Utopia [Dicionário Global]
Utopia [Dicionário Global]
O direito ao sonho não figura entre os 30 direitos humanos que a Organização das Nações Unidas proclamaram em 1948. O escritor uruguaio Eduardo Galeano fez notar essa ausência num artigo que publicou na sua coluna do jornal El País a 25 de dezembro de 1996, lembrando que, “se não fosse por ele [o direito ao sonho], e pelas águas que dá a beber, os demais direitos morreriam de sede”. E por isso desafiava Galeano os seus leitores, nessa viragem de milénio, a delirarem um pouco para “adivinharem outro mundo possível”. O artigo terminava com um texto em prosa poética prevendo, para o novo milénio, um tempo de paz e de solidariedade em que se trabalharia para viver, em vez de se viver para trabalhar, que a guerra seria travada não contra os pobres, mas contra a pobreza, que a comida não seria uma mercadoria, que a comunicação não seria um negócio – pois são direitos humanos –, que ninguém morreria de fome e que os meninos da rua não seriam tratados como lixo, porque não haveria mais meninos da rua (GALEANO, 1996). Formulando a reivindicação do direito ao sonho nestes termos, Galeano relacionava-a intencionalmente com a tradição de literatura utópica que, de forma consistente, se desenvolveu no Ocidente desde que Thomas More publicou a sua obra-prima, Utopia, em 1516. Foram muitas as intervenções públicas em que o autor leu o seu poema, aproximando o conceito de “sonho” do de “utopia” (cf., e.g., GALEANO, s.d.).
A literatura utópica é um produto claro do pensamento humanista que reconhece que, recorrendo à razão, o ser humano será capaz de construir o seu destino. Trata-se, contudo, de um pensamento humanista cristão, marcado pela ideia de pecado original. Para C. E. Berriel, o género literário utópico sintetiza a complexa dinâmica renascentista entre a tradição e a reforma (cf. BERRIEL, 2022, 295). Para um humanista cristão como Thomas More, a construção de uma sociedade melhor dependeria, pois, de uma solução política, assente em leis capazes de regular os comportamentos humanos. Assim se compreende que a sociedade ideal descrita em Utopia seja tão impositiva em termos de prescrição da vida social, profissional e privada. A regulação e controle de todos os momentos da vida dos habitantes da ilha da Utopia deve ser, contudo, paradoxalmente entendida como a concretização de um verdadeiro projeto de transformação social, traduzido na libertação dos indivíduos. Na verdade, no Renascimento, liberdade e igualdade tornam-se sinónimos: a lei é libertadora porque impõe a igualdade de direitos de todos os seres humanos, ao mesmo tempo que os protege da ação abusiva do Estado (cf. VIEIRA, 2005). Por essa razão é que a utopia verdadeiramente revolucionária de Gerrard Winstanley se intitula A Lei da Liberdade numa Plataforma (The Law of Freedom in a Platform) (1652). Só assim se crê ser possível uma vida digna.
O conceito de “dignidade”, que atravessou a Antiguidade Clássica e a Idade Média e assentava nas ideias de mérito e privilégio, muda, assim, com a literatura utópica, informada por uma ideia mais moderna – a ideia da “dignidade humana”. É esse, aliás, o objetivo das utopias literárias: explorar fórmulas políticas com vista a evidenciar possibilidades de criação de sociedades nas quais as condições de vida de todos os seres humanos sejam dignas. A literatura utópica revela-se terreno privilegiado para estas especulações pela perspetiva holística que oferece: ao descrever sociedades imaginárias em funcionamento, evidencia os princípios, práticas, códigos e normas necessários para a salvaguarda dos direitos humanos, ainda que, no Renascimento, a terminologia utilizada não fosse esta. Na verdade, como nota Miguel Ramiro Avilés (2022, 409), apenas no Iluminismo começarão as utopias literárias a refletir a “linguagem” dos direitos, uma linguagem que ainda hoje as informa, visto que os pressupostos ontológicos sobre os quais repousam os direitos humanos – dignidade humana, liberdade, igualdade, fraternidade – não foram ainda concretizados. Neste sentido, a indagação utópica corresponde a uma busca pelas fórmulas sociais e políticas que melhor concretizam o conceito de uma vida digna para todos os indivíduos. Há, naturalmente, exceções na vasta produção utópica ocidental, isto é, utopias literárias que continuam a refletir a ideia de privilégios só para alguns, como é o caso de algumas utopias publicadas em Inglaterra no período da Restauração, de que New Atlantis: Begun by Lord Verulam, Viscount St. Albans, and Continued by R. H. Esquire, Wherein is est forth a Platform of Monarchical Government (1660) é um bom exemplo. Estas utopias conservadoras não constituem, contudo, a norma.
