Socialismo [Dicionário Global]
Socialismo [Dicionário Global]
O socialismo surge na sociedade industrial como um impulso ético. Robert Owen (n. 1771 – m. 1858), um industrial britânico defensor das ideias de emancipação dos operários e de cooperação, foi o primeiro a utilizar o termo, num opúsculo de 1841, intitulado “What is socialism?”. Para Owen, seria necessário garantir “a harmonia entre a sociedade e a natureza” – designando como New Harmony a comunidade que fundou nos Estados Unidos da América. Perante as injustiças e os exemplos de desumanidade do início da industrialização, com o cortejo de violações dos mais elementares direitos humanos em relação ao fator trabalho – a exploração infantil nas minas, a degradação salarial, a ausência de apoios aos trabalhadores desempregados, a carência de seguros sociais, a falta de condições de higiene e de acompanhamento médico –, compreende-se que os primeiros projetos programáticos do socialismo tenham cabido às iniciativas voluntárias, ora de empresários (como Owen), ora de cooperadores (como os companheiros de Rochdale), ora de ativistas políticos (como os do movimento cartista, empenhado na organização dos trabalhadores e na conquista do sufrágio universal, ou da Sociedade Fabiana), ora de associações de classe (primeiros sindicatos e movimento trabalhista).
Depois do movimento ético-político, deparamo-nos com a organização “científica” do movimento. Claude de Saint-Simon (n. 1760 – m. 1825) analisou a sociedade segundo a distinção entre laboriosos e não laboriosos, propondo-se a reorganizá-la a partir de uma elite de sábios e da prioridade atribuída a critérios centrados nas ciências e tecnologias. Os engenheiros e os sociólogos seriam os agentes fundamentais de transformação da sociedade. Ferdinand de Lesseps (n. 1805 – m. 1894), o promotor da construção dos grandes canais (Suez e Panamá), e Augusto Comte (n. 1798 – m. 1857), cultor das novas ciências sociais e da Sociologia, foram discípulos de Saint-Simon. Se é certo que o “Novo Cristianismo” saint-simoniano está na encruzilhada entre o socialismo utópico e um novo socialismo de base científica, não é menos verdade que aí encontramos os ingredientes que vão estar presentes nas diversas leituras socialistas que encontramos ao longo do industrialismo ocidental.
O socialismo científico corresponde à tentativa de compreensão dos fenómenos sociais numa perspetiva de evolução necessária no sentido da justiça. Tratar-se-ia de utilizar os antagonismos que dominam as sociedades industriais para que as transformações se tornassem inevitáveis, atribuindo, progressivamente, às classes oprimidas a consciência de um papel histórico. O socialismo passou a contrapor-se, nessa lógica, ao capitalismo, enquanto sistema económico. Precederam-no outros “modos de produção”: o comunismo primitivo, o esclavagismo e o feudalismo. Segundo uma perspetiva determinista, o esclavagismo teria engendrado o feudalismo e o feudalismo teria originado o capitalismo. A história corresponderia, assim, a uma perpétua transformação das sociedades humanas, e a causa deste movimento perpétuo de emancipação seria o desenvolvimento da técnica dos instrumentos de produção. O Manifesto do Partido Comunista de 1848, redigido por Karl Marx (n. 1818 – m. 1883) e por Friedrich Engels (n. 1820 – m. 1895), põe a tónica nesta análise. Marx fora aluno de Direito da Universidade de Berlim, onde tivera como professor Hegel, que o influenciara decisivamente no uso do método dialético, tese-antítese-síntese, tendo ainda sido um leitor atento e admirador confesso de Saint-Simon, no tocante à distinção laboriosos/ociosos. Segundo os autores do Manifesto, os progressos técnicos pressionariam os movimentos sociais. E haveria uma incompatibilidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção e a forma capitalista da sua utilização. Nesta perspetiva, as contradições sociais e a luta de classes determinariam o fim do modo de produção capitalista, cabendo ao proletariado a função decisiva nessa transformação.
