• PT
  • EN
  • Sociedade das Nações (ou Liga das Nações) [Dicionário Global]

    Sociedade das Nações (ou Liga das Nações) [Dicionário Global]

    Evolução da Sociedade das Nações

    A Sociedade das Nações (SdN), também denominada Liga das Nações, tornou realidade o pensamento filosófico (kantiano) ao poderem ser discutidos e mediados conflitos intraestatais valorizando e preservando a dignidade humana, pilar tão necessário a uma paz mundial duradoura (DIAS, 2004). Considerada a primeira organização com personalidade jurídica e de perfil supranacional, de vocação universal e global, a SdN emergiu do Tratado de Versailles, que pôs termo à Primeira Guerra Mundial.

    Fundada a 28 de abril de 1919, teve como metas, elevando a conciliação em lugar do confronto, a segurança dos seus Estados-Membros e a mediação de conflitos entre países, e seria o garante da execução do Tratado de Paz de Versailles, através do multilateralismo diplomático. Quarenta e dois Estados – dos quais Portugal fez parte – estiveram presentes na sua fundação. Contudo, não contou com a ratificação do Senado dos Estados Unidos da América – embora o então seu presidente, Woodrow Wilson, tenha sido um dos seus principais arquitetos –, da Alemanha e da União Soviética (EICHENGREEN, 2019).

    A sua ação ultrapassou a mediação de conflitos intraestatais. A ajuda financeira, a luta contra o comércio de drogas ilícitas e prostituição, a escravatura e o tráfico humano, foram flagelos com que teria de lutar, como também mediar os interesses coloniais de uma Europa imperialista e colonial. A sua ação apoiou-se em organismos técnicos, modelo inovador para a época, como também o foi o modelo público com que decorriam as suas reuniões, permitindo a presença da imprensa, contribuindo assim para o esclarecimento público das suas ações e decisões.

    Supervisionou o Tribunal Permanente da Justiça (Tribunal Internacional de Justiça), bem como outras comissões e agências, como a Comissão de Controlo de Armas de Fogo, a Organização de Saúde (futura Organização Mundial de Saúde), a Organização Internacional do Trabalho, a Comissão de Mandatos, o Secretariado Central Permanente para o Ópio, a Comissão para os Refugiados e a Comissão para a Escravatura. Após a dissolução da SdN, muitos destes organismos foram reorganizados e integrados na Organização das Nações Unidas (ONU), que herdou os objetivos da SdN, mas não os seus métodos.

    A SdN teria de lidar com o segundo maior flagelo bélico do século XX, espelhado nos dez milhões de mortos, nos vinte e um milhões de feridos, nos seis milhões de prisioneiros de guerra e nos cerca de dez milhões de refugiados na Europa, a par de um sem-número de apátridas, resultado da nova ordem geopolítica delineada no Tratado de Versailles (KEEGAN, 1998). A SdN não foi, no entanto, capaz de erradicar a guerra – causa próxima da sua dissolução e cuja última reunião teve lugar em Genebra em abril de 1946. O seu legado foi transferido para a ONU, também ela constituída para manter todas as gerações longe dos flagelos bélicos.

    As razões do fracasso da SdN poderão ser encontradas no próprio Tratado de Paz de Versailles (RAMOS, 2018), que permitiu que os interesses de algumas potências fossem colocados à frente dos interesses da comunidade, como defendido por Miyamoto (1997, 193), que afirma que os “Estados continuarão a agir egoisticamente na defesa de seus próprios interesses”. A SdN não foi capaz de travar a invasão da Macedónia por parte do Japão, embora a tenha declarado ilegal em 1933, o mesmo acontecendo com a Abissínia, invadida por Mussolini em 1937, e com o abandono da Alemanha com a chegada ao poder de Adolfo Hitler (1933). A expulsão da União Soviética (1939) contrariou a própria essência da SdN. Fracassada a “paz democrática” (DIAS, 2004), a segurança militar europeia viria a ser preconizada pela constituição da NATO (North Atlantic Treaty Organization), em 1949. A não representatividade gerada pela ausência de vários países e a ausência dos Estados Unidos ditaram o enfraquecimento gradual da Liga das Nações, considerada por alguns autores idealista ou mesmo utópica (BRANCO, 2016).

     

    Dignidade e o Pacto da Sociedade das Nações

    A Primeira Guerra Mundial provocou migrações de famílias e comunidades, voluntárias ou impostas, de forma a fugirem à fome e doença, causando um problema de índole internacional que urgia resolver, mas sem que a SdN os encarasse de uma forma sistemática, mas sim tentando encontrar soluções à medida que os problemas eram identificados.

    Diversas formas de refugiados foram experienciadas no pós-guerra: os da “guerra” e os da “paz” (CHAUDHURY & MORINEAU, 1999), e os apátridas, resultantes de uma nova definição geográfica, encontrada no Tratado de Versailles, onde as organizações humanitárias tiveram um papel preponderante. À Cruz Vermelha – organização idealizada por Henri Dunant com o objetivo de proporcionar ajuda humanitária às vítimas da guerra e violência –, a SdN dedicou o seu art. 25.º (MAZZUOLI, 2011).

