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  • Tortura e Tratamentos Degradantes [Dicionário Global]

    Tortura e Tratamentos Degradantes [Dicionário Global]

    A prática de tortura e de tratamentos degradantes é já muito antiga e pode ser objeto de abordagens muito diversas (ANDERSON & NUSSBAUM, 2018). Na abordagem jurídica, o que se destaca, desde logo, é a proteção multinível de todas as pessoas contra a tortura e os tratamentos degradantes. Os vários níveis de proteção (normativa e institucional) estão fundados em instrumentos quer de Direito supranacional quer de Direito nacional e, neste âmbito, quer no plano do Direito Constitucional quer no do Direito Infraconstitucional. Além de que se aponta à proibição da tortura a natureza de norma de ius cogens (WET, 2004).

    Na cronologia dos instrumentos de Direito Internacional dos séculos XX e XXI, é referência obrigatória a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, cujo art. 5.º estatui que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Seguem-se-lhe o art. 3.º, comum às quatro Convenções de Genebra de 1949, que proíbe os tratamentos cruéis, torturas e ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes; a Convenção Europeia dos Direito do Homem de 1950, que proíbe a tortura, no art. 3.º, estipulando que “ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”; as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (Regras de Nelson Mandela) de 1957, segundo as quais “nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância” (regra 1 e, ainda, 8, alínea d), 32, n.º 1, alínea d), 34, 43, n.º 1, 57, n.º 3, 71, n.º 2, 76, n.º 1, alínea b)); o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1966, cujo art. 7.º determina que “ninguém poderá ser submetido a torturas, penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” e o Protocolo Facultativo respetivo de 1966; a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos de 1969, cujo art. 5.º, n.º 2, estatui que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”; a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1975, que define “tortura” para os efeitos da Declaração no art. 1.º e onde se destaca, nomeadamente no art. 2.º, que “qualquer ato de tortura ou qualquer outra pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante constitui uma ofensa à dignidade humana e será condenado como violação dos objetivos da Carta das Nações Unidas e dos direitos humanos e liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos”; o Código de Conduta das Nações Unidas para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei de 1979, segundo o qual “nenhum funcionário responsável pela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerar qualquer ato de tortura ou qualquer outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante, nem nenhum destes funcionários pode invocar ordens superiores ou circunstâncias excecionais, tais como o estado de guerra ou uma ameaça de guerra, ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificativa para torturas ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (art. 1.º); a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981, cujo art. 5.º determina que são proibidos todas as formas de aviltamento do homem, nomeadamente a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes; os Princípios de Deontologia Médica, aplicáveis à atuação do pessoal dos serviços de saúde, especialmente aos médicos, para a proteção de pessoas presas ou detidas contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1982, segundo os quais “constitui uma grave violação da deontologia médica, bem como um crime ao abrigo dos instrumentos internacionais aplicáveis, o envolvimento, ativo ou passivo, de pessoal dos serviços de saúde, especialmente médicos, em atos de participação, cumplicidade, incitamento ou tentativa da prática de tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (princípio 2); a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984, destacando-se o art. 1.º, que define “tortura” para os fins da Convenção, o art. 2.º, n.ºs 2 e 3, de acordo com os quais “nenhuma circunstância excecional, qualquer que seja, quer se trate de estado de guerra ou de ameaça de guerra, de instabilidade política interna ou de outro estado de exceção, poderá ser invocada para justificar a tortura” e “nenhuma ordem de um superior ou de uma autoridade pública poderá ser invocada para justificar a tortura”, o art. 3.º, n.º 1, segundo o qual “nenhum Estado parte expulsará, entregará ou extraditará uma pessoa para um outro Estado quando existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura”, o art. 11.º, ao dispor que “os Estados partes deverão exercer uma vigilância sistemática relativamente à aplicação das normas, instruções, métodos e práticas de interrogatório, e bem assim das disposições relativas à guarda e ao tratamento das pessoas sujeitas a qualquer forma de prisão, detenção ou encarceramento, em todos os territórios sob a sua jurisdição, a fim de evitar qualquer caso de tortura”, e o art. 16.º, n.º 1, ao determinar que “os Estados partes comprometem-se a proibir, em todo o território sob a sua jurisdição, quaisquer outros atos que constituam penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e não sejam atos de tortura, tal como é definida no artigo 1.º, sempre que tais atos sejam cometidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito”; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985, cujo art. 2.º explicita o que deve entender-se por tortura para os efeitos da Convenção, ressalvando que “não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo”; a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes de 1987, que institui o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, ao qual cabe, por meio de visitas, examinar “o modo como são tratadas as pessoas privadas de liberdade, com vista a reforçar, caso seja necessário, a sua proteção contra a tortura e as penas ou tratamentos desumanos ou degradantes” (art. 1.º); as Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados da sua Liberdade, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1990, segundo as quais “nenhum membro do pessoal do estabelecimento ou instituição de detenção pode, sob qualquer pretexto ou em quaisquer circunstâncias, infligir, instigar ou tolerar qualquer ato de tortura ou qualquer forma de tratamento, castigo, medida de correção ou disciplina penosa, cruel, desumana ou degradante” (ponto 87); o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 1998 – competente para o julgamento de “crimes de guerra”, designadamente violações graves às Convenções de Genebra, como “tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas”, “atos de violência contra a vida e contra a pessoa […], em particular os tratamentos cruéis e a tortura e “ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes” (art. 8.º, n.º 2, alíneas a), subalínea ii), e c), subalíneas i) e ii) – do qual decorre a inclusão da tortura nos crimes contra a humanidade, nos termos do art. 7.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), e que “nenhuma pessoa poderá ser submetida a qualquer forma de coação, intimidação ou ameaça, tortura ou outras formas de penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, no decurso de um inquérito aberto nos termos do Estatuto, segundo o art. 55.º, n.º 1, alínea b); o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 2002, que instituiu um Subcomité para a Prevenção da Tortura e de Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes do Comité contra a Tortura (art. 2.º); e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2009, cujos arts. 4.º e 19.º, n.º 2, dispõem, respetivamente, que “ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes” e que “ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes”.

