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    Spinoza, Bento [Dicionário Global]

    Bento de Spinoza (1632-1677) é um dos mais importantes e idiossincráticos pensadores da História da Filosofia europeia, figura fontal e totémica do chamado Iluminismo Radical. Judeu de ascendência portuguesa nascido em Amesterdão, acabou expulso da comunidade sefardita local em 1656, pelas “horrendas heregias que praticaua & ensinaua” (DIAS & TAK, 1982, 164). Pioneiro da crítica bíblica e expoente inultrapassável do racionalismo da primeira modernidade, o seu sistema filosófico encontra a sua expressão mais articulada na Ética, postumamente editada. Exemplo clássico desse personagem, à época, inconcebível, o “ateu virtuoso”, é difícil subestimar a sua vigorosa, continuada, influência, que se estende, pujante, até ao presente – e isto não obstante a sua obra ter sido logo objeto de universal condenação pelas autoridades seculares e eclesiásticas, católicas e protestantes. Não espanta que os estudos de receção de Spinoza tenham já alcançado dignidade epistemológica própria.

    A sua tese de que “cada um tem tanto direito quanto a sua potência vale” (TP 2.8/279) – a entender no quadro do sistema, mas que nem por via dessa necessária contextualização perde o que quer que seja da sua indomesticabilidade (vide CURLEY, 1996, 318-322, 335) – torna-o, à partida, uma figura duvidosa, até malquista, para quem queira pensar filosoficamente os direitos humanos. Do ponto de vista histórico, porém, é indiscutível o contributo do seu mais celebrado e, à época, aviltado texto, o Tratado Teológico-Político, uma resoluta apologia da “liberdade de filosofar” (vide o subtítulo da obra), para o reconhecimento do inalienável direito de cada ser humano a pensar pela sua cabeça e expressar publicamente as suas opiniões (vide Declaração Universal dos Direitos Humanos, arts. 18 e 19). Por razões de espaço, é neste ponto que aqui nos focaremos, expondo de forma ordenada os argumentos apresentados no capítulo xx do Tratado, o último, programaticamente intitulado “mostra-se que é lícito a cada um, numa república livre, pensar o que lhe aprouver e dizer isso que pensa”.

    Argumentos pela negativa em favor das liberdades de pensamento e de expressão

    Spinoza condena enfaticamente a repressão, por parte das autoridades, de determinadas opiniões (privilegiadamente, mas não exclusivamente, em matéria religiosa), defendendo que o esforço posto na supressão destas é (i) vão, (ii) contraproducente e (iii) irracional. Ainda que o não fosse, do hipotético sucesso dessa campanha censória adviria um estado de coisas sumamente (iv) indesejável.

    i) É a tentativa de sufocar a diversidade de opiniões porque é impossível (atente-se no uso insistente deste adjetivo, ou locuções semanticamente equivalentes, neste capítulo derradeiro do TTP) ao sujeito abdicar, em favor do soberano, da sua faculdade de ajuizar acerca do que quer que seja (632, 7-9/239; 634, 14-16/240, 634, 28-30/240; 638.3-5/241). Também o poder, em todo o caso, não tem como reprimir esta inalienável liberdade de pensamento (642.22/243; 650.17/246), o que não quer dizer que não consiga eventualmente alcançar, por um conjunto de meios como g. a propaganda um domínio razoavelmente eficaz sobre as consciências (632.17-634.1/239).

    O pensamento tende irresistivelmente a comunicar-se (vide o “consequenter” em 638.7/241), o que significa que, contra o que parece sugerir o incipit do capítulo que aqui nos ocupa, não é particularmente fácil controlar a língua das pessoas: até os mais sabidos (peritissimi) não deixarão de partilhar com outros as suas ideias (636.3-4/240), mesmo que estas tenham sido objeto de censura oficial. Estamos, de facto, perante uma inclinação universal (vide o “commune” em 636.5/240). Atendendo, pois, a esta propensão e ao facto de não ser possível “todos serem de um mesmo sentir e falarem a uma voz só” (638.1/241; cf. 648.13/245) (ênfase na copulativa, que carrega, como se viu, um sentido causal), não há como sonegar aos súbditos/cidadãos a liberdade de pensamento e de expressão (636.12/240; 650.18-9/246) – pelo menos completamente (vide infra) –, bem como a concomitante liberdade de ensinar (636.7/240; 638.21/241). Todas as leis nesse sentido são “completamente inúteis” (644.21/244; cf 646.13/244; 650.28-9/247): os que professem as opiniões proibidas não deixarão de as ter por verdadeiras e, por isso, pela irredimível urgência em as comunicar – urgência que radica na arquitetura afetiva dos humanos (vide E 3p31c) –, não poderão senão violá-las.

