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    Sindicalismo [Dicionário Global]

    Os sindicatos são a principal representação dos trabalhadores. Têm tido em todo o período contemporâneo um papel crucial na conquista da democracia e dos direitos humanos. Não só da aquisição de direitos laborais, mas também sociais, políticos e culturais. Não só para os seus membros, mas para o conjunto da sociedade. Mesmo quando parte da sociedade se opunha às suas lutas e aos seus métodos, usufruiu do seu contributo para a concretização dos direitos humanos. Um estudo pioneiro, realizado pelo Instituto para a Paz da Noruega, recolheu dados entre 1900 e 2006 sobre composição social dos movimentos democráticos no mundo, e conclui que o movimento operário organizado teve um papel essencial na conquista da democracia, na oposição aos regimes ditatoriais e na conquista e consolidação dos direitos humanos, com destaque para os direitos sociais e democráticos (DAHLUM et al., 2019). Entre os fatores realçados pelo estudo estão a capacidade de organização mais densa do movimento dos trabalhadores face às classes médias urbanas, e, entre as estruturas mais organizadas, destacam, os autores, os sindicatos.

    A resistência à mercantilização do trabalho (SUPIOT, 2005, 121-144) foi realizada também no seio dos sindicatos, colocando como central a luta contra a venda da força de trabalho, contra a transformação do homem em “mão de obra” e a reificação dos seres humanos, remunerados com valores de mera reprodução biológica, destituídos do seu ser integral, cultural e afetivo. No quadro da utopia dos direitos humanos (ALVES-JESUS, 2021, 23), o homo faber, porque é homo imaginosus (MANDEL, 2002) – sonha, pré-idealiza, projeta a transformação da sociedade, realizando-a; o trabalho, em particular o mundo do trabalho organizado, tem um carácter central na configuração das sociedades contemporâneas. Ao trabalho organizado em formações sindicais, mutualistas, cooperativas e outras organizações representativas dos trabalhadores (ORTs), devem as sociedades mais desenvolvidas não só a conquista das oito horas de trabalho, mas também o seu papel na obtenção do sufrágio universal, desde o cartismo inglês na década de 30 do século XIX, que marca o início da história do movimento operário (PELZ, 2016); a luta por salário igual para trabalho igual, mas também o direito de reunião e associação livre que os sectores liberais negaram nas revoluções burguesas de Oitocentos, com leis como a de Chapelier (1791), replicada em vários países – o direito dos seres humanos de se reunirem livremente foi um direito estendido a toda a sociedade, numa luta que partiu do movimento operário e sindical ao longo do século XIX; em países como Portugal, só foi, em parte, regulado no final do século XIX, depois da onda de greves pós-1870, e só será estipulado de forma amplamente democrática depois da Revolução dos Cravos em 1974-1975. A lei de 9 de maio de 1891 permite as Associações de Classe, consagrando o direito à livre associação de patrões e de empregados, mas impõe que os Estatutos sejam aprovados oficialmente, e proíbe as greves e a constituição de federações. Entre janeiro de 1892 e julho de 1933 estão registadas 1405 associações (1036 trabalhadores, 323 patronais 46 mistas, cf. TOMÉ, 2012). A esmagadora maioria das conquistas socais permaneceu à margem da legalidade, impostas pelas greves, porém. Os sindicatos tiveram ainda um papel fundamental na concretização da liberdade de imprensa. Irene Tomé regista para Portugal, entre 1834 e 1934, 1022 títulos de periódicos ligados ao movimento associativo de trabalhadores, se a eles anexámos a profusão de jornais clandestinos durante a ditadura até 1974 e a explosão editorial durante a revolução dos cravos, temos também um indicador importante do seu contributo para a liberdade de imprensa e educação, bem como para a constituição de uma esfera pública laica, moderna; devemos também aos sindicatos um contributo central contra o trabalho infantil, revindicação central no país na segunda metade do século XIX, e não podemos esquecer o seu papel, na história global, para a introdução de políticas sociais na Comuna de Paris, em 1871, na Alemanha bismarckiana, na Europa do pós-Primeira Grande Guerra; na educação/instrução (MARQUES & SERRÃO, 1991, 239) (no século XIX, em Portugal, 70% da população era analfabeta e as associações de trabalhadores criaram escolas ou formação para alfabetizar os sócios), na segurança social, no acesso à habitação, e no acesso universal à saúde na Europa do pós-Segunda Guerra Mundial e na Europa do Sul (Portugal, Espanha e Grécia), depois da Revolução dos Cravos (1974-1975) (VARELA, 2022).