Na primeira utopia literária (1516), assinada por Thomas More, encontramos já a reivindicação de direitos básicos humanos: o direito à participação política (cada grupo de 30 famílias elege um sifogranto; cada grupo de 10 sifograntos elege um traníboro; os 200 sifograntos de uma cidade elegem o principem através de voto secreto), o direito à educação (também para as mulheres; todos os cidadãos são estimulados a continuarem os seus estudos nos tempos livres depois de terem concluído a sua educação formal) e o direito à liberdade religiosa. Note-se que, embora nesta obra-prima de More a liberdade religiosa seja explicitamente referida nestes termos, ela não é efetiva, pois os habitantes da ilha da Utopia que não acreditem nos preceitos cristãos não são considerados cidadãos. Os cinco séculos seguintes de produção utópica serão marcados pela reivindicação destes e outros direitos, sempre tidos como pressupostos de uma vida digna.
Para Gerrard Winstanley, por exemplo, a dignificação do trabalho só será possível se o camponês trabalhar as suas próprias terras. Falando em nome de um povo que, sem possuir terras, não tem o direito de expressar a sua vontade política e, assim, defender os seus interesses, Winstanley defende que todos os seres humanos têm, por nascimento, direito à terra e ao trabalho. Assim se compreende que, em A Lei da Liberdade numa Plataforma, o governo tenha como principal função o controle da ordenação das terras e do comportamento humano. As 62 leis que compõem a Constituição da sociedade descrita por Winstanley regulamentam não apenas a ordem política e económica, mas também os próprios comportamentos sociais. O reformador inglês acreditava que estas leis severas (que incluíam a pena de morte para quem distorcesse o espírito da lei) criariam no ser humano uma segunda natureza, preparada para a convivência pacífica em sociedade. Embora defendendo um ponto de vista diferente – o da burguesia que se pretende contrapor ao poder aristocrático, baseado na propriedade de terras –, também James Harrington defende, em Oceana (1656), a imposição de “leis agrárias” que assegurem o equilíbrio da distribuição da propriedade e, por arrastamento, do poder político. Advogando o princípio de que não são os bons homens que fazem as boas leis, mas as boas leis que fazem os bons homens, Harrington concebe um sistema que previne eventuais abusos de poder através da instituição de eleições anuais (por voto secreto). O direito à liberdade religiosa – e, em particular, à libertação de uma religião revelada – marca igualmente algumas utopias do século XVII, como é o caso de História dos Sevarambes (Histoire des Sevarambes) (1667-69), de Denis Veiras, e de As Aventuras de Jacques Sadeur (Les Aventures de Jacques Sadeur) (1676), de Gabriel de Foigny. Pela forma como rejeitam a ideia do pecado original, oferecendo uma perspetiva mais positiva sobre a natureza humana, estas utopias anunciam já o utopismo otimista que caracterizará o século XVIII. As Viagens de Gulliver (Gulliver’s Travels) (1726), de Jonathan Swift, é uma exceção importante ao otimismo iluminista, fruto de uma cosmovisão cristã que não concebe possibilidade de recuperação da Queda.
Informadas pela ideia de aperfeiçoamento infinito do ser humano, tão bem formulada por Turgot nos discursos que faz à Sorbonne, em 1750, as utopias iluministas lançar-se-ão no futuro: se o futuro é concebido como potencialmente perfeito, apenas nesse tempo se poderá a sociedade ideal localizar. Assim nasce a primeira eucronia (cuja etimologia nos reporta para um “tempo de felicidade”), Ano 2440: Um Sonho, se é que o Foi (L’An 2440, Rêve s’Il en Fut jamais). Publicado em 1771, este texto de Louis-Sebastien Mercier oferece um retrato da cidade de Paris num futuro longínquo – uma sociedade harmoniosa, graças ao progresso da ciência e à confiança na razão humana. Mercier traduz assim uma perspetiva otimista do ser humano e, por conseguinte, da sociedade, que, sendo habitada por um novo homem, mais perfeito, é capaz de conceber um sistema político modelar, no qual todos os direitos são considerados e respeitados.
