Tutu, Desmond [Dicionário Global]
Tutu, Desmond [Dicionário Global]
Desmond Tutu é amplamente reconhecido como uma figura proeminente na luta contra o Apartheid na África do Sul e como um defensor incansável dos direitos humanos.
Viveu e trabalhou num período crítico da história da África do Sul, durante o regime de Apartheid, que impôs uma segregação racial sistemática. O seu ativismo, muitas vezes incompreendido entre os seus pares, foi fundamental para promover a justiça, a igualdade e a reconciliação no seu país e além-fronteiras, servindo de mote para muitas outras situações semelhantes que ocorreram no mundo.
Desmond Mpilo Tutu nasceu em 7 de outubro de 1931, na cidade de Klerksdorp, na província de Gauteng, na África do Sul. Aos 12 anos, a sua família mudou-se para Johannesburgo, onde Tutu teve o primeiro encontro com Trevor Huddleston, na altura o líder da paróquia de Sophiatown, que mais tarde se tornou seu mentor. A biógrafa Shirley du Boulay sugeriu que Huddleston era “a maior influência única na vida de Tutu” (DU BOLAY, 1988).
Este encontro teve um impacto profundo no futuro de Desmond Tutu, inspirando-o para o ativismo, ajudando-o a desenvolver a sua compreensão sobre a justiça social e estimulando-o a refletir sobre o papel da Igreja na sua posição contra a injustiça. O impacto deste bispo anglicano na luta contra o Apartheid foi de tal forma significativo e inspirador, que na inscrição da sua lápide, no Trevor Huddleston Memorial Centre, em Sophiatown, Joanesburgo, África do Sul, encontra-se uma citação de Nelson Mandela, “Nenhum branco fez mais pela África do Sul” (1913-1998), referindo-se solenemente ao trabalho de Huddleston e ao seu contributo para a liberdade naquele país.
Nos primeiros anos da década de 1950, Desmond Tutu foi contemplado com uma bolsa do Governo para iniciar os seus estudos no Colégio Normal de Pretória Bantu College, uma instituição de ensino voltada para a formação de professores. Assim, Tutu seguiu os passos do seu pai, frequentando essa mesma instituição entre 1951 e 1953, antes de ingressar na Escola Normal de Joanesburgo. Em 1954, começou a ensinar inglês na Madibane High School e, no ano seguinte, transferiu-se para a Krugersdorp High School, onde lecionou Inglês e História.
Com 24 anos de idade, no dia 2 de julho de 1955, Desmond Tutu casou-se com Nomalizo Leah Shenxane. Viveram juntos por mais de sessenta e cinco anos, e dessa união nasceram quatro filhos. Nomalizo foi valorizada por Tutu e reconhecida por muitos como uma fonte de força e apoio durante a sua jornada (DU BOLAY, 1988).
Em 1956, Tutu foi admitido no St. Peter’s Theological College em Rosettenville, Joanesburgo, que era dirigido pela Comunidade Anglicana da Ressurreição. Aí, Desmond Tutu dedicou-se ao estudo da Bíblia, doutrina anglicana, História da Igreja e Ética cristã, alcançando uma licenciatura em Teologia no ano de 1960. Foi ainda em dezembro desse mesmo ano que foi ordenado como padre anglicano na Catedral de St. Mary’s por Edward Paget (DU BOLAY, 1988).
Foi, no entanto, no ano de 1962, que a sua vida ganhou um novo e importante impulso. Com o apoio do Fundo de Educação Teológica, Desmond Tutu parte para o Reino Unido para prosseguir os seus estudos no renomado King’s College London, onde obteve um bacharelado e um mestrado em Teologia, concluindo os seus estudos em 1966.
Em 1975, fez história ao tornar-se o primeiro negro a ser nomeado deão da Catedral de Santa Maria, em Joanesburgo, liderando a Diocese de Lesoto de 1976 a 1978, ano em que foi igualmente nomeado como secretário-geral do Conselho das Igrejas da África do Sul, papel que assumiu até 1985. Esta posição de liderança proporcionou-lhe uma plataforma ainda mais ampla para advogar pelos direitos humanos, justiça social e reconciliação na África do Sul.