    O sindicalismo moderno nasce em Inglaterra (HOBSBAWM, 2000). Nas suas origens estão as associações mutualistas e cooperativas, que tentaram recriar formas de cooperação depois do fim das corporações de ofício, características da Idade Média. Encontram-se de facto semelhanças entre os sindicatos e as associações mutualistas, como a necessidade de prover o auxílio no pagamento de funerais, amparo a viúvas, e em situação de acidentes e doenças. Mas não se devem ignorar as diferenças. Na Idade Média as corporações eram de artesãos: trabalho qualificado e de longa formação ao longo da vida, rígida hierarquia, inexistência de separação entre trabalho intelectual e manual, e o trabalho era permanente – o padrão era o trabalhador permanecer no ofício e na oficina ao longo de toda a vida, e a obra-prima, que é a primeira obra autónoma –, tinha sempre contido um cunho coletivo reconhecido. As associações mutualistas que se formam, consoante os países, nos finais do século XVIII e XIX, depois da abolição das corporações, tinham nos primórdios não só trabalhadores e aprendizes, mas também pequenos donos de oficinas. Paulatinamente irão sucumbir às pressões do mercado; muitos ofícios serão substituídos por trabalho parcelar nas fábricas; e também – fruto da luta política interna – vão sendo expulsos destas sociedades os patrões, ou eles mesmos se retiram, formando associações patronais (comerciais e industriais), que florescerão ao longo da consolidação do período contemporâneo, ficando só os trabalhadores como sócios. O mutualismo, tenhamos presente, não é específico da classe trabalhadora. Porém, teve nela uma expansão significativa – Van der Linden demonstra como a história dos socorros mútuos e as cooperativas de consumo e de produção (que, acrescentamos, em Portugal terão um papel importante em direitos como alimentação e habitação, no século XIX, mas também durante a Revolução dos Cravos em 1974-1975) são parte essencial das estratégias do proletariado, de ajuda mútua. A fundação de caixas mútuas pelos sindicatos é também uma forma de recrutar filiados (LINDEN, 2008).

    O trabalho, com o desenvolvimento do capitalismo, vai sendo cada vez mais parcializado e por isso desqualificado, individualizado; há separação cada vez mais estreita entre trabalho intelectual e manual, entra-se na era da divisão sociotécnica do trabalho – cabe ao trabalhador executar tarefas simples, o que permite que crianças muito pequenas e mulheres entrem nas fábricas para executar esses trabalhos, repetitivos, monótonos e alienantes, e ao mesmo tempo façam uma forte concorrência ao salários dos homens, ameaçados de desemprego cíclico (ENGELS, 2004). Os sindicatos já representam uma nova forma de trabalho que se torna dominante paulatinamente – o trabalho “livre”, assalariado, na maioria pouco qualificado. Em Portugal vão-se formando, ao longo do século XIX, associações de classe, que são os primeiros sindicatos em Portugal (TENGARRINHA, 2021), ganhando especial pujança reivindicativa no início da década de 1870, depois da Revolução de 1868 em Espanha, da Comuna de Paris em 1871 e da Fundação da Fraternidade Operária, inspirada na AIT, Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional, que tinha sido fundada em Londres em 1864.

    Na Primeira Internacional, na qual participaram dezenas de dirigentes internacionais, muitos deles envolvidos em associações sindicais ou de trabalhadores, foi defendida a “emancipação e independências femininas” e a necessidade (numa altura em que a política e o sindicalismo eram sobretudo de composição masculina) de organização dentro das organizações de trabalhadores das mulheres, para evitar que fossem usadas como mão de obra barata e concorrencial contra os homens, pela introdução de trabalho mais barato; proteção à maternidade; foram defendidos os fundos de greve e caixas de resistência, incluindo entre trabalhadores que ganham mais e com postos de trabalho mais regulares face aos trabalhadores à peça ou imigrantes; defendia-se mesmo fundos de greve internacionais – os trabalhadores dos países mais ricos deviam ajudar a financiar as greves do países mais pobres, para assim tender a equalizar o salários e evitar a concorrência introduzida pela divisão internacional do trabalho e pelas migrações – “no caso de uma categoria profissional particular não dispor dos meios para continuar a luta contra os seus exploradores, todos os órgãos executivos centrais das diferentes categorias profissionais de cada país devem reunir-se para prestar assistência mutua” (MUSTO, 2014, 164); a “redução uniforme das horas de trabalho na mesma profissão, a alocação do trabalho se faz equitativamente, e a concorrência entre os trabalhadores é eliminada”, tornando – um dos principais direitos humanos, o direito ao trabalho – “uma realidade” (MUSTO, 2014, 153); foi estipulada a luta contra o trabalho noturno; a educação livre e integral de todos; a oposição às guerras e a solidariedade internacional, incluindo greves contra as guerras.