O socialismo, porém, não se resumiu a uma conceção científica e determinista. Sobretudo na Europa continental, os movimentos de trabalhadores, desde os fins do século XIX, foram profundamente influenciados por esta conceção científica, que se digladiou, por exemplo, com o pensamento libertário de P.-J. Proudhon (n. 1809 – m. 1865). Enquanto as circunstâncias históricas e o determinismo social eram decisivos para os discípulos de Marx (como Karl Kautsky [n. 1854 – m. 1938], para quem o fim do capitalismo seria o resultado inexorável do processo histórico e menos das intenções revolucionárias), a organização voluntária e mutualista dos oprimidos era o método fundamental para as conceções proudhonianas, segundo as quais a ideia de justiça implicaria a luta pela igualdade e contra as raízes da injustiça, como a propriedade (“A propriedade é o roubo”). Refira-se que Charles Fourier (n. 1772 – m. 1837) e Louis Blanc (n. 1811 – m. 1886) também defenderam conceções voluntaristas de emancipação, a partir da organização comunitária das sociedades (falanstérios) e da criação de ateliês sociais. O tema da propriedade privada, como fonte das desigualdades e injustiças sociais, era unificador da maior parte das correntes socialistas. Por exemplo, Bertrand Russel afirmava, com especial ênfase, que “o socialismo significa a propriedade comum da terra e do capital sob uma forma democrática de governo”.
Além das correntes utópicas e científicas, bem como dos movimentos associativos, trabalhistas e cooperativistas, o século XIX conheceu ainda a corrente intelectual designada como socialismo catedrático, que teve expressão e influência na universidade alemã, com autores como Karl Rodbertus (n. 1805 – m. 1875), Ferdinand Lassalle (n. 1825 – m. 1864) e Adolf Wagner (n. 1835 – m. 1917). Para estes, caberia ao Estado a iniciativa política e social, apoiando as medidas correspondentes a exigências sociais. As incapacidades do mercado exigiriam uma forte intervenção do Estado. O chanceler Bismarck fez-se rodear por diversos conselheiros integrantes dessa corrente. O lançamento das bases do Estado Providência e o início da consagração dos seguros sociais (sobretudo para profissões de risco) tem como origem o pensamento desses teóricos. A necessidade de um forte apoio dos trabalhadores não teria apenas como motivação objetivos políticos, mas também económicos, até porque, segundo a “lei de bronze dos salários” formulada por Lassalle, a retribuição dos trabalhadores não poderia descer de maneira duradoura abaixo do valor de subsistência, sob pena de a miséria conduzir à diminuição do número de operários, o que pressionaria o valor dos salários no sentido da sua subida.
As primeiras décadas do século XX viriam a dividir em duas águas as conceções do socialismo. A Revolução Russa de 1917 abriu caminho à experiência histórica da “ditadura do proletariado” – e ao debate teórico sobre se faria sentido uma experiência socialista num só país. Se o socialismo era um sistema económico que sucedia ao capitalismo, em obediência ao processo histórico, como poderia haver apenas uma “Ilha” seguindo um sistema diferente – sobretudo considerando o facto de a Rússia não ser um exemplo de maturação capitalista capaz de suscitar a ilustração do determinismo histórico? No início dos anos 20, esta experiência teve como consequência cisões no seio dos partidos da Associação Internacional dos Trabalhadores. Então, a União Soviética torna-se um fator de impulso coletivista. Assim, nasceram os partidos comunistas, na linha da experiência soviética e das conceções políticas de Lenine (n. 1870 – m. 1924), separando-se dos partidos socialistas e social-democratas, que se mantinham fiéis à lógica liberal e ao parlamentarismo no funcionamento das instituições políticas. O “modelo” soviético pressupunha a ação revolucionária e a organização de uma economia de direção central, baseada na existência de uma autoridade que decidia sobre a alocação de recursos, com vista à satisfação das necessidades coletivas. O dirigismo coletivista tinha, assim, raízes ideológicas no materialismo dialético e numa conceção de processo histórico que conduziria a uma sociedade terminal em que cada um receberia de acordo com as suas necessidades. O caso do operário das minas Alexei Stakhanov (n. 1906 – m. 1977), com maior produtividade, viria a pôr em causa, porém, a lógica igualitarista…
Para chegar a uma sociedade comunista haveria que organizar transitoriamente a “ditadura do proletariado”. A Nova Política Económica da União Soviética (1921-1927) procuraria dar espaço limitado ao sector privado, a fim de superar a contradição da ausência de uma economia industrial e de um sistema capitalista e a impossibilidade de funcionar o determinismo no sentido coletivista. A autoridade coordenadora (Gosplan) decidia sobre as principais atividades económicas. Os consumidores adquiriam os bens e os serviços que essa autoridade permitisse. Os produtores forneciam os bens e serviços, utilizando os fatores de produção, segundo o método da planificação. Os recursos eram, em regra, propriedade da autoridade coordenadora em nome da coletividade. Através da planificação, definiam-se os objetivos de produção e de consumo – numa lógica em que o Estado dirigia toda a economia e a organização da produção estaria nas mãos de funcionários e não de empresários, sendo a contratualização entre sujeitos económicos substituída por procedimentos administrativos que assegurariam a execução do plano, imperativo para toda a economia. O Estado era, assim, o principal proprietário de recursos e fatores de produção.