    ii) Tais leis são não apenas vãs como contraproducentes: “quanto maior o empenho em privar os seres humanos da liberdade de falar, tanto maior a pertinácia com que eles resistem” (644.4-5/243). De facto, estes, “na sua maioria, são constituídos de tal modo que nada suportam com mais impaciência do que o serem tidas por criminosas as opiniões que creem verdadeiras” (644.9-11/244). Que estas sejam ilegalizadas não suscita, porém, em todos um ressentimento indomesticável, como já o cauteloso “na sua maioria” (plerumque) indiciava; na verdade, quem mais agudamente sofre com tais atentados à liberdade de pensar e partilhar o que se pensa são as pessoas “livres” (ingenui: 18/244; 646.15/245) e “probas” (honesti: 644.19/244; 646.17, 24/245), de “boa educação”, “integridade de costumes” e “virtude” (644.8-9/244). São estas, não as outras, as que só cuidam de ter a arca e o ventre cheios (vide 644.5-8/243-244), que as leis aqui sob crítica atingem, pois são os livres, e só estes (646.13-14/244), não os “impotentes de ânimo” (644.6/243), quem as desrespeita: irritados por elas (644.19/244; 650.8/246), enveredam por um caminho moralmente dúbio, revoltando-se (644.13–15/244).

    Escrevemos “moralmente dúbio” porque, famosamente, Spinoza entende que há que obedecer ao soberano em todas as ocasiões (vide e.g. 616/33-34/233; leia-se LOUREIRO, 2022, para uma modalização do imperativo à luz dos considerandos desenvolvidos no penúltimo parágrafo). É legítimo, pois, que nos interroguemos acerca de até que ponto é que estes ingenui rebeldes são de identificar com o homo liber bosquejado na Ética (suspeitamos que a resposta há de passar por uma dilucidação da força exata do comparativo liberiores em 644.9/244). Em todo o caso, como quer que os situemos face ao “modelo da natureza humana” (E 4pref.) proposto na obra capital do filósofo, as palavras e até o argumento de Spinoza neste capítulo último do TTP obrigam-nos a encará-los positivamente. O espetáculo da sua execução, rectius “martírio” (652.6/247), desperta, compreensivelmente, a admiração dos demais honesti, instigando-os a emular os condenados (648.1-2/245). Os instrumentos legais e penais adotados para uniformizar violentamente as opiniões acabam afinal por, paradoxalmente, fortalecer, na sua determinação e ousadia, os dissidentes.

    iii) Para além de contraproducente, a repressão das opiniões é também uma política pouco avisada, irracional até (vide 634, 22/240), na medida em que põe em perigo o poder. Efetivamente, a perseguição dos dissidentes indispõe os bons contra as autoridades e, mais do que gerar medo, convida à vingança (652, 7-8/247), logo à fação, à revolta, com evidentes riscos para o Estado (634, 23-24/240; 644.19/244). Se o Estado mais violento é o que nega a liberdade de expressão aos seus cidadãos (596.6-8/225; 636.6-7/240; cf. 634.21/240 e o incipit do capítulo), ele será também, consequência disso mesmo, o mais periclitante, pondo imprudentemente em questão a sua continuidade no tempo (516.29-30/194). As leis pelas quais se procura reprimir a expressão de ideias proibidas são, pois, aborrecidamente inúteis (cf. 634.20/240); a liberdade de expressão terá os seus inconvenientes (642.13-28/243), mas são contornáveis (650.25-26/246).