    O nascimento da organização dos trabalhadores remonta sobretudo à primeira metade do século XIX (ANTUNES, 1980). É inicialmente espontâneo – é uma luta pela vida, em geral por condições mínimas de sobrevivência, para que “uma classe inteira de homens possa pensar, sentir e viver humanamente” (ENGELS, 2010, 247). A organização do movimento operário em correntes políticas – como o socialismo, o anarquismo, o reformismo, parte de uma construção política consciente e autónoma – não nasce mecanicamente da mera existência da fábrica ou empresa, da quantidade concentrada de trabalhadores, do seu lugar de habitação ou comunidade. A organização política brota de um ato voluntário externo ao movimento operário. Já o sindicalismo tem as suas origens na existência de trabalhadores, potenciado pela sua concentração, é uma luta económica de base espontânea no seio das fábricas contra a exploração (ANTUNES, 1980), que nasce concomitante à revolução industrial, em Inglaterra, França e EUA do final do século XVII e inícios do século XIX (PIQUERAS, 1995, 24). Os sindicatos não são apenas uma transformação de quantidade das associações mutualistas ou cooperativas em estruturas sindicais. São uma mudança de qualidade. O seu nascimento vem associado à paralisação do trabalho – a greve –, marcando a modernidade com a luta de classes. Não se tratava só de ajuda mútua, mas de luta coletiva, e evoluirá de sindicatos de ofícios e de artistas para grandes federações sindicais nacionais e internacionais (embora o tempo áureo do internacionalismo tenha sido entre o último quartel do século XIX e o primeiro quartel do século XX, tendo depois da Segunda Guerra o sindicalismo nacional prevalecido). Ainda que parte das lutas possa ter um cunho defensivo – conservando salários em épocas de altas de preços, tentando reduzir a jornada de trabalho, como no último quartel do século XIX em Portugal (obrigando ao descanso semanal obrigatório, em lutas a partir de 1891 e fixado na lei em 1907[1]), impedindo a concorrência (GEARY, 2010) entre trabalhadores (impondo limitações ao trabalho infantil, em 1891 pela primeira vez implementadas em Portugal, embora com escassa fiscalização) ou, resistindo a novos impostos que implicariam a expropriação dos camponeses e pequenos artesãos, como na Revolta da Janeirinha em Portugal em 1868 –, ou protagonizando lutas diretamente políticas, os sindicatos são um produto do capitalismo no século XIX, conservando alguns deles dimensões que recordam o mutualismo, mas distinguindo-se destas – sublinhamos – pela existência da greve ou ameaça de greve (LINDEN, 2008). Marcel van der Linden propõe uma tipologia de sindicatos tripartida:  aqueles cuja função principal é lutar pela greve (sindicalismo revolucionário); os sindicatos que não existem só para organizar greves, exemplo das associações de artesãos e dos sindicatos que apostam na negociação; e os sindicatos que nunca ou raramente organizam greves (“os sindicatos amarelos”) (LINDEN, 2008).