O socialismo reformista demarcar-se-ia destas conceções. Como diziam os membros da Sociedade Fabiana, fundada em 1883 por Edward R. Pease, entre os trabalhistas britânicos, seria “preciso reconstruir a sociedade de acordo com o mais alto ideal moral”, mas de um modo empírico. Foi esta ideia que animou os movimentos revisionistas. A evolução histórica encarregara-se de desmentir os postulados revolucionários, como os da pauperização crescente da classe operária ou o das contradições insanáveis do capitalismo. Edouard Bernstein (n. 1850 – m. 1932), testamenteiro de F. Engels, formulou a tese “revisionista”, refutando o materialismo dialético, em nome da liberdade individual e da utilidade marginal. Defendeu a participação operária e as reformas sociais alcançadas de modo voluntário e pacífico, por iniciativa dos movimentos sindical e cooperativo. Mais do que o objetivo da sociedade terminal reconciliada, interessava o movimento. “O movimento é tudo”. Para E. Bernstein, o voto democrático e livre permitiria obter reformas que, anteriormente, teriam exigido insurreições sangrentas. O sufrágio universal propiciaria, assim, a reforma gradual do capitalismo e a sua superação. Com Bernstein e as principais correntes reformistas, o socialismo perde o seu carácter de reivindicação de classe, para se tornar aspiração a um progresso gradual, fundado na solidariedade voluntária e no compromisso dos cidadãos.
Na Europa, quer o movimento trabalhista britânico, quer os partidos da social-democracia e do socialismo reformista do continente vieram a adotar este ponto de vista liberal e democrático, em virtude de as primeiras décadas do século XX terem posto problemas novos. No final dos anos 20, teve lugar uma profunda depressão económica. É nesse contexto que o belga Henri de Man (n. 1886 – m. 1953) proclama a necessidade de renovação do pensamento socialista, defendendo a urgência da aliança do operariado com as classes médias. Como consequência dessa posição, o pensador e ativista belga defende a introdução do planeamento económico nas economias capitalistas.
As experiências pioneiras de participação no governo de socialistas reformistas tiveram lugar na Alemanha (1918-1920) e na Grã-Bretanha (1924 e 1929-1931), ainda que sem resultados assinaláveis. A partir do começo dos anos 30, inicia-se a primeira experiência reformista moderna com êxito. O Partido Social-Democrata Sueco, que já nos anos 20 estivera no governo em minoria, sob a direção de Hjalmar Branting (n. 1860 – m. 1925), alcança a maioria e forma governo, presidido por Albin Hansson (n. 1885 – m. 1946). São lançadas as bases do Estado de Bem-Estar (Welfare State). Os direitos dos trabalhadores e a assistência social estão na primeira linha das preocupações dos governos suecos. O socialismo liberal e reformista vai assentar numa política de redistribuição de rendimentos, através do sistema fiscal progressivo e do intervencionismo do Estado, com planeamento indicativo para o setor privado e social. A igualdade de oportunidades entre os cidadãos e a correção das desigualdades tornam-se objetivos prioritários da política reformista, através de orçamentos cíclicos e de políticas ativas de emprego com prevenção das conjunturas depressivas. Nos Estados Unidos, a política de Franklin Delano Roosevelt do “New Deal” pôs em prática o intervencionismo público e as orientações económicas de John Maynard Keynes como forma de combater os efeitos da depressão através da procura efetiva global.