    De todos estes instrumentos de Direito Internacional, podemos e devemos destacar o princípio da universalidade, no sentido em que a proibição de sujeição à tortura, a tratamento ou o castigo cruel, desumano ou degradante vale para todas as pessoas e para qualquer ato; o princípio da especificação, no sentido em que merecem especial referência as vítimas potenciais, nomeadamente as que estão sujeitas ao poder estadual (jovens privados da liberdade, reclusos, detidos, extraditandos ou pessoas em processo de expulsão), e os potenciais agressores, nomeadamente agentes públicos investidos em funções que contendem com a privação da liberdade das pessoas e pessoal dos serviços de saúde; o princípio da proibição absoluta, no sentido em que nada pode justificar a utilização da tortura ou de tratamento desumano ou degradante; o princípio da vigilância, no sentido em que compete ao Estado e a instâncias supranacionais zelar pela prevenção e repressão da tortura e dos tratamentos desumanos ou degradantes.

    Entre as instâncias supranacionais que zelam pela prevenção e repressão da tortura e dos tratamentos desumanos ou degradantes, destacam-se o Comité das Nações Unidas contra a Tortura, criado ao abrigo do art. 17.º da Convenção das Nações Unidas de 1984, o Comité do Conselho Europeu para a Prevenção da Tortura, instituído pela Convenção Europeia de 1987, o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma de 1998, e o Subcomité para a Prevenção da Tortura e de Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, instituído pelo Protocolo Facultativo de 2002. A fim de prevenir a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, este Protocolo estabelece um sistema de visitas regulares aos locais onde se encontram pessoas privadas de liberdade, a efetuar pelo Subcomité, mas também por organismos nacionais independentes. Para o efeito, cada Estado Parte deverá criar, designar ou manter o denominado “mecanismo nacional de prevenção”.

    Os instrumentos de Direito Internacional contribuem também para a definição de tortura. Com a ressalva de não estarem compreendidos no conceito a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legítimas, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionados, o art. 1.º da Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 3452 (XXX), de 9 de dezembro de 1975, define tortura como “todo o ato pelo qual um funcionário público, ou outrem por ele instigado, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de terceiro uma informação ou uma confissão, de a punir por um ato que tenha cometido ou se suspeite que cometeu, ou de intimidar essa ou outras pessoas”; o art. 1.º da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 dispõe que “o termo ‘tortura’ significa qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito”; o art. 2.º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985 estatui que “entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”; e o art. 7.º, n.º 2, alínea e), do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 1998, para efeitos de tipificação dos crimes contra a humanidade, dispõe que, por “tortura”, entende-se “o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controlo do arguido”.

    Não há qualquer instrumento de Direito europeu que defina tortura, aqui incluídas a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sem prejuízo da relevância da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativamente ao art. 3.º da Convenção, nomeadamente nos casos, mais recentes, Petrescu e Badulescu v. Portugal de 2019 e 2020 (GIL, 2021), e nos mais antigos, Ahmed v. Áustria de 1996 e Soering v. Reino Unido de 1989.