    Nesse movimento, muito desigual e combinado, ao longo de duzentos anos, os sindicatos tiveram um papel fundamental na conquista de direitos sociais, políticos e económicos, como foram também parte essencial da colaboração e estabilização das formas de dominação, que fizeram regredir esses direitos (BIHR, 1999). Foram parte da luta política revolucionária da viragem do século XIX para o século XX até à década de 30 do século XX, quando assumiram com sucesso a luta pelo sufrágio universal, direito de associação livre, e reunião; foram centrais para o curso da história quando foram esmagados pelas medidas bonapartistas/fascistas do século XX (anos 20 na Itália e 30 na Alemanha, Portugal, Espanha, Áustria, entre outros). No pós-Guerra, a partir de 1945-1947, nos países centrais, Europa e nos EUA, foram o alicerce do pacto social, no sul da Europa, e depois de 1975-1976 (VARELA, 2008), contribuindo para a restruturação produtiva da década de 70 até hoje, marcada pelo neocorporativismo, “cujo modelo clássico é o caso alemão” (ALVES, 2003, 15), em contrate com o sindicalismo independente do Estado, de ação direta, que marcou os séculos XIX e XX, até, genericamente, o pós-Segunda Guerra Mundial. Para o sociólogo Alan Bihr, este contraste está intimamente ligado às correntes políticas dominantes, o sindicalismo revolucionário, desde a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, em Inglaterra, até às primeiras décadas do século XX (sobretudo no sul da Europa e na América Latina, onde esta corrente perdurou até mais tarde), e a social democracia, cuja estratégia era “emancipar-se do capitalismo de Estado, emancipando o Estado do capitalismo” (BIHR, 1999, 98). O encontro, desde o século XIX até aos dias de hoje, entre as fórmulas políticas de clubes, sociedades secretas, jornais – protoformas de partidos políticos que representam camadas e classes da sociedade – e o movimento operário, estruturado em organizações de trabalhadores (sindicatos, comissões, entre outros), é um encontro desigual, tudo menos linear. Contar a sua história em separado, porém, é um artifício – a política foi sempre central para explicar a atuação dos sindicatos.  Colin Barker (2014), um dos mais notáveis historiadores dos movimentos sociais, recorda-nos como os estivadores da costa leste dos EUA tiveram um papel essencial na repressão nos EUA e na colaboração com o Estado no pós-Guerra, infiltrados por máfias, retratados no magistral filme Há Lodo no Cais; já os estivadores da costa oeste foram um centro de organização de lutas contra o macartismo, a guerra do Vietnam, fizeram boicotes de mercadorias contra o Apartheid na África do Sul e uma greve contra a invasão do Iraque. Nem a história é um contínuo, nem as organizações são estruturas estanques. Compreender a sua evolução, e a sua transformação, é compreender os avanços e os retrocessos sociais ao longo da história destas organizações. Fazê-lo é compreender como estas organizações, elas mesmas, ao moverem-se, mudaram a história que as mudou a elas também.

    Em 1822 haveria em Portugal 131 mil homens “fabricantes ou artistas”, entre eles 98.500 mestres, 24.500 oficiais e 8.000 aprendizes. Em 1814, havia em Portugal 511 fábricas (não distinguindo o inquérito à indústria fábrica de oficina, mas assinalando que mais de 200 estavam “decadentes”, cf. SILVA, 1998, 12). Em 1820 existiram em Portugal 1031 fábricas, segundo um relatório do governo. A primeira máquina a vapor terá sido em 1835. Em 1852 haveria em Portugal 70 máquinas a vapor com a força de 983 cavalos, “o que demonstra um fraquíssimo desenvolvimento industrial” (SILVA, 1998, 12). O salto parece dar-se com a Regeneração, na década de 50 do século XIX, ligado à exportação de capitais ingleses e europeus, que viviam a superacumulação decorrente da expansão da revolução industrial. Há uma expansão, algumas indústrias ganham paulatinamente cada vez mais força, como tabacos, têxteis e lanifícios. Porém, em 1881 – já em pleno capitalismo português – haveria na indústria uma força de 6972 cavalos, o que colocava Portugal entre os países mais atrasados da Europa. Trabalhavam na indústria 85 mil pessoas (embora subnotificados), e em 1907 calcula-se que havia 180 mil pessoas na população ativa no sector industrial, dos quais, 51,8% homens, 29,7% mulheres e 18,5% crianças.

    Revoltas camponesas, de fome, tinham tido lugar no Antigo Regime, mas agora um novo sujeito social, que surgia com timidez, aparece. Na década de 30 do século XIX, quando já Manchester e Liverpool, Londres, eram cidades operárias, Portugal tem a sua primeira participação operária com impacto político num levantamento popular revolucionário em 1936 – sendo o sector mais importante deste movimento político radical os arsenalistas do exército e da marinha de Lisboa –, que visava a vigência da progressista Constituição de 1822. Em 1839 surge a Associação dos Artistas Lisbonenses. Depois da década de 1850, crescem as associações de carácter sindical, que foram legalizadas, como vimos, no final do século.