    A imposição pela força de uma qualquer opinião e, muito particularmente, de uma opinião religiosa debilita o Estado não apenas porque hostiliza perigosamente os perseguidos, mas também porque reforça, na sua presunção, aqueles que gozam da proteção dos magistrados, conferindo-lhes um malsão ascendente sobre estes, que ficam assim cerceados no seu espaço de manobra político (644.23-26/244). A própria expectativa de poder conquistar a proteção das autoridades acicata até ao cisma as tensões entre os teólogos (644.28-646.4/244); a experiência mostra que, se as autoridades se abrem a tomar partido neste tipo de disputas, acabam a ceder a multidões enraivecidas (646.4-11, 12/244; 652.10/247) manipuladas por líderes que aspiram a deter, indiretamente (652.9-16/247; cf. 640.31-642.2/242), o poder (650.11/246). Sob pena, pois, de se fragilizar gratuitamente, o soberano tem de conceder aos súbditos liberdade para expressarem, sem medo, as suas ideias (648.3-5/245); abolir uma tal liberdade é que constituiria um perigo para a paz civil (650.29-652.3/247; cf. 648.21-22/245).

    iv) Fazê-lo teria ainda uma outra consequência maximamente indesejável, potencialmente fatal, também ela, para o Estado (se, de facto, o seria ou não, depende do peso que dermos àquele apprime em 642.34/243; uma ponderação cautelosa da questão está para lá do âmbito da presente entrada): o convite à adoção, por parte dos governados, de uma atitude dúplice. Aí onde não há liberdade de expressão, impera a “adulação”, a “má fé” (no latim, perfidia, a entender como o oposto da fides apontada como fundamental para a saúde da comunidade política no passo acima mencionado) (644.1/243) e o “lambe-botismo” (assentio) (648.3/245); daqui os “dolos” e a “decadência [corruptio] de todas as boas práticas (artium)” (644.2/243) (vide também 652.8-9/247). (Seria interessante perceber melhor até que ponto este argumento, que pressupõe a vantagem – se é que não a necessidade –, para a república, de um corpo cidadão eticamente vertical, quadra bem com o espírito realista das exigências adultas que Spinoza coloca à Filosofia Política no Tratado Político em 1.6/275.)

    Não só o respaldo, pelas autoridades, de uma qualquer opinião favorece os maus caracteres (e não apenas no sentido acabado de expor, mas também no já anteriormente denunciado, de conferir poder aos ambiciosos e manipuladores), como priva a comunidade dos bons (a liberdade de pensamento é explicitamente considerada uma “virtude” em 642.21-22/243), dos “honestos” que “não sabem dissimular” (646.17/245). Quem nisso tem interesse não é, evidentemente, o Estado, mas antes “os supersticiosos e ambiciosos que não conseguem suportar/tolerar [ferre] os livres [ingenuos]” (640.31-2/242). Spinoza tem aqui em mente os teólogos e, de uma maneira mais geral, os líderes religiosos, com quem se sabe envolvido numa luta que não desmerece o qualificativo de existencial (mesmo se é improvável que o atentado contra a sua vida, a ter ocorrido, tenha sido motivado pelas suas opiniões desviantes: vide NADLER, 2019). O Tratado é escrito, ao menos em parte, para alijar aqueles de disposição filosófica dos preconceitos dos teólogos (74.27-30/12, e Ep. 30/166.22-24); estes últimos, no corpus, pairam sempre, ominosos, no horizonte (vide ABREU, 2008, e, para um exemplo aplicado, LOUREIRO, 2019, 549-552). Não admira, pois, o fundo anticlerical da argumentação espinosana em prol da liberdade de expressão (STEINBERG, 2010, 219-223).

    Argumentos pela positiva em favor das liberdades de pensamento e de expressão

    Por tudo quanto se escreveu se conclui que o poder deve desistir de forçar uma impossível unidade de pensamento entre aqueles que lhe estão sujeitos; contudo, deverá fazê-lo não apenas pelo que de negativo resulta de um tal esforço (inútil e vão, já o sabemos), mas também porque a abordagem oposta, scilicet o reconhecimento da liberdade de cada um a pensar como queira e a concomitante liberdade de partilhar os seus pensamentos com outros, possui um conjunto de méritos intrínsecos.

    Spinoza aponta para o seu país como exemplo vivo das benesses trazidas pela liberdade dual que aqui nos tem ocupado (648.23 ss./245-246). Vivia-se, então, o chamado Século de Ouro dos Países Baixos, um período em que as Províncias Unidas se estabeleceram como um potentado comercial e um dos mais relevantes centros artísticos e científicos europeus. Tudo isto o filósofo atribui, direta ou indiretamente, à tolerância que se vivia nessa república marítima. “Esta liberdade, mais do que qualquer outra coisa, é necessária ao avanço das ciências e das artes” (642.24-26/243).