    O que se retira daquelas definições, de forma mais ou menos explícita, é que o conceito de “tortura” assenta em três elementos essenciais: o elemento subjetivo – quem atua, quem instiga ou quem consente na atuação está investido de poderes conferidos pelo Estado; o elemento objetivo – a prática de atos que causem sofrimento físico ou psíquico ou que tenham repercussões psíquicas (por exemplo, a ofensa à integridade física, a hipnose, a administração de substâncias alucinatórias, o interrogatório excessivamente prolongado no tempo, a ameaça com medidas legalmente inadmissíveis ou a colocação prolongada do condenado no corredor da morte); e o elemento teleológico – a identificação de uma determinada finalidade que se reconduza à intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima.

    Ainda de acordo com o Direito Internacional, o conceito de “tratamento degradante” (ou de “tratamento cruel ou desumano”) é residual no sentido em que nele se incluem outros atos que não sejam atos de tortura, segundo a definição adotada, sempre que tais atos sejam cometidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito (art. 16.º da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes). A diferenciação de conceitos, se, por um lado, aponta para uma gradação da gravidade do comportamento do agente, por outro, permite um alargamento dos comportamentos reprováveis. Permite, por exemplo, incluir a pena de morte no conceito de “tratamento cruel, desumano ou degradante”, na medida em que o termo “tortura” não compreende, segundo o art. 1.º, n.º 1, daquela Convenção, a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legítimas, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionados (SCHABAS, 2002, 193 e ss.)

    À afirmação do princípio da proibição absoluta do recurso à tortura tem-se vindo a contrapor a admissibilidade da tortura preventiva ou tortura de salvamento em situações-limite, ou seja, quando é praticada como meio de obtenção de informações relevantes para evitar atentados contra a vida. Trata-se de uma discussão que assumiu particular relevo a propósito do caso Metzler-Gäfgen-Daschner, na Alemanha, e que encontra especial destaque no âmbito das medidas de combate ao terrorismo, tendo sido debatida a respeito dos casos de bomba-relógio (ticking-time-bomb-cases) em Israel e das políticas preventivas e securitárias do pós-11 de setembro dos EUA (cf. GRECO, 2009, 235 e ss.).

    Em regra, à prática de tortura ou de tratamentos degradantes corresponde também a criminalização do comportamento do agente ao nível do Direito nacional, em obediência a instrumentos de Direito internacional, mas também por referência à Constituição de cada país.

    Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa estabelece no art. 24.º, n.º 4, a regra de que “em caso algum haverá pena de morte”, consagra no art. 25.º o direito à integridade pessoal, determinando que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável” e que “ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”; comina no art. 32.º, n.º 8, a sanção da nulidade para as provas obtidas mediante tortura, coação e ofensa da integridade física ou moral da pessoa e estatui, no art. 19.º, n.º 6, que a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência não pode em nenhum caso afetar os direitos fundamentais à vida e à integridade pessoal. Além de que Portugal é uma República baseada na dignidade da pessoa humana e no princípio do Estado de Direito democrático, que identifica como uma das tarefas fundamentais do Estado garantir os direitos fundamentais e o respeito pelo princípio do Estado de Direito democrático, segundos os arts. 1.º, 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição.

    Inserido sistematicamente nos crimes contra a integridade pessoal, o regime penal da proibição da tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, concretiza-se no Código Penal através da previsão e punição destes comportamentos nos arts. 243.º e 244.º, da previsão e punição da omissão de denúncia por parte do superior hierárquico no art. 245.º e da aplicabilidade das penas acessórias de incapacidade eleitoral e de incapacidade para ser jurado, prevista no art. 246.º (ANTUNES & PAIS, 2022).

    O legislador penal criminalizou o comportamento de quem, tendo a função, a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infrações criminais, contraordenacionais ou disciplinares, a execução de sanções da mesma natureza ou a proteção, guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa (elemento subjetivo), torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana a vítima (elemento objetivo), para obter dela ou de outra pessoa confissão, depoimento, declaração ou informação, a  castigar por ato cometido ou supostamente come­tido por ela ou por outra pessoa ou a intimidar ou para intimidar outra pessoa (elemento teleológico). Para este efeito, considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o ato que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima, com ressalva dos sofrimentos inerentes à execução das medidas legais privativas ou restritivas da liberdade. O agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou de 3 a 12 anos, consoante a menor ou maior gravidade do crime, ou com pena de prisão de 8 a 16 anos, se do comportamento resultar suicídio ou morte da vítima. Atenta à concreta gravidade do facto e à sua projeção na idoneidade cívica do agente, pode ser-lhe ainda aplicada uma outra pena, pela qual fica incapacitado para eleger o presidente da República, os deputados à Assembleia da República, os deputados ao Parlamento Europeu, os deputados às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas e os titulares dos órgãos das autarquias locais, para ser eleito como tal ou para ser jurado, por um período de 2 a 10 anos.

