Utilitarismo [Dicionário Global]
Utilitarismo [Dicionário Global]
Quando Jeremy Bentham publicou, em 1781, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, sistematizou uma teoria moral cujas origens remontam ao hedonismo da Grécia Antiga. Para Epicuro (341-270 a.C.), o objetivo final, mas também o valor intrínseco de toda ação humana, é o prazer. A tese é materialista, isto é, avessa a explicações não causais para eventos mundanos, e figura no centro de uma doutrina explicativa das motivações humanas, tanto quanto reguladora para uma boa condução da vida. Uma teoria, portanto, sobre o móbil das ações em geral, mas também sobre o seu valor. Em que medida uma boa teoria sobre cada um desses elementos é questão central que precisa ser endereçada a todo hedonismo, e o utilitarismo, então plasmado por Bentham, não é exceção.
No mundo contemporâneo, plural no tocante às crenças religiosas, mas profundamente influenciado pela ciência e pelo crescimento econômico, a concepção materialista sobre a natureza da ação humana, subjacente ao utilitarismo, dá-lhe uma vantagem frente a outras correntes de pensamento moral. Bentham apresenta assim o princípio geral a governar as ações humanas: “Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will serve but to demonstrate and confirm it” (BENTHAM, 2000, 14). Essa explicação causal da motivação resolve o problema comum a doutrinas morais não hedonistas, que é dar conta do móbil para ações cujo fim não pendula entre o binômio prazer-dor, mas visa a um bem em si, sem pathos, desapaixonado e quase desencarnado. Para esse bem não hedonista, as consequências da ação são irrelevantes. Seu valor moral não se mede pelo que dela resultará, mas pelo princípio moral que a orienta e pela intenção do agente em se submeter a ele. Como aquele princípio não deriva dos apetites humanos, essa intenção carece de uma base volitiva tangível para agentes sencientes como nós. Essas doutrinas são deontológicas – a sua figura mais influente é Immanuel Kant – e disputam, contemporaneamente, com as doutrinas consequencialistas, dentre as quais conta o utilitarismo, a melhor explicação para o fenômeno moral.
A solução materialista para o problema da motivação conecta os consequencialistas de pedigree hedonista às atuais ciências da natureza humana – Psicologia, Psiquiatria, Neurociências, etc. – e favorece a percepção de que guardam certa neutralidade quanto a valores, tal qual as ciências, de sorte que podem tratar dos problemas da moral de modo mais científico, objetivo, mensurável e, em decorrência de tudo isso, racional. O interesse em dotar a moralidade com características típicas das ciências, especificamente das ciências empíricas, era inequívoco para os utilitaristas. O que Bentham tinha em vista conseguir com sua teoria era incrementar a racionalidade prática, de modo a que as decisões de homens e governos sobre suas ações pudessem levar a sociedade a um grau superior de desenvolvimento, o que resultaria em uma crescente capacidade de satisfazer seus indivíduos, o que para ele significa o mesmo que lhes aumentar o limiar de felicidade.
Graças à dimensão quantitativa implicada no cálculo de felicidades, o utilitarismo é especialmente bem talhado para influenciar os formuladores de políticas públicas. A consideração de resultados mensuráveis para a avaliação das ações e, com isso, a possibilidade de comparação entre cursos divergentes de ação de agentes públicos respondem muito bem à expectativa moderna por racionalidade nas coisas do Estado. Expressão, no século XVIII, de um desejo por melhoria contínua das condições de vida dos concernidos por políticas públicas, o princípio utilitarista incorporou-se, em muitos países, à própria legislação concernente ao controle dessas ações. Sua performance face aos direitos humanos, contudo, é muito mais problemática. O ponto, aqui, está na teoria subjacente ao utilitarismo sobre o valor da ação, para o qual conta a maximização da felicidade dos concernidos, o que encerra duas dificuldades: a definição de felicidade e a possibilidade de que o seu montante acomode a desconsideração das necessidades de um ou alguns indivíduos em detrimento de muitos. No tocante ao utilitarismo, e seus congêneres consequencialistas, a teoria do valor está orientada por resultados ponderados, resultados, portanto, que eventualmente podem ser indiferentes a um único indivíduo ou a uma minoria deles.