    Um outro contributo fundamental para a dignidade da pessoa humana está no papel que estas associações tiveram na assistência dos despossuídos na viragem do século. Não eram só os longos e penosos horários de trabalho, o trabalho infantil e todo o rol que nos surge nas descrições típicas do início da revolução industrial, mas a própria noção de trabalho fixo era praticamente inexistente, a não ser entre aqueles que conservavam meios de produção, os artesãos. Era normal o trabalho à jorna, o trabalho ao domicílio, que dependia dos picos de produção, a paralisação de fábricas ou a redução de dias de produção e o salário dependente da produção, de acordo com ciclos económicos. Era ainda vulgar o salário à peça ou à tarefa. Malgrado, por exemplo, os programas de obras públicas – na conservação de estradas, trabalha-se em média 175 dias por ano (ANDRADE, 1997, 494) – como complemento “aos momentos de crise”, refere Conceição Andrade Martins, os efeitos do desemprego sentiam-se na miséria, doença e insalubridade das casas dos operários. O país era, é preciso recordá-lo, sobretudo rural, prevalecendo aí os mecanismos pré-capitalistas de reprodução social, baseados em solidariedades de família, aldeia. Sobretudo com incidência na prole, isto é, um grande número de filhos mantinha e assegurava a força de trabalho para o campo (ou saíam para emigrar), e um grande número de filhas assegurava a reprodução e sobrevivência da prole e manutenção (cuidado) dos velhos e doentes.

    Até 1945-1947 existiram na Europa uma série de formas de proteção social que, na transição do século XIX para o século XX, procuraram mitigar a pobreza das classes trabalhadoras. Não eram universais, isto é, para toda a população, são exemplos os seguros sociais na Alemanha de Bismarck, entre 1883 e 1889; um embrião de seguro nacional e pensão de reforma do governo liberal inglês da primeira década do século XX; os primeiros ministérios da saúde em França e Inglaterra depois da Primeira Guerra; e o próprio planeamento social do Estado Nazi, nos anos 30. Também em Portugal se desenham, com escasso cumprimento de facto, os primeiros seguros obrigatórios durante a República (1910-1926) (VARELA, 2013), resultado das greves durante o período republicano. E ainda seguros compulsórios de desemprego na Inglaterra em 1911, na Áustria em 1920, na Noruega em 1928.

    O ano de 1910, da revolução republicana em Portugal, abre uma situação pré-revolucionária em Portugal, com uma luta prolongada entre os sectores republicanos liberais e o movimento operário organizado por mais de uma década, e coincide com uma onda de greves à escala europeia, com destaque para Inglaterra (DARLINGTON, 2023), França e Alemanha (GEARY, 1991). As lutas sociais durante a República vão obrigar a legislar sobre temas fulcrais, como o descanso obrigatório, as 8 horas de trabalho (semana de 48 horas), e a proteção social – embora sem concretização prática. O direito à greve vai ser consagrado, mas permitir-se-á o lock-out patronal, e limitar-se-á o direito à greve de tal forma que será apelidado pelos trabalhadores de “decreto-burla”. Os sindicatos, durante o período republicano, em Portugal estavam divididos entre a CGT (Confederação Geral do Trabalho), fundada em 1919, anarcossindicalista, que agrupava a maioria destes; a Comissão Intersindical, ligada ao Partido Comunista, fundado em 1921 e à Internacional Sindical Vermelha (com ligações à URSS), e a Federação das Associações Operárias, ligadas ao frágil Partido Socialista, com escassa representação (OLIVEIRA, 2000, 432). Em 1926, um golpe de Estado dá início em Portugal àquela que viria a ser a mais longa ditadura da Europa Ocidental, a ditadura do Estado Novo, dirigida, a partir de 1932, por António de Oliveira Salazar e, no seu período final, entre 1968 e 1974, por Marcelo Caetano. Centenas de milhares de pessoas nasceram e morreram sem nunca ter vivido em liberdade em Portugal no século XX. A ditadura portuguesa, à semelhança das suas congéneres europeias, resulta da modernização burguesa dos estados atrasados (Portugal e Espanha) ou de unificação tardia (Itália e Alemanha). As classes dirigentes tiveram uma estratégia de desenvolver o capitalismo português, frágil na concorrência internacional, disciplinando o salário recorrendo à proibição de sindicatos e partidos políticos de trabalhadores, na metrópole, e ao trabalho forçado nas colónias. O seu partido de facto foi a Ação Católica, criada em 1932. Inserida no longo movimento de contrarrevolução que abalou a Europa na década de 30 do século XX, o Governo da ditadura declarou o trabalho central, proibindo os trabalhadores de lutarem por defender interesses seus – por lei, faziam parte de um “corpo” único, a nação, em que os interesses de patrões e trabalhadores coincidiam, organizados em sindicatos fascistas, grémios, Casas do Povo, o Estado Corporativo – estava proibida a luta de classes. Publicado em 1933, o Estatuto de Trabalho Nacional (SCHMITTER, 1999) – inspirado na Carta di Lavoro do líder italiano fascista Benedito Mussolini – estipulava uma República “orgânica e corporativa”, a nação, única, tinha um corpo, não tinha dois – patrões e operários. O ETN previa a reorganização sindical sobre os sindicatos, que, ou aceitavam as novas regras que lhes toldavam a liberdade – exigia homologação governativa dos dirigentes eleitos e proibia a filiação internacional –, ou perdiam os seus bens e poderiam ser dissolvidos.