    Há, contudo, uma razão mais de fundo, não consequencialista, para consagrar legalmente o direito de cada um a pensar e falar como lhe aprouver: sem essa liberdade, o Estado passa ao lado do seu fim. “Na verdade, pois, o fim da respublica [aqui a entender não como um tipo específico de regime mas enquanto a comunidade politicamente organizada] é a liberdade” (636.28/241). Precisar o que pretende Spinoza dizer com esta merecidamente célebre frase levar-nos-ia demasiado longe (vide ESPINOSA, 2019, nota ad loc.; LOUREIRO, 2018, iii.β. C.6–10.1; e STEINBERG, 2009); parece evidente, porém, que esta liberdade a que o Estado retamente constituído está apontado compreende a liberdade de expressão. O filósofo incumbe mesmo o Estado de fazer com que os seres humanos “se suportem [ferantur, verbo latino cuja forma supletiva para o pretérito, ‘tuli’, é cognata do nosso termo ‘tolerância’] uns aos outros com equanimidade» (636.27–28/241), para que assim todos possam «fazer uso da livre razão» (636.26–27/241). Ora, a forma de governo mais conforme a este propósito que é a razão de ser última de toda a comunidade política é a democracia, “aquele [tipo de imperium] que mais se aproxima do estado de natureza” (648.10-11/245) e “mais concorda com a natureza humana” (648.9-10/245). Spinoza é talvez o primeiro filósofo da tradição ocidental a defender, sem rebuço e com brio, a superioridade deste regime (vide AURÉLIO, 2014, 38), cuja forma de funcionamento pressupõe, por definição, a possibilidade da livre troca de ideias, também acerca da condução da coisa comum (634.10-12/239). Daqui não se conclua que todas as monarquias e aristocracias devem evoluir para democracias (Spinoza manifesta-se abertamente contra as mudanças de regime: 598.7 ss./226-228); se quiserem perdurar, terão, contudo, de assumir algumas características democráticas (vide as soluções constitucionais concretas que o filósofo avança no Tratado Político). Isso, de resto, era já silogisticamente inferível de quanto acima se disse: se os regimes violentos tendem a implodir (516.29-30/194), se eles serão tanto mais violentos quanto mais cercearem a liberdade de expressão dos sujeitos (636.6-9/240), e se a democracia é a forma de regime mais amiga da liberdade de expressão (cf. 648.5-18/245), então, todo o regime não democrático que queira perdurar, mister é que, de algum modo, se “democratize”.

    Limites à liberdade de expressão

    Spinoza, como se viu, procede a uma robusta defesa dessa liberdade, ao seu tempo, tão rara, até na sua amada Holanda (o TTP, lembremos, é publicado anonimamente): a liberdade de dizer o que se pensa. Todavia, não se julgue que o filósofo a tem por irrestrita, muito pelo contrário: não a circunscrever seria “perniciosíssimo” (636.13/240). Por isso propõe um conjunto de limites (i) formais e (ii) substanciais ao uso livre da palavra.

    i) Spinoza condena todas as formas de expressão eivadas de “ira” ou “ódio”, bem como toda a comunicação “dolosa” (638.8-9/241), aquela que quer enganar (manipular?). Tal é uma consequência direta da tarefa que ele reconhece à comunidade política em 636.27/241, no curso do parágrafo que culmina na celebrada declaração que hasteia a liberdade como fim da república: banir as disputas por, justamente, “ódio, ira ou dolo”. Não parece, assim, haver muito espaço para a literatura polémica, panfletária ou paródica.

    Spinoza insiste ainda em que cada um sustente o seu parecer “meramente por meio da razão” (638.8/241). Percebe-se que uma tal exigência tenha levado alguns intérpretes (e.g. ROSEN, 2003) a imaginar que ele pretendia reservar a liberdade de publicar e ensinar unicamente para aqueles “autores que, no geral, escrevem apenas para os doutos e se socorrem exclusivamente da razão” (650.14-15/246); a “liberdade de filosofar” defendida no subtítulo do Tratado seria para entender ao pé da letra enquanto a liberdade dos filósofos. Uma tal leitura parece-nos ir contra o caudal argumentativo do capítulo; mesmo não a subscrevendo, é evidente, contudo, a pressão que coloca sobre a expressão o imperativo de articular racionalmente a opinião. Não o podemos aqui demonstrar, mas acreditamos haver boas razões para, sem atentar contra o sistema, temperar pela prudência (vide LAUX, 2002) o referido imperativo, a compreender em sentido mais paradigmático do que normativo, qual o exemplar de E 4pref.