O problema dos direitos individuais assombra o hedonismo, mas seria ele apenas um espantalho? É preciso ter em conta que o hedonismo foi concebido desde o ponto de vista de uma vida comunitária, como de resto é a vida humana em geral. Uma vida boa é uma vida boa numa comunidade. Para o utilitarismo, a pergunta é como o princípio de utilidade se relaciona com a dignidade individual. Hutchinson, que consta como um dos primeiros a formulá-lo modernamente, apresenta-o assim no segundo tratado de seu An Inquiry into the Original of Our Ideas of Beauty and Virtue: “that Action is best, which procures the greatest Happiness for the greatest Numbers; and that, worst, which, in like manner, occasions Misery” (HUTCHINSON, 2004, 125). Em relevo está uma teoria do valor da ação com base na soma total do montante de felicidade que ela proporciona. Na contramão do que viria a ser central para o utilitarismo, Hutchinson inclui na valoração do feito o mérito do agente. No parágrafo seguinte ao que foi citado, reitera algo que já pontuara antes no texto: “Here also the moral Importance of Characters, or Dignity of Persons may compensate Numbers” (HUTCHINSON, 2004, 125). Então, embora o princípio da máxima felicidade sirva como medida do valor moral da ação, ele pode levar em conta o valor do indivíduo. Não de todos igualmente, contudo, mas seletivamente. Sob que critério?
Conquanto a filosofia moral de Hutchinson difira substancialmente da dos utilitaristas clássicos, o problema da determinação do valor da ação com base na felicidade dos concernidos tem também em sua filosofia uma dimensão subjetiva incômoda. Com Bentham, o problema implica o próprio móbil da ação. Com efeito, à sequência da formulação do princípio hedonista da ação humana, ele o vincula assim ao princípio da utilidade: “[…] The principle of utility recognizes this subjection [ao governo dos mestres soberanos, dor e prazer], and assumes it for the foundation of that system, the object of which is to rear the fabric of felicity by the hands of reason and of law” (BENTHAM, 2000, 14). O móbil da ação tem por objeto aquilo que lhe dá valor, a felicidade, que é o resultado do balanço positivo entre prazer e dor. A medida desse balanço, contudo, é um sentimento subjetivo.
A conexão hedonista e fundamental para o utilitarismo entre valor, sentimento e móbil para a ação foi feita com clareza por Hume, em seu tratado de 1739/1740: “Desse modo, quando declaramos que uma ação ou caráter são viciosos, tudo que queremos dizer é que, dada a constituição de nossa natureza, experimentamos uma sensação ou sentimento [a feeling or sentiment] de censura quando os contemplamos. […] Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer; e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento” (HUME, 2000, T. L 3, P 1, S 2. § 26).
Contemporaneamente, essa posição sobre o valor das ações é denominada de “expressivismo”. Expressivistas são não cognitivistas, para os quais enunciados morais não são verdadeiros nem falsos, uma vez que, supostamente, não fazem referência a crenças, mas a atitudes, positivas ou negativas, em relação a fatos. Eles concordam que os predicados morais não sejam sobre propriedades objetivas, mas sobre atitudes subjetivas. Nesse sentido, não há fatos morais, mas reações, emocionalmente carregadas, a fatos considerados sob avaliação moral. Ao negar a enunciados morais referência a crenças, os expressivistas têm dificuldade em explicar sua força normativa. A referência a crenças nas descrições é suficiente para sustentar sua reivindicação de validade, uma vez que as crenças são sobre objetos compartilhados. As reações morais, porém, são atitudes subjetivas baseadas em emoções e preferências.
O ferramental contemporâneo que discute o expressivismo ajuda a entender a dificuldade dos utilitaristas com respeito ao valor das ações. O prazer é subjetivo, e, se ele é o guia da felicidade, ela também o é. E, agora, se o fim, a felicidade, é subjetivo, a eleição dos meios conducentes a ela também o será. Parece então que a doutrina calcada no hedonismo materialista se enreda inelutavelmente num relativismo incompatível com as intuições morais ordinárias, mas também com a pretensão de racionalidade que ergue.