    A ditadura proíbe de imediato a greve e o lock out. O decreto-lei n.º 23.203, de 6 de novembro de 1933, equipara assim a greve política e revolucionária à rebelião e coloca os grevistas sob a alçada de Tribunais Militares Especiais. Em resposta à lei que proíbe a greve e o lock out e determina o fim do sindicalismo livre – processo que em Portugal ficou conhecido por fascização dos sindicatos, que passam a ser controlados pelo Governo –, no dia 18 de janeiro de 1934 inicia-se uma tentativa de greve geral revolucionária, dirigida por anarquistas e comunistas, com expressão em Lisboa, Setúbal e Barreiro, que chegará a controlar uma pequena cidade onde a indústria vidreira tem grande importância, no centro do país, a Marinha Grande. O fracasso da greve implicará uma derrota séria do movimento operário português: 57 dos 150 presos na sequência da greve irão “inaugurar” o Campo de Concentração do Tarrafal, aberto em 1936 nas ilhas de Cabo Verde (ARRANJA, 2007). O Governo endurece as penas: as greves são distinguidas entre greve simples, política, revolucionária e de solidariedade e sujeitas a penas que vão desde um ano de prisão até dez anos de desterro nas colónias. Esta é a legislação que vigora em Portugal até à queda da ditadura em 1974, embora tenham existido, com algumas vitórias no campo dos direitos, greves em 1962 (FREIRE, 1996, I, 406), 1968 e a partir de 1970, que lograram direitos sociais para os trabalhadores agrícolas, e, durante um curto período depois de 1970, liberalizar a eleição sindical (PATRIARCA, 1999, 138).

    Todas as prestações sociais até à Segunda Grande Guerra eram – sublinhamos – focalizadas, não universais. Eram também reformas ad hoc, como recorda o historiador Tony Judt (2006). Ou seja, não eram planeadas a nível nacional como política pilar de Estado. Foi preciso, no fim da Segunda Guerra, com a derrota nazi realizada com os trabalhadores armados, a escassez real de força de trabalho pela mobilização para a guerra, e a própria devastação física de uma parte da população, para nascer um corpo de reformas inéditas. Estas configuravam, de forma diversa, consoante o país (no tipo de serviços prestados e origem das receitas), um conjunto amplo que garantia a proteção de quem trabalhava, desde a infância até à morte. O Estado, do berço à cova. Deixando para trás a dependência da família, a insegurança do desemprego, a mendigagem do assistencialismo arbitrário.

    Com exceção dos estados do sul da Europa (que esperará pela revolução portuguesa e a transição espanhola para ver o seu Estado Social nascer (1974-1978)), o Estado Social europeu abarcava educação, habitação, cuidados médicos, recreação e lazer urbanos, transportes públicos subsidiados, cultura e arte subsidiadas. O plano mais conhecido de “Estado Social” é o de um político conservador britânico, o barão William Beveridge, publicado em novembro de 1942 – “Report on Social Insurance and Allied Services”. Mas, com diferenças entre si, todos os planos sociais universais assentavam na ideia de redistribuição com taxação progressiva: quem ganha mais deve pagar mais.