Em 1982, Desmond Tutu publicou o seu primeiro livro, intitulado Crying in the Wilderness: The Struggle for Justice in South Africa, que aborda tanto o papel crucial da Igreja na luta contra o Apartheid na África do Sul, bem como as questões fundamentais de justiça social e de direitos humanos. No prefácio desta obra, o bispo Trevor Huddleston, presidente do Movimento Anti-Apartheid na época, refere que, “através das palavras de Tutu, é possível compreender a verdadeira situação na África do Sul” (TUTU, 2018, apud HUDDLESTON 2018). Ele destaca que Tutu “não oferece uma visão marcada pela amargura e desesperança, mas sim pelos olhos de alguém que nutre uma profunda paixão pela paz e reconciliação, considerando-as como a verdadeira expressão do amor cristão” (TUTU, 1982).
Esta luta pela justiça e pela firme oposição ao Apartheid vale-lhe um prémio Nobel da Paz em 1984. Após três nomeações consecutivas, o comité do Prémio Nobel reconhece-o como uma figura central no papel de unificação pacífica e na construção de uma nova África do Sul democrática e não racial, “for his role as a unifying leader figure in the non-violent campaign to resolve the problem of apartheid in South Africa” (NOBEL PRIZE OUTREACH, 1984).
No mesmo ano, 1984, Desmond Tutu publica o seu segundo livro, Hope and Suffering: Sermons and Speeches, uma coleção de sermões e discursos que oferecem uma profunda reflexão sobre temas como esperança, sofrimento, justiça e reconciliação, tanto do ponto de vista espiritual quanto social. Mais uma vez, Trevor Huddleston tem um papel de destaque, sendo convidado a escrever um (texto de contracapa) deste seu livro, demonstrando uma vez mais o papel relevante que o mesmo teve no pensamento e na ação de Desmond na sua caminhada ativista pela paz e pelos direitos humanos.
O ano de 1986 foi particularmente especial para Desmond Tutu. Em julho de 1986 foi ordenado arcebispo, tornando-se o primeiro arcebispo anglicano negro da Cidade do Cabo. Ele ocupou esse cargo por uma década, até 1996, e durante esse tempo utilizou esta posição mais proeminente para fazer chegar mais longe a sua voz na luta contra as injustiças do Apartheid e para promover a reconciliação entre os sul-africanos. Em setembro de 1986 é publicado o seu terceiro livro, The War Against Children: South Africa’s Youngest Victims, Human Rights First, que aborda a violência vivida por crianças e jovens no Soweto no ano de 1985, um ano, segundo as palavras de Tutu, “particularmente violento e repressivo com mais de 1400 pessoas mortas devido à crescente oposição política ao governo e ao escalar de descontentamento da população negra” (TUTU, 1986). Ainda nesse ano, em outubro de 1986, é-lhe atribuído o Prémio Bruno Kreisky de Direitos Humanos, mais um reconhecimento pela sua coragem e dedicação a favor dos direitos humanos e pela luta pacífica pelo fim do Apartheid na África do Sul.
Outro ano igualmente relevante na vida de Desmond Tutu foi o ano de 1994. Nesse ano, em abril, ocorreram as primeiras eleições multirraciais na África do Sul, e desse plebiscito “nasceu um novo país” (GIBSON, 2004), resultando na eleição do primeiro presidente negro da África do Sul, o também laureado pelo Prémio Nobel da Paz, Nelson Mandela.
Foi um momento histórico de significado profundo e memorável, pois marcou o fim formal de mais de quarenta anos de Apartheid. No entanto, este momento tão aguardado era um desfecho já esperado, muito impulsionado pela formalização da nova Constituição ratificada pela Assembleia Constituinte da África do Sul no ano anterior, abrindo dessa forma o caminho para eleições livres e democráticas. Entre muitos, três figuras incontornáveis desempenharam papéis fundamentais nesse momento histórico: Frederik Willem de Klerk, Nelson Mandela e Desmond Tutu, todos eles laureados com o Prémio Nobel da Paz.
Desmond Tutu, inspirado por uma onda de esperança, escreve o seu quinto livro, The Rainbow People of God: The Making of a Peaceful Revolution (1994), que explora a transição da África do Sul do Apartheid para a democracia, enfatizando o processo de reconciliação e caminho do perdão. Nelson Mandela, referindo-se a esta obra, declarou: “This book is an important contribution to the anti-apartheid struggle. Without it we could not justifiably claim to have the total picture” (TUTU, 1996, 11).