    A liberdade e a igualdade humanas estão patentes em vários acordos e documentos, dos quais são incontornáveis a Magna Carta (1215), a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), onde é afirmado que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito”, definindo assim a dignidade como o pilar de todos os direitos da pessoa humana. Foram assim também encaradas pela SdN. Como meio de manutenção da paz, e espelhada no Pacto da Sociedade das Nações, embora emoldurada por uma política colonial que se vivia na Europa na década de 1920, a SdN considerava os povos colonizados incapazes de se governarem a si próprios, e recaía sobre os colonizadores, ou, como a SdN os apelidava, “administradores”, a “sagrada missão” de os civilizarem (art. 22.º). No entanto, proibia abusos sobre essas populações, tais como o tráfico de escravos, o comércio e o consumo de álcool e o manuseamento de armamento, mas dando liberdade de pensamento e religião sem que estas pudessem ser instruídas militarmente. Referem-se assim a povos cuja inclusão nas sociedades ocidentais era bastante débil, sendo a ação dos colonizadores controlada pela SDN através de relatórios anuais obrigatórios enviados ao Conselho da SdN para posterior análise.

    É bem explícita, no mesmo Pacto, a preocupação com um trabalho digno de “homens, mulheres e crianças”, o que revela uma preocupação pelas condições laborais e de sobrevivência individual, como a equidade de género, numa sociedade onde, antes da Primeira Guerra Mundial, as mulheres não participavam na vida ativa, porém, o Pacto não bane ou condena o trabalho infantil (art. 23.º).

    O discurso humanista, no qual a dignidade, a nobreza e a amizade substituíram o orgulho e o uso da força, foi interpretado por muitos como um sinal de fragilidade da SdN. No entanto, programas como o intercâmbio estudantil foram tidos como um modo de inclusão na multiculturalidade, ainda hoje espelhado no programa de mobilidade Erasmus (SCAGLIA, 2019).

     

    Portugal e a Sociedade das Nações

    A Conferência de Paz de Paris (1919) não contou com a presença dos derrotados da Primeira Grande Guerra (Alemanha, Áustria e Turquia), nem com a União Soviética, que se via a braços com uma guerra civil. Os vencedores, desde logo, foram considerados grandes potências, no entanto, Portugal, bem como outros pequenos países, teve um papel modesto na construção dos acordos multilaterais que procuravam a paz global (SARAIVA, 2015).

    O ambiente de instabilidade política, social e económica vivido na Primeira República portuguesa e a dependência económica da Grã-Bretanha, aliados à preocupação territorial, eram fatores que enfraqueciam Portugal no espectro de uma Europa do pós-guerra. Foi Egas Moniz (1874-1955) quem liderou a primeira Delegação Portuguesa à Conferência de Paz, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros (do governo liderado por Sidónio Pais). Médico, cientista, ensaísta e político, tinha uma noção clara da importância das redes internacionais no sucesso pessoal e nacional e sabia como delas tirar dividendos (CORREIA, 2004). Viria a ser substituído por Afonso Costa (carismático republicano e presidente do 5.º Governo da República Portuguesa), mas sem que o aumento de protagonismo de Portugal tivesse sido incrementado.

    A esperança depositada na SdN para a atenuação dos problemas económicos e políticos vividos por Portugal não veio a acontecer (MENEZES, 2008). O desejo da manutenção, e do eventual aumento, do domínio colonial era de primordial importância, e tão pouco se conseguiu mover as influências necessárias para que tivesse assento no Conselho Executivo da SdN. Os esforços dos portugueses para integrarem aquele órgão, com o argumento de que Portugal seria o maior entre as mais pequenas potências, não foram bem-sucedidos, sendo o lugar atribuído a Espanha (país neutral na Primeira Guerra), credor das potências vencedoras, causando forte indignação no panorama político nacional (SARAIVA, 2015).

    A SdN viria a cruzar três épocas políticas portuguesas: a Primeira República, a Ditadura Militar e o Estado Novo. As políticas salazaristas da década de 1930 opunham-se ao multilateralismo europeu, apoiando-se no reforço das alianças unilaterais com a Inglaterra, talvez por se identificar com a potência imperial que a Grã-Bretanha se considerava (PORTAL DIPLOMÁTICO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, s.d.).

    Dignidade na diferença racial

    É pouco estudada a participação de soldados negros na Primeira Guerra Mundial, e tão pouco na SdN. De forma a que a democracia fosse mantida, os Estados Unidos colocaram-se ao lado dos Aliados. A necessidade de recrutamento de jovem militares para incorporar o Exército norte-americano, e lograda a adesão voluntária, levou à obrigatoriedade do serviço militar nos Estados Unidos e, com ela, à mobilização de soldados negros. Se, por um lado, estes eram discriminados e humilhados pelo restante Exército, a sua integração tornou possível a emersão de um sentimento de igualdade de direitos, defendida pela Constituição norte-americana, mas praticada em espaços distintos da comunidade branca (Apartheid) – “separados, mas iguais” (SAINTOURENS, 2018). Reconhecidos os seus atos de bravura, ao lado do Exército francês, Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, viria a condecorar, em 2015, um soldado afro-americano e um judeu (postumamente), simbolizando também o reconhecimento do papel dos soldados negros, à época tratados de modo bastante desigual face ao restante Exército (SAINTOURENS, 2018).