O século XVIII será também marcado pelo espírito reformista e renovador das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789). Os Direitos do Homem (The Rights of Man) (1791-1792), de Thomas Paine, Inquérito sobre a Justiça da Política (Enquiry Concerning Political Justice) (1793), de William Godwin, e Uma Reivindicação dos Direitos da Mulher (A Vindication of the Rights of Woman) (1792), de Mary Wollstonecraft, são três textos seminais para se compreender a forma como o conceito de “dignidade” é equacionado pelo setecentismo finissecular. Paine defende que todos os seres humanos nascem iguais, no sentido em que nascem com os mesmos direitos: direitos humanos (inerentes aos direitos de existência) e direitos civis (naturais e adquiridos pelo indivíduo quando se integra em determinada sociedade). Argumentando que todas as leis essenciais da sociedade são leis da natureza, capazes de assegurar uma vida harmoniosa, Paine defende que a civilização será tanto mais perfeita quanto menor for o grau de intervenção do governo: apenas vivendo em liberdade, de acordo com a razão, poderá o ser humano experienciar uma vida digna. Esta ideia será também defendida por William Godwin, para quem a transformação social apenas será possível através da educação livre dos indivíduos. O “homem novo”, educado, saberá interpretar e executar com sageza as leis morais (que emanam da razão), tornando irrelevante a criação de leis repressivas e sancionadoras criadas pelo governo; será, ainda, capaz de neutralizar o seu instinto de posse, desenvolvendo um espírito filantrópico que o levará a querer partilhar livremente a sua propriedade. A dignidade humana dependerá, pois, para Godwin, do direito à educação. Semelhante raciocínio será feito por Mary Wollstonecraft, mas em relação às mulheres: para viverem dignamente em sociedade, estas deverão receber uma “educação racional”, em vez da tradicional “educação doméstica”. Apenas se for devidamente educada poderá a mulher estar preparada para transmitir conhecimento aos seus filhos e ser um membro participante na vida social e política. A ideia de que as mulheres só poderão viver uma vida digna se lhe forem reconhecidos direitos sociais e políticos alimentará as utopias feministas do século XX, de que A Terra das Mulheres (Herland) (1915), de Charlotte Perkins Gilman, A Mão Esquerda das Trevas (The Left Hand of Darkness) (1969), de Ursula K. Le Guinn, O Homem Fêmea (The Female Man) (1976), de Joanna Russ, e Uma Mulher no Limiar do Tempo (Woman on the Edge of Time) (1976), de Marge Piercy, são excelentes exemplos.
A educação como fórmula para a transformação da sociedade marcará também o século XIX. Robert Owen di-lo claramente em Uma Nova Visão da Sociedade (A New View of Society) (1816), ao alegar que, uma vez que são as circunstâncias que moldam o carácter dos indivíduos, a única solução será mudar essas circunstâncias. Para Owen, reformar equivale, pois, a educar. São muitas as propostas que o socialista utópico faz – e que concretiza, na sua fábrica têxtil em New Lanark, na Escócia – para solucionar problemas concretos da vida dos operários, como a redução do horário de trabalho, a atribuição de um horário justo, a educação de pais e filhos e a concessão de casas limpas e arejadas, entre outras medidas que asseguram uma vida digna. Só assim poderá nascer o “novo mundo moral” que Owen anuncia em vários textos, ideia que será contrariada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (1848). Para estes teóricos políticos, antes de esperarmos que o ser humano mude, teremos de mudar o modo de produção da vida material, já que é ele que condiciona todo o processo da vida social, política e intelectual. Como explicam Marx e Engels em A Ideologia Alemã (1846), só na sociedade pós-revolucionária poderão os indivíduos transformar-se verdadeiramente. Uma vez extinto o sistema de divisão do trabalho que faz dos seres humanos meras extensões do processo produtivo, os indivíduos afirmar-se-ão como produtores espontâneos e ecléticos. A transformação da sua relação com o trabalho refletir-se-á numa miríade de relações harmoniosas com os outros indivíduos e com a natureza. Esta teoria é exposta, sob a forma de utopia literária, mais para o final do século, quando William Morris publica News from Nowhere (1890), em que nos oferece o retrato de uma sociedade pós-revolucionária, sem propriedade privada e sem leis, na qual todos os indivíduos são iguais e têm direito a uma vida digna.