O hedonismo epicurista tem matiz muito diferente daquele que o termo veio a adquirir. Como doutrina para a condução da vida, o epicurismo não pregava uma vida sem peias, mas um regramento nas ações, de modo a manter, tanto quanto possível, uma vida simples, a mais vocacionada a promover a ataraxia e a aponia, i.e., uma tranquilidade livre de medos e dor. Há então o reconhecimento de que o fim último, a vida prazerosa, é definida sobretudo pela ausência de sofrimento e ameaças, não tanto pela presença de eventos gozosos. Além disso, está implícito que a boa vida, a vida que vale a pena perseguir, é a que satisfaz os apetites humanos, os quais, dada a natureza da espécie, incluem o convívio em grupos e apetites inacessíveis para outras espécies com desenvolvimento cognitivo inferior.
Grande parte do esforço de John Stuart Mill, o segundo grande fundador do utilitarismo, no livro que leva o nome da doutrina, foi dedicado a apontar e combater as simplificações grotescas – e quem sabe maliciosas – de muitos dos detratores do princípio da utilidade. “Human beings have faculties more elevated than the animal appetites, and when once made conscious of them, do not regard anything as happiness which does not include their gratification. […] It is quite compatible with the principle of utility to recognise the fact, that some kinds of pleasure are more desirable and more valuable than others” (MILL, 2001, 11).
Contra as críticas aos princípio da maior felicidade, como Bentham também denominou o princípio da utilidade, a conexão entre valor e prazer exige uma teoria sobre o prazer; sobre uma escala de prazeres. Mas não apenas isso. Como aventado, no que tange ao prazer, tão importante quanto saber o que o provoca positivamente é o conhecimento daquilo que se opõe a ele, daquilo que tira prazer, como a dor e as inquietações humanas. O utilitarismo, por certo, não desconsidera isso tanto quanto não o fazia o hedonismo epicurista. Uma teoria assim, porém, pode ser bastante mais complicada do que o princípio de utilidade deixa entrever, já que a constituição subjetiva dos indivíduos e cultural das comunidades pode variar bastante e criar embaraços significativos à elaboração de uma teoria geral e objetiva do prazer e da dor.
Há, além disso, uma dimensão que agrega mais uma camada de consideração na avaliação moral das ações conducentes à felicidade: a que tem em vista os concernidos. Nos termos de Mill, “I must again repeat, what the assailants of utilitarianism seldom have the justice to acknowledge, that the happiness which forms the utilitarian standard of what is right in conduct, is not the agent’s own happiness, but that of all concerned” (MILL, 2001, 19). Corrige-se com essa observação a crítica mal colocada de que a felicidade que o utilitarismo tem em vista é apenas a dos indivíduos considerados em si mesmos, e não a comunidade concernida na ação em avaliação. De fato, do ponto de vista moral, não há ações cuja mensuração de valor não tenha de levar em conta os demais, pois é da natureza da moralidade a relação com os outros, mesmo quando se trata de escolher os caminhos para a própria vida. São caminhos do indivíduo em relação aos demais, os que têm dimensão moral. Inobstante essa correção necessária e oportuna, a teoria do valor esposada pelo utilitarismo não fica facilitada pelo acréscimo desta camada censitária. A raiz sensitiva do conceito de “felicidade” não se altera se considerarmos não um mas um conjunto de indivíduos. E a sensibilidade tem uma evidente espessura estética, logo, subjetiva, que serve mal ao anseio por uma avaliação objetiva sobre o valor moral das ações. Para resolver a dificuldade, seria necessário enquadrar pelo menos uma parte da sensibilidade, a concernida nos limites da moralidade, sob um elemento universalizador. Para a Modernidade, a natureza humana era esse elemento, mas esse é um recurso temerário.