    O 25 de Abril de 1974 – e o período revolucionário que se lhe seguiu, no qual o movimento dos trabalhadores foi central, entre eles grande parte dos sindicatos – configurou um quadro político de dualidade de poderes (VARELA, 2014) que impôs, antes mesmo de qualquer moldura legal, o quadro mais amplo de direitos humanos que o país viveu até aí, e que serão plasmados em parte depois na Constituição aprovada em 1976 – desde logo os direitos, liberdades e garantias, pela primeira vez expressos de forma igualitária, e tendo por inviolável a dignidade da pessoa humana; extensão dos direitos sociais à garantia do direito ao trabalho livre – pondo fim ao trabalho forçado nas colónias, que, pese embora as alterações legislativas de 1961, tinha perdurado aí, e às limitações ao direito de reunião e associação da ditadura (ANDERSON, 2021); independência e autodeterminação das ex-colónias portuguesas; fim da guerra colonial; direitos civis fundamentais, como o direito ao divórcio; igualdade entre homens e mulheres, incluindo salário igual para trabalho igual, e, como referimos, todo o quadro dos direitos que consagram o Estado Social – uma modernização atrasada, desigual, onde, ao longo da contemporaneidade os trabalhadores tiveram um papel central.

    A história do sindicalismo em Portugal nos últimos 50 anos seguiu um rumo muito semelhante ao do mundo ocidental – sindicatos livres (com pluralismo sindical, depois de um período durante a revolução de unicidade sindical); divisão em correntes, apoiadas pela social democracia (UGT – União Geral dos Trabalhadores) e pelos comunistas (CGTP – Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses), e uma corrente sindical de esquerda, minoritária, que perdurou até aos anos 80, e cuja derrota viu nascer o modelo neocorporativo, desde então dominante, de concertação social (STOLEROFF, 1988). No sul da Europa não há correntes sindicais fortes católicas, embora nos anos 60 tenham existido em Portugal, com um papel importante na luta por direitos. O sindicalismo vive no primeiro quartel do século XXI uma ampla crise de carácter global – menos de 10% dos trabalhadores à escala global estão hoje sindicalizados –, e em Portugal esse valor é de 18% no sector público e 9% no sector privado – era de 60% no início dos anos 80 do século XX.

    Paradoxalmente, ou não, Portugal segue o curso do projeto norueguês que citámos no início deste artigo – os trabalhadores, organizados, e neles também os sindicatos, tiveram um papel central na construção de uma moldura social, que, longe de estar concretizada e tendo sofrido abalos evidentes visíveis nos índices de pobreza crescentes (PEREIRINHA, 2020), desenhada no sentido de ampliar o espectro da autodeterminação.

    [1] “Com o decreto com força de lei de 7 de agosto de 1907, foi dada à estampa a primeira lei que versou sobre esta questão, no governo de João Franco. Tal evento não pode ser desconectado dos princípios orientadores do franquismo sendo um deles a aproximação ao operariado, num ensaio de socialismo de Estado, de pendor bis- marckiano. A proposta previa o descanso semanal dominical, de 24 horas consecutivas, em favor dos trabalhadores da indústria e do comércio e simultâneo para os trabalhadores de uma mesma empresa. Uma vez aprovado, o decreto de 7 de agosto de 1907, cuja matriz da proposta apresentada na Câmara dos Deputados se conservava praticamente na íntegra, alterou apenas um ponto: os governadores civis, uma vez ouvidas as associações de classe e as câmaras municipais, poderia fixar um dia alternativo ao domingo para descanso dos trabalhadores. O decreto determinava que não estavam obrigados ao descanso dominical, o pessoal das empresas de teatro e os acendedores de iluminação pública. “ (Leonardo Aboim Pires, In “Entre as cidades e as serras: o descanso semanal e a organização do trabalho nos primeiros anos do regime corporativo”, Da Escravidão ao Trabalho Digno: Nos 150 anos da abolição da escravidão em Portugal e nos 100 anos da criação da OIT em Portugal, GEP, MTSS, Cadernos Sociedade e Trabalho XXI, 2021, p. 87).

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    Autora: Raquel Varela

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