A esperança numa mudança social efetiva esmorece no século XX, com as duas guerras mundiais. É nesse contexto que floresce a literatura distópica, cujo exemplo mais conhecido é 1984 (1949), de George Orwell. Na sociedade de Oceania, o Estado do Big Brother exerce a sua autoridade de forma violenta e nega aos indivíduos a possibilidade de uma vida digna – porque lhes é negado o amor, a informação e a liberdade de escolha. Bastará pensarmos na fragilidade física e psicológica do protagonista Winston Smith no final do romance. Quando proclama o seu amor por Big Brother, não lhe é detetável réstia de dignidade humana. De uma forma geral, a literatura distópica oferece retratos de degradação humana sob regimes totalitários. O Diário de Uma Serva (The Handmaid’s Tale) (1985), de Margaret Atwood, imagina uma sociedade onde as mulheres não têm quaisquer direitos, sendo utilizadas apenas para fins reprodutivos. É o mais fundo da indignidade que encontramos, de facto, na serva Offred (literalmente “de Fred”, pertencente a “Fred”), quando se encontra ajoelhada para ser fertilizada pelo Comandante. Apesar destas imagens atrozes, as distopias não transmitem uma mensagem pessimista, antes pelo contrário: pretendem constituir-se como alertas para que compreendamos as indignidades que poderemos conhecer, enquanto comunidade, se não soubermos defender o nosso direito à autodeterminação.
A literatura utópica e distópica é essencial para que compreendamos, enquanto sociedade, os caminhos que podemos construir para termos uma vida digna. O estudo da sua história permite-nos entender as preocupações e as batalhas que tiveram de ser travadas em cada época. Se os primeiros séculos de produção literária utópica traduzem lutas várias pelo direito à participação política, à educação e à liberdade religiosa, o século XX juntou a estas lutas a defesa dos direitos das mulheres e desenhou combates que dobraram o nosso século e que se prendem com a nossa relação com a natureza – de que é exemplo Ecotopia (1975), de Ernest Callenbach – e com os animais – numa reflexão ecológica teorizada já por Henry Salt em Os Direitos dos Animais Considerados na Sua Relação com o Progresso Social (Animal Rights Considered in Relation to Social Progress) (1892) (cf. REIS, 2022). Preocupações mais recentes, de que depende uma vida digna em sociedade, como os direitos queer ou o direito à informação e à salvaguarda dos nossos direitos privados (como os nossos biodados), têm inspirado essencialmente distopias.
Circunstâncias tão variadas como os conflitos armados que grassam em todo o mundo, o crescimento do populismo, a fobia à diferença ou até mesmo o receio de pandemias globais têm esmorecido o espírito utópico. Ele é essencial, contudo, para que possam ser concebidas fórmulas capazes de resolver estes problemas. A conformação com a realidade gera inação. A defesa da utopia – do direito ao sonho, como dizia Galeano – é o único caminho possível, pois pressupõe a criação de novas formas de se olhar para os problemas. Se, como diz Miguel Ramiro Avilés, os pressupostos ontológicos sobre os quais repousam os direitos humanos não foram concretizados, é porque não conseguimos ainda imaginar as respostas de que necessitamos. A literatura utópica oferece-se como lugar privilegiado para testar, de forma holística, essas novas fórmulas que estão ainda por inventar.
Bibliografia
Impressa
AVILÉS, M. R. (2022). “Human Rights”. In P. Marks et al. (eds.). The Palgrave Handbook of Utopian and Dystopian Literatures. London: Palgrave Macmillan.
BERRIEL, C. E. (2022). “Humanism”. In P. Marks et al. (eds.). The Palgrave Handbook of Utopian and Dystopian Literatures. London. Palgrave Macmillan.
REIS, J. E. (2022). “Animal Rights”. In P. Marks et al. (eds.). The Palgrave Handbook of Utopian and Dystopian Literatures. London: Palgrave Macmillan.
VIEIRA, F. (2005). “Utopia, Freedom, Liberty and Liberties”. Revista Anglo-Saxónica, II (23), 323-333.
Digital
GALEANO, E. (s.d.). “El derecho al delirio”, https://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8 (acedido a 24.01.2024).
GALEANO, E. (1996, 26 dez.). “El derecho de soñar”. El País, https://elpais.com/diario/1996/12/26/opinion/851554801_850215.html (acedido a 24.01.2024).
TURGOT, A. R. J. (1750). “Discours sur les progrès successsifs de l’esprit humain”, https://www.institutcoppet.org/turgot-discours-sur-les-progres-successifs-de-lesprit-humain-1750/ (acedido a 24.01.2024).
Autora: Fátima Vieira