Embora tenha sido uma moeda corrente entre os modernos, em face à pluralidade cultural contemporânea, a ancoragem da universalidade moral na natureza humana não prospera sem uma aliança forte com outras ciências. Em todo caso, uma abordagem evolucionista, crescentemente influente nos nossos dias a partir da investigação, por exemplo, da primatologia, não estava disponível para os utilitaristas do século XVIII e certamente não influenciou Mill no século XIX. Mas também não seduz o suficiente os consequencialistas de hoje, de sorte que, tanto então como agora, seja inevitável concluir que, quando vinculado à noção de felicidade, o espectro do que é moralmente bom seja largo demais para permitir uma aplicação uniforme e sem contestações. Nesse cenário, o utilitarismo encontrou guarida no princípio da conveniência entre meios e fins (expediency), um princípio pragmático e prudencial que pode ser aplicado sem uma consideração valorativa sobre os fins. O que se tem em vista com ele é se os meios são adequados aos fins, e não se os fins são bons, num sentido moral relevantemente objetivo. Esta solução, entretanto, arrisca agregar animosidade à teoria utilitarista do valor.
Mill confronta-se com o problema. Citando uma crítica espirituosa ao utilitarismo, ele menciona uma formulação que resume o caso: a doutrina utilitarista seria “as impracticably dry when the word utility precedes the word pleasure, and as too practicably voluptuous when the word pleasure precedes the word utility” (MILL, 2001, 9). A defesa de Mill consiste em temperar o uso do princípio da utilidade com a experiência humana, que já nos teria munido com um tipo de sabedoria prática confiável para favorecer exceções em casos fronteiriços. Seu exemplo é o caso da licença para mentir em defesa de um indivíduo. Sobre onde colocar os limites da liberalidade face à mentira, diz ele o seguinte: “But in order that the exception may not extend itself beyond the need, and may have the least possible effect in weakening reliance on veracity, it ought to be recognised, and, if possible, its limits defined; and if the principle of utility is good for anything, it must be good for weighing these conflicting utilities against one another, and marking out the region within which one or the other preponderates” (MILL, 2001, 24-25).
É difícil ver como se poderia definir o limite até onde se poderia romper regras para proteger um indivíduo senão por alguma consideração pela intenção do agente. Como é evidente que não se pode prever o resultado de pequenas violações para o conjunto do sistema normativo, ou se considera qualquer ruptura ilegítima, o que seria coerente com a racionalidade (vis-à-vis a utilidade) da imposição de regras, ou se tem de julgar a ação levando-se em conta, em alguma medida, a intenção do agente e a qualidade moral do paciente, a vítima. Mentir para salvar um inocente é diferente de mentir para salvar um bandido. O caráter do indivíduo em questão pode, contudo, não ser conhecido pela comunidade, como via de regra não o é. Sob o efeito dessa ignorância, a mentira pode ser nefasta, seja ele culpado ou inocente. O caso traz à baila uma dimensão valorativa não redutível às consequências da ação, mas decorrente do valor intrínseco da pessoa e da intenção do agente. Uma defesa da dimensão prática do utilitarismo, temperada agora por um elemento não inteiramente consequencialista, põe em evidência a maior dificuldade da teoria do valor utilitarista e aquilo que de fato a separa inequivocamente das correntes deontológicas: “The motive has nothing to do with the morality of the action, though much with the worth of the agent. He who saves a fellow creature from drowning does what is morally right, whether his motive be duty, or the hope of being paid for his trouble; he who betrays the friend that trusts him, is guilty of a crime, even if his object be to serve another friend to whom he is under greater obligations” (MILL, 2001, 20).
Do ponto de vista prático, é contraintuitivo defender que salvar uma pessoa do afogamento sem esperar recompensa não seria melhor do que na expectativa dela. Afinal, no mínimo, o exemplo de heroísmo do caso favoreceria a solidariedade desinteressada em situações de emergência e serviria ao estreitamento dos laços comunitários e, com isso, à cooperação entre seus membros como nenhum seguimento frio e interessado de regras seria capaz de fazer. Fica claro que não é trivial avaliar a utilidade de uma ação desconsiderando de modo tão crasso a intenção dos agentes, tal como Mill o faz: “for certainly no known ethical standard decides an action to be good or bad because it is done by a good or a bad man, still less because done by an amiable, a brave, or a benevolent man, or the contrary. These considerations are relevant, not to the estimation of actions, but of persons” (MILL, 2001, 21).
