dos poderes refere-se “à diferenciação funcional (legislação, execução, jurisdição), à delimitação institucional de competências e às relações de controlo e interdependência recíproca entre os vários órgãos de soberania” (CANOTILHO, 2003, 556). Entre nós:

    i) A função legislativa é nuclearmente exercida pela Assembleia da República, não obstante as competências legislativas concedidas ao Governo e às Assembleias Legislativas Regionais;

    ii) A função executiva é nuclearmente exercida pelo Governo, sem prejuízo das competências concedidas ao Presidente da República, às autarquias e a outras entidades administrativas;

    iii) A função jurisdicional é exclusivamente exercida pelos tribunais, podendo falar-se de uma reserva de jurisdição que se encontra imune a derrogações (MIRANDA & MEDEIROS, 2018, II, 285).

    Por sua vez, o modo como estes vários órgãos do Estado se articulam e controlam reciprocamente depende da forma de governo adotada. No caso português, a doutrina divide-se entre a tese da forma de governo semipresidencial (NOVAIS, 2021, 183 e ss.) e a tese da forma de governo mista parlamentar-presidencial (CANOTILHO, 2003, 597 e ss.). Independentemente de tal querela, são múltiplos os esforços do nosso texto jurídico-constitucional para instituir e pôr em funcionamento um sistema de corresponsabilidades e interdependências. Só os tribunais – os quais têm de ser, por natureza, dotados de independência externa e interna (art. 203.º da CRP) – se mantêm à margem do referido sistema, o que não significa um qualquer enfraquecimento da vinculação dos mesmos ao princípio da separação dos poderes. Afinal, se só aos tribunais cabe dizer direito (rectius, todo o direito), também é bom que não se esqueça que os mesmos só dizem direito, não lhe cabendo criá-lo, o que implica a aversão a todo o tipo de ativismos judiciais que possam subverter a racionalidade intrínseca à própria ideia de separação dos poderes.

    Mas a CRP de 1976 não se ficou pela separação vertical e horizontal dos poderes. Num espírito de rejeição de toda e qualquer forma de concentração do poder e aspirando a prevenir a emergência de indesejáveis laços de dependência ou conflitos de interesses, consagrou a separação pessoal dos poderes, a qual se materializa através do instituto das incompatibilidades, proibindo o exercício simultâneo de dois ou mais cargos públicos por um mesmo sujeito. É o que acontece, por exemplo, quando se impede que uma mesma pessoa possa, simultaneamente, exercer funções como deputado e membro do Governo (art. 154.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, promovendo a renovação e revelando-se avessa à eternização do poder nas mãos de um indivíduo, o texto constitucional incorpora a separação temporal dos poderes, exigindo temporalidade de qualquer “cargo político” (extensível aos demais cargos públicos?), por oposição à vitaliciedade (art. 118.º da CRP). Por fim, acolhendo a separação dos poderes entre o Estado e outros titulares de poderes públicos não estaduais, a CRP alberga uma importante separação social dos poderes. É o que acontece, por exemplo, quando se reconhece às comissões de trabalhadores o direito de participar na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respetivo sector, nos termos do art. 54.º, n.º 5, alínea d), da CRP.

     

    Separação dos poderes e direitos fundamentais: uma aliança em prol do Estado de Direito Democrático

    Como já se viu, quer os direitos fundamentais quer a separação dos poderes se apresentam como ratio essendi de qualquer Constituição moderna. É assim desde as revoluções norte-americana e francesa, tendo feito história o famoso art. 16.º da Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789: “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. E note-se, a sua inscrição na lei fundamental automaticamente vincula todos os “poderes constituídos” (nomeadamente, os poderes legislativo, executivo e judicial) a respeitá-los, protegê-los e promovê-los, bem como a fiscalizar e controlar reciprocamente as ações e omissões dos demais (PIÇARRA, 1989, 196). No caso específico da CRP de 1976, tais vetores também limitam expressamente o exercício do poder constituinte derivado, isto é, o poder de rever o texto constitucional (veja-se o disposto no art. 288.º, alíneas d), e) e j), da CRP).

    E, note-se, não obstante todas as suas diferenças, jusfundamentalidade e separação dos poderes prosseguem um fim comum, o qual vai, de resto, ao encontro da intencionalidade específica de toda a juridicidade: a tutela da pessoa e do seu valor face a todas as formas de violência a que pode ser sujeita por parte do Estado e/ou de terceiros. Assim, se a jusfundamentalidade assume expressamente o desiderato de salvaguardar a dignidade humana e os bens jurídicos nos quais esta se expressa, já a separação dos poderes constitui nota identitária indispensável de uma qualquer forma de organização política que se pretenda efetivamente capaz de tutelar os direitos e liberdades, em respeito pelos valores fundantes da justiça e da participação democrática. Em última instância, podemos mesmo dizer que cada um destes vetores apresenta um relevantíssimo significado constitutivo, outorgando uma medida material (e não meramente orgânica, formal ou procedimental…) ao Estado de Direito Democrático.