    Para os defensores de então da igualdade racial, de que é exemplo incontornável William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), a participação de etnias não brancas na Primeira Guerra Mundial poderia constituir uma oportunidade de grande importância para o reconhecimento da igualdade, pois várias raças combatiam no seio dos Aliados. No entanto, no caso do Japão, como defensor da “igualdade racial” no pós-guerra, foi entendido como uma pertença forma de aceitação dos seus emigrantes numa europa global.

    Notas finais

    O multilateralismo que consubstanciou a SdN e a influência do seu ideólogo, Wilson, tiveram um papel primordial na ordem política e geográfica mundial do pós-Grande Guerra. A necessidade de formação e educação das populações era um fator decisivo para a estabilização de uma paz democrática, como defendia o 28.º presidente dos Estados Unidos. A interculturalidade fomentada pela SdN era, como hoje, espelhada em programas de mobilidade estudantil, dos quais, em pleno século XXI, o programa de mobilidade Erasmus contribui para igual objetivo, mas também em acordos interuniversidades objetivando o desenvolvimento e a união de esforços na resolução de questões que afetam globalmente o nosso planeta.

    Importa salientar que todos os documentos da SdN, através do Total Digital Access to the League of Nations Archives ProjectLONTAD, se encontram digitalizados e são passíveis de ser consultados publicamente (TEXIERA, 2021).

    Não obstante o fracasso da SdN em evitar uma Segunda Guerra Mundial, é inegável o conteúdo inovador e multilateral que lhe está subjacente, seja no apoio prestado ao combate à pandemia de COVID-19, seja nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis preconizados pela ONU, entre outras medidas promotoras da igualdade entre cidadãos, povos e gerações, e em harmonia com o ambiente.

    Bibliografia

    Impressa

    BRANCO, C. et al. (coords.) (2016). Incursões na Teoria da Resolução de Conflitos. Lisboa: Observare/ Universidade Autónoma de Lisboa.

    CHAUDHURY, S. & MORINEAU, M. (1999) Companies and Trade Europe and Asia in the Early Modern Era. London/New York: Cambridge University Press.

    CORREIA, M. (2004). “O político na sombra do cientista. Considerações acerca da importância e do alcance de dois enigmas monizianos – O ‘periférico’ e o ‘político’”. Vértice, nova série, 119, 57-74.

    DIAS, M. (2004). “Uma visão intempestiva – Woodrow Wilson e a irresistível tentação da paz democrática”. Relações Internacionais, 4, 33-44.

    KEEGAN, J. (1998). A Primeira Guerra Mundial. Porto: Porto Editora.

    MAZZUOLI, V. de O. (2015). Curso de Direito Internacional Público (9.ª ed.). Lisboa: Revista dos Tribunais.

    MIYAMOTO, S. (1997). Globalização e Segurança. Parcerias Estratégicas, 1 (4), 179-196.

    RAMOS, J. (2018). A Evolução das Relações Internacionais de 1918 a 1945 e a Sua Importância para o Actual Quadro Geopolítico Mundial – Do Estatuto Jurídico da SDN ao da Actual ONU. Dissertação de Mestrado. Universidade de Lisboa.

    SAINTOURENS, T. (2018). Soldados do Jazz: Os Heróis Negros do Harlem na Primeira Guerra Mundial. S.l.: Vestígio.

    SARAIVA, M. F. (2015). Portugal e a Sociedade das Nações: O Papel do Multilateralismo na Política Externa Portuguesa. In A. Pires et al. (eds.). Uma Pequena Potência É Uma Potência? O Papel e a Resiliência das Pequenas e Médias Potências na Grande Guerra de 1914-1918 (9-24). Lisboa: Instituto de Defesa Nacional.

    SCAGLIA, I. (2019). “Managing Emotions at the League of Nations”. In I. Scaglia (ed.). The Emotions of Internationalism: Feeling International Cooperation in the Alps in the Interwar Period (51-70). Oxford: Oxford University Press.

    TEXIER, B. (2021). “Société des Nations: Un patrimoine bientôt en ligne”. Archimag, 341, 17-27.

    Digital

    EICHENGREEN, B. (2019). “Versailles: The Economic Legacy”. International Affairs, 95 (1), 7-24. https://doi.org/10.1093/ia/iiy241 (acedido a 19.08.2022).

    MENEZES, F. (2008). “O Tratado de Versalhes (1919)”. Janus, https://www.janusonline.pt/arquivo/2008/2008_2_7.html (acedido a 19.08.2022).

    PORTAL DIPLOMÁTICO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS (s.d.). “Sociedade das Nações”,  https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/relacoesbilaterais/paises-geral/sociedade-das-nacoes  (acedido a 19.08.2022).

    Autor: Carlos Augusto Castanheira

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.