O que então opõe o utilitarismo a correntes deontológicas não é a consideração por virtudes caras aos homens, como temperança e moderação, nem a dimensão social ou comunitária da avaliação moral. Por aí não prospera a crítica ao princípio da maior felicidade. Nem mesmo a crítica de que se trata de um princípio da mera conveniência entre meios e fins (expediency) de cunho eminentemente pragmático, mas mesquinho. O elemento pragmático é chave para a distinção do utilitarismo com respeito às doutrinas deontológicas, mas não pela razão de que não pode ser adornado por considerações elevadas de interesse coletivo. Sob esse aspecto, dá-se o contrário até, já que para o utilitarista é esse interesse coletivo que, confrontado com o interesse meramente individual, o supera em valor pelo princípio da maior felicidade de todos os concernidos. Mas também não por privilegiar a eficácia em detrimento da virtude, pois, de fato, a boa intenção do agente não torna eficaz a ação que, por ineficaz, pode ser desaprovada. De boas intenções o Inferno está cheio, diz o ditado de índole consequencialista. Não obstante tudo isso, face à incerteza quanto às consequências de qualquer ação – e lembremos que num mundo causal elas se estendem ao fim dos tempos –, é contraintuitivo aceitar que a qualidade moral da ação seja indiferente à qualidade moral do agente. Dada nossa ignorância sobre o futuro, o melhor, e, voilá, pragmaticamente mais recomendável, é que as pessoas ajam de boa índole e sejam julgadas por isso, mesmo que o resultado imediato e tangível de suas ações seja, vez ou outra, uma catástrofe.
O utilitarismo teria então a ganhar se incluísse em sua teoria do valor o mérito pessoal. Hume fez isso, e por essa razão sua filosofia, embora calcada na divisa da utilidade, não é utilitarista, no sentido da doutrina elaborada por Bentham e Mill. É certo que falta a Hume o
ânimo prescritivo, o que o poupa de um racionalismo legislativo, e é certo também que, sobretudo por esse último aspecto, seja inadequada sua subsunção ao conjunto dos utilitaristas.
Por outro lado, há uma inegável ironia em que, por vias opostas, haja uma inesperada convergência entre consequencialistas e deontologistas em suas disposições normativas e racionais. Num mundo causalmente determinado, mas incognoscível, o melhor é que se siga a regra cegamente. A diferença é que, para o consequencialista, a intenção do agente não corrobora o valor da ação, e, para o deontologista, a intenção decisiva para o valor da ação é a de seguir a regra moral que a deve orientar. Em ambos os casos, o apelo a algum sentimento de humanidade, ainda que elogiável, é desnecessário para se estabelecer o reino dos fins ou promover a maior soma de felicidade para o maior número de pessoas. Uma sociedade de diabos também pode prosperar, se todos seguirem a lei, defende Kant. Não sem consagrar, é verdade, o respeito à dignidade da pessoa na segunda formulação de seu imperativo categórico. A esse propósito, é inegável que os deontologistas tenham uma teoria do valor mais substantiva que os consequencialistas. O que falta aos deontologistas é a prova de que podemos nos determinar pela razão, e por ela apenas.
O balanço que se pode fazer é que o utilitarismo é melhor como teoria da ação do que como teoria do valor. Derivar a ação do hedonismo natural que nos caracteriza como espécie ecoa muito bem o estado atual de nossas ciências sobre a natureza humana. Já o descolamento do valor das intenções do agente favorece uma orientação à eficácia prática das ações que habilita o utilitarismo a servir de base ética à avaliação das ações de Estado mais do que qualquer outra doutrina. Conta em favor disso, ademais, o fato de que, para os utilitaristas, a natureza desejante dos homens não repugna, mas agrega.