    O legislador criminalizou também, em nome de uma tutela efetiva do bem jurídico da integridade pessoal, num domínio em que é particularmente difícil a denúncia dos factos por parte da vítima, o comportamento do superior hierárquico que, tendo conhecimento da prática, por subordinado, de crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, não fizer a denúncia no prazo máximo de três dias após o conhecimento.

    Do ponto de vista processual penal, à utilização da tortura, da coação ou da ofensa da integridade física ou moral das pessoas para obtenção de provas, corresponde a sanção da nulidade e a proibição de valoração da prova obtida, podendo, contudo, a prova ser utilizada com o fim exclusivo de proceder contra aqueles que usaram o método proibido de prova. É o que decorre dos arts. 32.º, n.º 8, da Constituição e 125.º e 126.º do Código de Processo Penal (COSTA ANDRADE, 1992, 209 e ss.). Tem vindo, porém, a discutir-se se as proibições de produção de prova têm carácter absoluto, correspondendo-lhe sempre uma proibição de valoração da prova ilicitamente produzida, ou se deve antes convocar-se a “teoria da ponderação no caso concreto”, considerando os valores conflituantes no caso concreto e, sempre que possível, a sua otimização (FIGUEIREDO DIAS, 2016, 10 e ss.).

    Do ponto de vista preventivo, importa notar que, através da resolução do Conselho de Ministros n.º 32/2013, de 20 de maio, o provedor de Justiça foi designado como “mecanismo nacional de prevenção independente” para a prevenção da tortura a nível interno, nos termos definidos pelos arts. 17.º e seguintes do Protocolo Facultativo de 2002.  Segundo o decreto-lei n.º 80/2021, de 6 de outubro, que aprovou o regime de organização e funcionamento da Provedoria de Justiça, o Mecanismo Nacional de Prevenção é um Departamento da Provedoria de Justiça com competência para realizar visitas regulares a locais onde haja pessoas privadas de liberdade, para elaborar relatórios, para formular recomendações públicas às entidades competentes e  para apresentar propostas e observações relativas a legislação vigente ou a projetos legislativos sobre as matérias compreendidas no seu âmbito de atuação (RELATÓRIOS ANUAIS).

    Bibliografia

    Impressa

    ANDERSON, S. A. & NUSSBAUM, M. C. (eds.) (2018). Confronting Torture. Essays on the Ethics, Legality, History, and Psychology of Torture Today. Chicago: The University of Chicago Press.

    ANDRADE, C. (1992) Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora.

    ANTUNES, M. J. & PAIS, A. (2022). Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial (t. I, vol. I). Coimbra: Gestlegal.

    DIAS, F. (2016). “Revisitação de algumas ideias-mestras da teoria das proibições de prova em processo penal (também à luz da jurisprudência constitucional portuguesa”. Revista de Legislação e de Jurisprudência, 146 (4000), 3-16.

    GIL, A. R. (2021). “Os casos Petrescu e Badulescu c. Portugal: Revisitando a jurisprudência do TEDH sobre condições de detenção e tratamento de reclusos nas prisões”. Revista do CEJ, 1 (1), 129-156.

    GRECO, L. (2009). “As regras por trás da exceção – Reflexões sobre a tortura nos chamados ‘casos de bomba-relógio’”. Revista Jurídica, 23 (7), 229-264.

    SCHABAS, W. A. (2002). The Abolition of the Death Penalty in International Law. Cambridge: Cambridge University Press.

    WET, E. de (2004). “The Prohibition of Torture as an International Norm of jus cogens and its Implications for National and Customary Law”. European Journal of International Law, 15 (1), 97-121.

    Digital

    “Relatórios anuais de atividade do Mecanismo Nacional de Prevenção”, https://www.provedor-jus.pt/mecanismo-nacional-de-prevencao/relatorios-anuais-de-atividade-mnp (acedido a 14.03.2024).

    Autora: Maria João Antunes

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