    Por outro lado, é preciso rejeitar a ideia, reproduzida aqui e ali, de que a tutela dos direitos e liberdades fundamentais constitui uma tarefa exclusiva dos tribunais (EKINS, 2015, 220). Afinal, não se pode ignorar o importante papel jusfundamental desempenhado pelos restantes órgãos do Estado, dentro daquela que é a sua particular esfera funcional de ação. Pense-se, por exemplo, na Assembleia da República (sendo inclusive de notar a integração de importantes matérias jusfundamentais na sua esfera de competência exclusiva, quer sob reserva absoluta quer sob reserva relativa) ou dos vários órgãos que compõem a Administração Pública (tendo a CRP de 1976, no seu art. 266.º, tido o cuidado de sublinhar expressamente que a mesma visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos).

    Separação dos poderes e direitos humanos: algumas reflexões a partir do sistema europeu de tutela de direitos humanos

    Também no plano jurídico-internacional, nomeadamente no quadro do sistema regional europeu de tutela de direitos humanos, a ideia de separação dos poderes se tem cruzado com preceitos jusfundamentais, de que é caso paradigmático o direito a um processo equitativo, nomeadamente na parte em que exige que toda a pessoa possa ver a sua causa examinada por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou CEDH). E, note-se, tal como já afirmou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a independência do poder judicial deve ser aferida em relação ao executivo e ao legislativo, mas também face às partes e até a grupos de pressão (acórdão Philis c. Grécia, de 27 de junho de 1997, § 35); já a imparcialidade tem de ser apurada em termos subjetivos e objetivos (acórdão Piersack c. Bélgica, de 1 de outubro de 1982, § 30).

    Interessante é notar que, durante muito tempo, o TEDH foi tímido no reconhecimento da separação dos poderes como um princípio com relevância jurídica autónoma no quadro do designado “sistema da convenção”, quase sempre acabando por diluir o seu sentido e alcance no conceito de Estado de Direito (TSAMPI, 2022). Só com o seu acórdão Stafford c. Reino Unido, de 28 de maio de 2002, § 78, o Tribunal de Estrasburgo parece ter invertido esta tendência, admitindo expressamente a “crescente importância” do princípio da separação dos poderes na sua jurisprudência. Desde então, a mobilização deste vetor principiológico tem sido mais frequente, quer em casos relativos à repartição de funções e competências entre o executivo e o judicial, visando garantir a independência deste último (vide, por exemplo, o acórdão Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal, de 6 de novembro de 2018, § 196); quer em casos de repartição de funções e competências entre o legislativo e o judicial, com vista a salvaguardar a “autonomia parlamentar” (como ocorreu, por exemplo, no acórdão Karácsony e Outros c. Hungria, de 17 de maio de 2016, § 157). Atualmente, a determinação do âmbito de proteção do art. 6.º da CEDH parece não dispensar a mobilização cuidada da separação dos poderes, agora em pé de igualdade com o Estado de Direito (neste sentido, vide o Acórdão Guðmundur Andri Ástráðsson c. Islândia, de 1 de dezembro de 2020, § 233 e 246).

    Claro que ainda há espaço para desenvolvimentos futuros, o quais parecem estar a ser precipitados pela crescente erosão do Estado de Direito Democrático na arena europeia, tudo apontando para que a separação dos poderes comece a ganhar cada vez maior protagonismo na jurisprudência do Tribunal (como, de resto, tem ficado evidente com o “caso polaco”: acórdãos Reczkowicz c. Polónia, de 22 de julho de 2021, § 261; Dolińska-Ficek and Ozimek c. Polónia, de 8 de novembro de 2021, § 368; Advance Pharma sp. z o.o c. Polónia, de 3 de fevereiro de 2022, § 345; e Grzęda c. Polónia, de 15 de março de 2022, § 302).

    Uma última palavra para sublinhar que, independentemente de tudo o que foi dito, o sistema internacional e os sistemas regionais de tutela de direitos humanos têm sido alvo de críticas à luz da separação dos poderes. Neste contexto, por um lado, tem sido questionada a legitimidade democrática das organizações internacionais e supranacionais que se afiguram como seus principais protagonistas (pense-se no caso da Organização das Nações Unidas ou do Conselho da Europa); por outro lado, tem-se criticado a natureza vaga e incompleta das normas jusfundamentais por estas debatidas, projetadas e aprovadas, o que confere aos respetivos órgãos de fiscalização e garantia (comités e tribunais internacionais e supranacionais) uma muito ampla margem de decisão, permitindo-lhes inclusive assumir o papel de “legisladores disfarçados”, a pretexto do exercício de meros poderes interpretativo-hermenêuticos. Considere-se, por exemplo, a atitude tendencialmente ativista do TEDH quando, em situações atípicas, é chamado a delimitar o âmbito de proteção do art. 8.º da CEDH (EKINS, 2015, 224-228). Desafios estes que nos obrigarão a (re)pensar o caminho a ser trilhado pela separação dos poderes no plano transnacional, a fim de garantir simultaneamente a legitimidade democrática e a efetividade dos vários sistemas de tutela de direitos humanos (TAKATA, 2023, 1 e ss.).

    Bibliografia

    Impressa

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    Autor: Eduardo A. S. Figueiredo

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