Ao contrário de propugnarem uma vida acética, os utilitaristas reconhecem, mais uma vez em consonância com sua filiação hedonista e materialista, que temos corpos e que há muito mais a desejar do que apenas a virtude: “Utilitarians are quite aware that there are other desirable possessions and qualities besides virtue, and are perfectly willing to allow to all of them their full Worth” (MILL, 2001, 22). Nesse diapasão, que os economistas facilmente esposem o utilitarismo como ponto de partida moral para a avaliação da eficácia de políticas públicas parece óbvio. Como teoria para tomada de decisão (racional, como querem) no âmbito do Estado, o utilitarismo está mais bem equipado que os deontologistas, para os quais o fim último é o progresso moral, a despeito do mundo e seus habitantes. É por isso que privilegiam o Direito, que para eles não é um meio a um fim em aberto. Já para os utilitaristas, não faz sentido definir um fim moral último independente do maior montante de prazer, já que é isso que subjaz ao valor moral. Esse montante, contudo, é preciso reconhecer, é um conjunto aberto, mas que, ainda assim, deveria ser capaz de animar as leis e tomadas de decisão.
Podemos retomar agora o ponto sobre a desconsideração do indivíduo ou de minorias na ponderação da soma total de felicidade. A teoria do valor do utilitarismo, ao separar a avaliação do valor da ação da intenção do agente, reconhece, como já anunciava Cícero, outro precursor do utilitarismo, uma ratio publicae utilitatis. Situações excepcionais exigem medidas em que o indivíduo tem valor mitigado frente à comunidade. Essa é uma característica relevante e, pelo menos do ponto de vista prático, valiosa do utilitarismo.
É louvável que utilitaristas contemporâneos como Peter Singer tenham feito um esforço para demonstrar a racionalidade do cuidado universal em termos utilitaristas, incluindo, inclusive, outros animais. Mas é também notável que esse movimento exija um tipo de racionalidade dependente da determinação de um valor intrínseco e não exclusivamente hedonista aos indivíduos. Que exija, enfim, o que está no âmago da segunda formulação do imperativo categórico de Kant (cf. KANT, 1980): o reconhecimento da dignidade da pessoa e até de animais não humanos.
A doutrina utilitarista de Peter Singer (1980), um dos mais influentes eticistas contemporâneos, destoa, pois, de seus progenitores clássicos em aspectos fundamentais para o utilitarismo. A defesa de que o interesse de cada um deve ser considerado em igual medida a habilita, contudo, a circular com desembaraço entre as democracias hodiernas, para as quais o respeito aos direitos individuais é elemento ineludível das políticas públicas. Ou pelo menos é assim que elas têm de se apresentar: como inclusivas. Essa correção do utilitarismo clássico com respeito à sua teoria do valor pode ser vista como um aggiornamento, mesmo que em detrimento de alguma coerência teórica. Não se dá, contudo, sem ônus. Se todos valem igualmente, o montante total das felicidades não é um todo indiferente às partes, mas um todo que se conhece apenas mediante a apreciação da felicidade de cada um. Em termos práticos, esse novo utilitarismo soma à incerteza sobre o futuro a crescente dificuldade para a determinação do valor da ação quanto maior for o número dos concernidos. Se levado a sério por governos, esse utilitarismo sem ratio publicae utilitatis pode levar à acrasia ou ao cinismo populista, duas das mais graves, e não excludentes, doenças dos governos contemporâneos.
Bibliografia
BENTHAM, J. (2000). An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Kitchener: Batoche Books.
HUME, D. (2000). Tratado da Natureza Humana. Trad. D. Danowski. São Paulo: UNESP.
HUME, D. (2004). Investigações sobre os Princípios da Moral. Trad. J. O. de A. Marques. São Paulo: UNESP.
HUTCHINSON, F. (2004). An Inquiry into the Original of Our Ideas of Beauty and Virtue in Two Treatises. Indianapolis: Liberty Fund.
KANT, I. (1980). Metafísica dos Costumes. Trad. P. Quintela. São Paulo: Abril Cultural.
MILL, J. S. (2001). Utilitarianism. Kitchener: Batoche Books.
SINGER, P. (1980). Practical Ethics. Cambridge: Cambridge University Press.
Autor: Adriano Naves de Brito