    ii) Mesmo supondo, mas não concedendo, que a liberdade de expressão fosse reserva dos filósofos, até estes não poderiam defender certas posições, scilicet “aquelas, claro, que, uma vez admitidas, logo invalidam o pacto pelo qual cada um abriu mão do seu direito a agir segundo o seu próprio arbítrio” (640.19-21/242), aquelas, enfim, que, “explícita ou implicitamente, rompe[m] a fidelidade [fides] prometida ao soberano” (640.27-28/242). Spinoza dá alguns exemplos: “alguém sustentar que o soberano não é sui juris [algo como “autónomo” no sentido literal do termo, ou seja, aquele que dá a si mesmo as suas leis, não devendo obediência a instância superior alguma; o filósofo pensa aqui na independência do poder secular face ao poder eclesiástico: vide14-16/247] ou que ninguém está obrigado a manter aquilo que prometeu [precisamente a tese de Spinoza em 510.23 ss./191-192 e TP 2.12/280]” (640.21-22/242; vide ainda, para um outro importante exemplo de uma “opinião sediciosa”, 618.12-20/234). Mais genericamente, e em linha com a função que se reconheceu ao Estado, deve ser objeto de censura todo o discurso que convide a ações pautadas pela “vingança” ou pela “ira” (640.29/242). O próprio espírito com que se usa da palavra, mesmo para tecer observações ostensivamente inconsequentes no domínio da práxis (642.2-5/243), parece não ser totalmente irrelevante (638.9-10, 15-18/241), podendo talvez justificar o silenciamento do falante – seria, porém, necessário pesar mais demoradamente as fugidias observações de Spinoza a este propósito para nos pronunciarmos com segurança acerca deste ponto.

    Dentro dos limites expostos – reconhecidamente apertados –, há, portanto, espaço para a crítica ao poder, muito embora o filósofo pareça supor que cabe ao soberano autorizar essa mesma crítica (que nunca põe em questão a obediência às leis vigentes, até quando as visa: 638.14/241). Não é muito clara a mecânica do processo (não se percebe no que se traduz, concretamente, a “submissão” e “sujeição” de que se fala em, respetivamente, 638.13-14/241 e 652.27/247), mas Spinoza parece ter em mente não tanto um “exame prévio” quanto uma “fiscalização sucessiva”, pelo menos a avaliar pelo seu exemplo, ele que fecha quer o prefácio quer o capítulo final do Tratado com uma declaração em que se dispõe a retratar-se se acaso repreendido pelas autoridades por qualquer opinião expressa na obra. Tal abertura não pode, porém, ser lida senão de forma irónica: é inconcebível que Spinoza fosse dar o dito por “não dito” (652.27-29/247), ele que não só possuía uma confiança invulgar na verdade da sua filosofia (vide Ep. 76/320.3-4), como cedo adivinhou corretamente o escândalo que o Tratado iria causar: o livro, dado à estampa anonimamente, como já se referiu, anunciava na folha de rosto um local de edição falso, para proteger o impressor. A decisão de Spinoza de o publicar tem necessariamente de influir na nossa interpretação das restrições que o filósofo impõe à palavra no espaço público, qualificando-as/situando-as. Em que medida e em que sentido o faz, é algo que não pode ser esclarecido no espaço, já reteso, do presente verbete.

    Esquema de citação/referenciação das obras de Spinoza

    E = Ethica, ordine geometrico demonstrata; passos citados segundo o esquema genérico: parte, tipo de enunciado, número, tipo de enunciado dependente (sem vírgulas ou espaços em branco, aqui introduzidos apenas por conveniência de leitura, entre os referidos elementos); para os diferentes tipos de enunciado, foram usadas as seguintes abreviaturas: c (corolário), p (proposição), pref (prefácio);

    Ep. = Epistolae; passos citados segundo o esquema: número da carta/página na edição de Gebhardt (sem menção do volume). linha;

    TP = Tractatus politicus; passos citados segundo o esquema: capítulo.parágrafo/página na edição de Gebhardt (sem menção do volume);

    TTP = Tractatus theologico-politicus; passos citados segundo o esquema: página na edição de Akkerman.linha/página na edição de Gebhardt (sem menção do volume).

    Bibliografia

    Impressa

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    Autor: João Diogo R. P. G. Loureiro

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