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    Tribunal Constitucional Internacional (TCI)

    Sentido do Projeto

    Num mundo cada vez mais porejado de situações de desrespeito pelo Direito Internacional (desde logo, pela palavra dada – CHEMILLIER-GENDREAU, 2013) e pelos direitos das pessoas, o Tribunal Constitucional Internacional (TCI) parece ser uma necessidade. Alguns poderão dizer “platónica”, mas não é platónico todo o direito e toda a justiça contra a força bruta que os desrespeita, a todos os níveis? Prescinde-se do Código Penal e da Justiça criminal por haver assassinos, ladrões, violadores? Precisamente porque os há é que é necessário o Direito. Aristóteles já dizia que o Direito não foi feito para os bons. Nem para tempos de bonança, acrescentaríamos.

    Assim, nos países democráticos, o TCI será vigilante no sentido de evitar (por exemplo, mercê de crises e voluntarismos populistas, que elas frequentemente acarretam) uma deriva autoritária ou mesmo totalitária, como a que parece temer Stamatios Tzitzis (2012-2013), entre tantos outros; contribuirá assim para mais e melhor democracia e justiça.

    Nos países que não são democráticos, ou que são menos democráticos, ou imperfeitamente, trata-se de contrariar a escassa sindicabilidade dos atos do poder, em que muitas vezes há a pior da indivisão dos poderes: o remar na mesma direção e na mesma sintonia ideológica e/ou de interesses de governo, legislativo, poder judicial e não raro do quarto poder da comunicação social. O qual ganhou uma dimensão avassaladora, pela enorme capacidade que tem de formatação das consciências, muito pouco críticas. As massas (e mesmo algumas pretensas elites) são, assim, muito permeáveis à doutrinação, à propaganda, à alienação. As Fake News são um quotidiano permanente, e, além delas, as No News, o preenchimento do imaginário das pessoas com assuntos alienantes, sem qualquer interesse.

    Quando, num país, os poderes, em vez de se equilibrarem, protegem alguns e perseguem outros, encobrem uns e caluniam outros, quando o cidadão honesto e muitas vezes o opositor político (mas não só: por vezes apenas o pacato cidadão cujo nariz desagradou, ou o moleiro que tem uma propriedade que o imperador cobiça) não encontram no próprio sistema judicial do seu país uma saída, é muito necessário um TCI.

    Mas evidentemente que nem só estes casos drásticos serão tratados pelo TCI. Para além da função contenciosa, duas outras funções mais fisiológicas e até profiláticas ele deverá abarcar.

    Poderá ser chamado a verificar a legalidade, transparência e limpeza de eleições e outros escrutínios, por vezes mais relevantes ainda, como os referendos. Há ainda países que isso expressamente reclamam, e tal necessita de ser feito cada vez mais por um corpo especializado e não meramente por comissões eventuais, ad hoc. Sem prejuízo da necessária rotatividade e escrutínio dos observadores, para garantir que estejam acima de qualquer suspeita.

    Ainda, e a pedido de organizações dos Estados ou algumas ONGs, etc., o TCI terá também, em termos que permitam uma não proliferação de casos de lana caprina, a função de aconselhamento, elaborando respostas a consultas. Resolvendo assim dúvidas constitucionais legítimas de instituições públicas e entidades particulares relevantes.

    É um projeto ainda em curso, em discussão pública internacional. Têm-se discutido, neste contexto, alguns temas fascinantes: a sua institucionalização, que agora tudo indica terá de ser por um tratado instituidor, poderia ocorrer de forma mais voluntarista, impondo-se a jurisdição do TCI até a países não aderentes ao projeto? Pareceu ser a posição de Sérgio Aquino, no Brasil. A composição do Tribunal, saindo, naturalmente, de decisão da ONU, deveria ter, como um dos seus corpos eleitorais, juízes da comissão de Direitos Humanos ou da comissão de Direito Internacional? Parece que recentemente se inclinam os sufrágios para esta última. Que línguas de trabalho instituir? O autor destas linhas defendeu o português, além de outras grandes línguas. Conseguirá, afinal, triunfar a a língua portuguesa, falada por 280 milhões de falantes, e a mais falada no hemisfério sul? Poderá haver ou não votos de vencido dos juízes? Tudo indica que sim.

    A discussão é essencial para que se encontrem boas soluções. E uma coisa é certa: o TCI não será um mero tribunal de opinião pública, uma espécie de Tribunal Russell, mas será um verdadeiro tribunal, com toda a força jurídica e o rigor do Direito, votado a que não possa haver no planeta nenhum recanto onde possa triunfar a tirania, o despotismo, o torto, ainda que protegido por sistemas “jurídico-políticos” de ditadura, mais ou menos subtil e/ou de falsa juridicidade. Ou seja, será um Tribunal com funções de defesa da democracia, do Direito democrático, dos direitos humanos e da transparência eleitoral.