E é neste espírito de reconciliação que, em 1995, Desmond Tutu é nomeado pelo então presidente da República Nelson Mandela para presidir à Comissão de Reconciliação e Verdade onde permaneceu até 1998. A função primordial dessa comissão era promover a investigação e divulgação da verdade, assim como o reconhecimento da dignidade das vítimas e o perdão dos perpetradores, visando a reconstrução da estrutura social pós-Apartheid (GIBSON, 2004). Segundo Gianturco (2021), Desmond Tutu afirmou que “não há futuro sem perdão” (TUTU, 1999), mostrando que esse era o caminho. Esse foi o mote para mais um livro publicado em 1999. O No Future Without Forgiveness (1999) discute a importância do perdão e da reconciliação na cura de uma sociedade dilacerada pelo Apartheid na África do Sul. Dizendo não a um caminho de “fácil perdão”, Tutu argumenta que “a verdadeira reconciliação não pode ser alcançada negando o passado […] não é fácil reconciliar quando uma nação olha o monstro nos olhos” (TUTU, 1999). Mas apela ao perdão citando Mateus 18, 21-22.
Até ao final da sua vida, Desmond Tutu foi laureado com diversos prémios e reconhecimentos pelo mundo fora, colocou as suas memórias, angústias e esperanças em 13 livros, o último dos quais partilhado em coautoria com Dalai Lama, o The Book of Joy: Lasting Happiness in a Changing World, publicado em 2016. Nesta colaboração singular, eles proporcionam-nos um reflexo de vidas reais, atravessadas por momentos de dor e adversidade, mas nas quais conseguiram encontrar um nível de paz, coragem e alegria que todos podemos desejar nas nossas próprias vidas. Ambos nutriam respeito, admiração e uma amizade mútua e duradoura, aliás, Desmond Tutu teve uma participação ativa no debate inter-religioso, sendo um dos fundadores do Fórum de Líderes Religiosos, uma iniciativa que visava promover o diálogo e a cooperação entre líderes religiosos de diferentes tradições espirituais, tendo como fim a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e inclusiva (GIANTURCO, 2021).
Desmond Tutu faleceu aos 90 anos de idade. Graça Machel, viúva do presidente Nelson Mandela, descreveu a sua morte como “a perda de um irmão”, salientando que Tutu “é o último de uma geração excecional de líderes que a África gerou e deu ao mundo”. Ela elogiou a sua habilidade para mobilizar sul-africanos, africanos e a comunidade internacional contra a brutalidade e a imoralidade do governo do Apartheid (GIANTURCO, 2021). O Papa Francisco chamou-lhe “Um homem de paz”, o Dalai Lama, “verdadeiro humanitário e defensor dos direitos humanos”, e Nelson Mandela, “O Arcebispo do Povo”.
Desmond Tutu foi também um homem de controvérsias e de muitas declarações polémicas nos vários quadrantes políticos, religiosos e até sociais. Porém, o seu legado perdura como um símbolo de resistência pacífica, reconciliação e justiça. A sua liderança desempenhou um papel crucial na transição para a democracia na África do Sul e inspirou movimentos de direitos humanos em todo o mundo.
O seu compromisso com a reconciliação e a justiça social continua a ser uma fonte de inspiração para as gerações futuras. Um dos seus ensinamentos consiste precisamente nisso, “Se fores neutro em situações de injustiça, escolheste o lado do opressor” (TUTU, 1996).
Bibliografia
Impressa
DU BOULAY, S. (1988). Tutu: Voice of the Voiceless. Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans Pub. Co.
GIBSON, J. L. (2004). “Overcoming Apartheid: Can Truth Reconcile a Divided Nation?” Politikon: South African Journal of Political Studies, 31 (2), 129-155.
TUTU, D. (1982). Crying in the Wilderness: Struggle for Justice in South Africa. Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans Pub. Co.
TUTU, D. (1986). The War Against Children: South Africa’s Youngest Victims. Human Rights First.
TUTU, D. (1996). The Rainbow People of God: The Making of a Peaceful Revolution. New York, NY: Doubleday.
TUTU, D. (1999). No Future Without Forgiveness. New York, NY: Doubleday.
Digital
GIANTURCO, L. & DE ANGELIS, A. (2021, 28 de dezembro). “Desmond Tutu: A ‘força da paz’ é a sua herança”. Vatican News, https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2021-12/desmond-tutu-morte-arcebispo-africa-sul-apartheid-funeral.html (acedido a 15.03.2024).
“The Nobel Peace Prize 1984”, https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1984/summary (acedido a 15.03.2024).
“The Nobel Peace Prize 1984 – Press release”, https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1984/press-release (acedido a 15.03.2024).
Autor: Jorge de Santos-Silva