Depois da Segunda Guerra Mundial, deve salientar-se, especialmente, o sucesso trabalhista no Reino Unido, que levou o partido de Clement Attlee (n. 1883 – m. 1967) ao governo entre 1945 e 1951. “A nossa política será de inovação audaciosa com o objetivo, bem definido, de permitir o controlo pela comunidade dos recursos económicos da nação” — disse Attlee em 1945. A Segurança Social, o Serviço Nacional de Saúde, o Welfare State, as nacionalizações em nome do controlo do poder económico pelo poder político constituem as bases de uma economia mista. A influência dos relatórios de William Beveridge (n. 1879 – m. 1963), de 1942 e de 1944, sobre o Estado Social é decisiva, repercutindo-se na política dos vários governos europeus no pós-guerra e no conceito de “economia social de mercado”.
Na Alemanha, o Programa de Bad-Godesberg do Partido Social Democrata (SPD) de 1959 abriu caminho a uma viragem na orientação do socialismo reformista, definindo um projeto interclassista aberto a diversas influências e centrado numa atuação assente num compromisso entre a liberdade económica e a solidariedade social.
Fora do campo reformista, houve no regime soviético a tentativa de alargar a sua influência política à Europa: por ação da Internacional Comunista (Komintern) e pela existência de uma zona geográfica de influência na sequência da guerra. Depois de 1945, a Europa central e de leste sofre decisiva influência do modelo soviético, mercê do Pacto de Varsóvia (1955). Refira-se ainda o coletivismo chinês, no desenvolvimento da revolução de outubro de 1949, sob a direção de Mao Zedong (n. 1893 – m. 1976). Cite-se ainda a experiência jugoslava, sob a direção de Josip Broz Tito (n. 1892 – m. 1980), cedo demarcada do modelo soviético, centrada num modelo de autogestão, que pouco sobreviveu ao desaparecimento do seu fundador. Por fim, temos o caso cubano, cuja revolução foi lançada por Fidel de Castro (n. 1926 – m. 2016) e que procura manter fidelidade aos princípios do coletivismo.
Nas sociedades ocidentais, à crise do Estado Providência, diagnosticada por Jurgen Habermas ou Pierre Rosanvallon, e ao fim da Guerra Fria (1989) sucede, nos anos 90 do século XX, uma nova vaga de experiências do reformismo social-democrata e trabalhista. Anthony Giddens propõe a “Terceira Via”, por contraponto à nova direita e à velha esquerda, retomando algumas preocupações e propostas do socialismo liberal, de Carlo Rosselli (n. 1899 – m. 1937). Os valores do moderno socialismo reformista ligam-se ao combate às desigualdades, à proteção dos mais vulneráveis, à liberdade como autonomia, à inexistência de direitos sem responsabilidades, à ausência de autoridade sem democracia, bem como ao respeito pelas tradições sociais e pelos fatores de confiança e coesão social, atendendo ao conceito de capital social de Robert Putnam. Estes valores exigiriam um novo entendimento da igualdade como diferenciação positiva nas políticas sociais, designadamente para responder à crise do Estado de Bem-Estar – considerando o progressivo desequilíbrio entre o envelhecimento dos contribuintes e o aumento dos encargos dos serviços públicos. Para Monique Canto-Sperber, o socialismo moderno de pendor social-democrata surgiria como a consumação do liberalismo. Esta lógica social-liberal deve ligar o socialismo ético ao valor do pluralismo, constituindo o principal desafio atual da democracia e do Estado de direito. Estão em causa a defesa dos direitos humanos, da individualidade dos cidadãos; o primado da valorização e da qualificação das pessoas; a consagração de um Estado regulador; o respeito da subsidiariedade numa lógica local, nacional e supranacional (pensar global decidir local); a importância da participação da sociedade civil, avultando os temas dos objetivos de desenvolvimento sustentável, da transição digital, da justiça distributiva e da equidade intergeracional. Os valores do socialismo englobam hoje os direitos humanos, a equidade e a eficiência, a liberdade, a igualdade e a solidariedade, o desenvolvimento humano e a dignidade de todos. Não se trata de um qualquer determinismo, mas de um caminho gradual e pluralista. Daí a sua diversidade e complexidade.
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Autor: Guilherme d’Oliveira Martins