     

    O TCI não é uma utopia

    Há alguns anos, certos livros didáticos de Direito precisavam que o Direito positivo tanto era aquele que se encontrava em vigor (vigente), como ainda aquele que o tinha estado, mas já não se encontrava entre as fontes atuais e aplicáveis num dado hic et nunc. Ou seja, o Direito histórico é Direito positivo.

    Ora, embora essa referência e informação se tenha em geral perdido, do mesmo modo, mutatis mutandis, importa agora precisar, desde já, que o Tribunal Constitucional Internacional (TCI) não é ainda de Direito positivo (embora as suas fontes o sejam já). Porque não existiu nunca nem existe enquanto instituição com o seu complexo normativo (próprio, ou já existente).

    O facto, porém, de o TCI não ter existência positiva (a positividade jurídica e institucional opera para o passado, mas não para o futuro, até porque o futuro é incerto), não significa que ele seja, pura e simplesmente (como alguns, que se pretendem com os pés mais assentes no chão, rotulam, em sentença irrevogável), uma “utopia”.

    Um estudo aprofundado das utopias (dentro do ambiente epistémico do Direito) levar-nos-ia a fazer algumas distinções fundamentais (entre outras, mais laterais e com menor interesse para o caso presente) (CUNHA, 1996).

    Primeiro, uma coisa é a utopia, mito da cidade ideal (MUCCHIELLI, 1980), e outra coisa é a quimera, países de cocanha, sonhos e especulações que se sabem irrealizáveis, e outras entidades de pura imaginação e uma dose considerável de onirismo e escapismo social. Ora, a criação de um Tribunal tem desde logo um âmbito muito determinado e bem menor que o de uma utopia qualquer, que pressupõe o desenho de toda a complexidade e completude interativa de uma sociedade “concreta”, com as suas instituições todas, jurídicas e não jurídicas. Aliás, costuma assinalar-se até que um traço característico das utopias literárias (as utopias plasmam-se em obras literárias, em geral, ainda que possam ter formas cinematográficas, teatrais, etc.) é o detalhismo. Falta muito a um projeto de um Tribunal para se poder, através dele, pressupor sequer uma sociedade nova. Antes é ele um elemento adjuvante e aprofundador de um modelo muito genérico de sociedade, a que chamaríamos “sociedade democrática” ou “Estado de direito democrático”. Nada de novo sob o sol.

    Por outro lado, ser ou não ser utopia não depende da possibilidade de efetivação ou não de um projeto (FRIEDMAN, 1978). A capacidade humana de, mesmo contrariando a humana condição (não falemos de uma sua discutível “natureza”), mesmo contra a “constituição natural” e “material” de um povo ou de uma sociedade, implantar formas de convivência e de poder pela simples força é prodigiosa. Nicolas Berdiaeff, que Aldous Huxley teve presente no seu Brave New World, sabia que as utopias eram realizáveis. E, confundindo utopia tout court com distopia (a utopia negativa, nociva), teme pela sua realização, e gostaria que entravássemos o seu progresso.

    Ora, o que se passa é que nem o TCI é uma utopia, por não ser um projeto completo de sociedade (por não ser, afinal, um “romance do Estado” uma Constituição sem artigos), nem importa por o caso a sua possibilidade ou não de efetivação. Porém, se é possível uma sociedade como algumas que a História regista (e algumas ainda existentes), a fortiori se dirá que é mais que efetivável um tribunal como o TCI. Poder-se-á dizer que o TCI é um elemento de utopismo (não utopia), ou de princípio esperança (BLOCH, 1959).

     

    Para a história do TCI

    A ideia de um TCI (ou algo afim) terá tido, segundo o politólogo José Adelino Maltez, alguma pré-história ou intuição portuguesa; mas os méritos contemporâneos da ideia vão para a Tunísia (GHACHEM, 2016) e para o então resistente e mais tarde presidente da República Dr. Moncef Marzouki. Perante uma situação de fechamento político e jurídico no seu país, este então professor de Medicina exilado em França, idealizou a possibilidade da criação de uma instância internacional de índole jurisdicional, que pudesse suprir a falta de eco dos clamores dos injustiçados em matérias constitucionais por parte de tribunais nacionais limitados ou manietados na sua ação em contexto de ditadura. Não sendo, porém, de excluir que mesmo em regimes democráticos (aliquando dormitat Homerus) não possa haver casos que mereçam uma reapreciação judicial numa instância jurisdicional internacional independente.

    A instauração da democracia na Tunísia viria a fazer daquele país o centro das atividades científicas de estudo da possibilidade da criação do referido tribunal, protagonizada por nomes como o decano Ben Achour (que seria vice-presidente do Comité de Direitos Humanos da ONU) e a hoje vice-decana Asma Ghachem, a que se juntou uma plêiade de vultos internacionais, especialmente constitucionalistas e internacionalistas. Foi criado o Comité ad hoc para a criação do TCI, tendo-se destacado a atividade do canadiano Henri Pallard, e tendo ainda sido o autor destas linhas nomeado para a América Central e do Sul, além de Portugal, o qual, para o efeito, se instalou em São Paulo, onde inúmeros grandes nomes brasileiros se interessaram pelo projeto, daquela capital e por todo o País, os quais chegariam a participar em colóquios no Norte de África. Publicações como as dirigidas por Jean Lauand, na USP, e a Revista Constitucional dirigida por André Ramos Tavares, por exemplo, viriam a publicar números temáticos sobre a matéria. Também em Portugal, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, se realizaria um grande colóquio internacional em fevereiro de 2019, com a participação de importantes figuras do mundo jurídico nacional, e a presença dos referidos tunisinos, e de outra grande impulsionadora da ideia, a francesa Monique Chemillier-Gendreau. Vários colóquios o antecederam, sobretudo realizados na Tunísia e em Marrocos, onde El Houssain Abouchi é um nome a reter, com projeção internacional. Em Portugal, também se realizaria um outro conjunto de colóquios, em Lisboa, na Universidade Aberta, com organização de João Relvão Caetano, e na Universidade Europeia, dirigida por Eduardo Vera Cruz, todos estes eventos com participação de vasta delegação brasileira, designadamente das Faculdades Metropolitanas Unidas, de São Paulo (FMU).

    Será interessante sublinhar que poucas ideias de índole jurídica terão tido tanto dinamismo e colhido tanta adesão, apesar de o projeto se limitar ainda ao plano académico, e necessitar vir a passar também para os terrenos (mais árduos) da política e da diplomacia. Porque parece haver uma muito generalizada e generosa impressão de que é necessária uma instância como a proposta. E o debate com o que alguns pensam ser uma démarche supérflua tem sido muito enriquecedor. Aliás, em todos os colóquios internacionais realizados os promotores da ideia sempre têm convidado céticos e críticos, resultando o debate muito mais fecundo.

    Começados na Tunísia, seria já na Suíça que avançariam os trabalhos de desenvolvimento da documentação fundadora do TCI, designadamente na preparação do Tratado Instituidor da Corte. A sua conclusão e apresentação na ONU decerto necessitarão de tempos mais favoráveis. Entretanto, a ideia continua o seu caminho, conquistando adesões.

    Bibliografia

    BEN ACHOUR, Y. & CUNHA, P. F. da (2017). Pour une Cour Constitutionnelle Internationale. Oeiras: A Causa das Regras.

    BLOCH, E. (1959). Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp.

    CHEMILLIER-GENDREAU, M. (2013, setembro). “Obliger les États à tenir parole”. Le Monde Diplomatique, https://www.monde-diplomatique.fr/2013/09/CHEMILLIER_GENDREAU/49597 (acedido a 15.03.2024).

    CHEMILLIER-GENDREAU, M. (2020). Pour un Conseil Mondial de la Résistance. Paris: Textuel.

    CUNHA, P. F. da (1996). Constituição, Direito e Utopia, Do Jurídico-Constitucional nas Utopias Políticas. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra/Coimbra Editora.

    FRIEDMAN, Y. (1978). Utopias Realizáveis. Lisboa: Sociocultura.

    GHACHEM, A. (2026). “Plaidoyer pour une idée tunisienne: L’institution d’une Cour constitutionnelle internationale”. International Studies on Law and Education, 24, set.-dez., 43-50.

    International Constitutional Court (2014). Projet de Création d´une Cour Constitutionnelle Internationale/Project for the Establishment of an International Constitutional Court. Tunis: Documents of the ICCo Ad hoc Comimittee.

    MUCCHIELLI, R. (1980). Le Mythe de la Cité Idéale. Brionne: Gérard Monfort.

    TZITZIS, S. (2012-2013). “Crise économique, souveraineté populaire et droits sociaux”. Annuaire International des Droits de l’Homme, VII, 505-513.

     

    Autor: Paulo Ferreira da Cunha

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