• PT
  • EN
  • Vida, Direito à

    Vida, Direito à

     O direito à vida é um dos direitos mais referenciados em instrumentos de Direito internacional e nacional relativos aos direitos humanos e fundamentais, normalmente nos catálogos dos direitos, liberdades e garantias.

    Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993, 174), na anotação ao art. 24.º (Direito à vida) da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, referem que o direito à vida é não só o primeiro direito fundamental constitucionalmente enunciado, como é “um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos das pessoas”. Mais entendem que o direito à vida beneficia de uma proteção constitucional absoluta, não admitindo qualquer exceção, gozando do estatuto constitucional de “direito fundamental qualificado”, podendo ser invocado pelos particulares contra os Estados. O valor do direito à vida e a natureza absoluta da proteção constitucional decorrem, ainda segundo os mesmos autores, do facto de prevalecerem perante situações de suspensão de direitos, como nos casos do estado de sítio e do estado de emergência (art. 19.º da CRP), e de sustentarem a proibição de extradição de estrangeiros quando haja risco de serem condenados à pena de morte (art. 33.º, n.º 3, da CRP).

    Entendendo que a Constituição protege não apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, mas também a vida humana, como valor ou bem objetivo, defendem os mesmos autores (1993, 174-176) que a vida intrauterina, independentemente do momento em que se considere que tem início, é objeto de garantia constitucional. Distinguem, pois, entre o direito à vida e a proteção da vida humana. No seu entendimento, somente pessoas podem ser titulares do direito à vida, pelo que a proteção da vida intrauterina, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não pode ser vista como um direito fundamental. Mais acrescentam que os meios de proteção do direito à vida, designadamente os instrumentos penais, podem revelar-se inadequados ou excessivos quando se trate da proteção da vida intrauterina. Entendem, por isso, que não existe uma proibição absoluta do aborto, embora a proteção da vida intrauterina possa ser diferenciada consoante a fase da gestação, implicando, nomeadamente, o estabelecimento de prazos para a realização do aborto voluntário (razão pela qual, advogam, não existe um direito constitucional ao aborto – como se verá, esta é uma questão controversa).

    Considerando que a vida em si mesma é um valor constitucional, Gomes Canotilho e Vital Moreira defrontam problemas como sejam os de saber se existe um dever de viver (negando o direito ao suicídio) ou se é lícita a alimentação forçada (por exemplo, no caso do preso que faz “greve de fome”). Reconhecendo que a lei penal não pune a tentativa de suicídio, mas apenas o auxílio ao suicídio, entendem os autores que não existe um direito à eutanásia ativa, ou seja, o direito de um indivíduo exigir de um terceiro que lhe provoque a morte para atenuar sofrimentos (“morte doce”), porquanto os potenciais “homicidas por piedade” estão obrigados a respeitar a vida alheia. Coisa diferente é a ortotanásia, ou eutanásia passiva, que consiste no direito da pessoa a se opor ao prolongamento artificial da própria vida, em caso de doença incurável, admitindo os autores que possam ser adotadas regras especiais relativas à organização e acompanhamento de doentes em fase terminal (“direito à morte com dignidade”), considerando que não existe da parte dos médicos ou pessoal de saúde um direito de abstenção de cuidados em relação aos pacientes.

    Sobre a admissibilidade da alimentação forçada, Canotilho e Moreira formulam argumentos a favor (o dever do Estado de evitar a morte dos cidadãos) e contra (a recusa consciente do preso em se alimentar, conhecendo as consequências do seu ato), não assumindo uma posição própria. Os autores concluem que o direito à vida é também um direito à sobrevivência, pelo que sobre os poderes públicos impende o dever de garantir as condições mínimas de subsistência a todos os membros da comunidade política, designadamente o direito ao trabalho (ou ao subsídio de desemprego), à proteção na saúde, à habitação, etc. Por outras palavras, os direitos sociais decorrem do direito à vida, assim como o direito de ser apoiado em situações de risco subjetivo (a pessoa que é pilhada ou fica refém) ou objetivo (a pessoa que é vítima de uma catástrofe). As anotações dos dois constitucionalistas continuam, assim, atuais, apesar da manifesta evolução nos debates em causa.

    Em matéria de interrupção voluntária da gravidez, na altura em que estas anotações foram produzidas, encontrava-se em vigor em Portugal a lei n.º 6/84, de 11 de maio, que introduziu alterações aos arts. 139.º a 141.º do Código Penal, definindo, no art. 140.º, as circunstâncias que excluíam a ilicitude do aborto. Após alguns ajustamentos à legislação de 1984, a lei n.º 16/2007, de 17 de abril, alterou o art. 142.º do Código Penal, com  a redação introduzida pelo decreto-lei n.º 48/95, de 15 de março, e pela lei n.º 90/97, de 30 de julho, consagrando como principal novidade a não punibilidade da interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida até às dez semanas. Além disso, alargou os prazos em que, em circunstâncias específicas, poderia ser realizado o aborto. No período em que estas alterações se verificaram, e posteriormente, intensificaram-se as iniciativas em vários países e na União Europeia para a consagração do direito ao aborto (cf. EUROPEAN PARLIAMENT NEWS, 2022), o que, como vimos, Gomes Canotilho e Vital Moreira desconsideraram.

    A 7 de julho de 2022, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução em que pedia que o direito ao aborto fosse incluído na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por via de uma alteração ao art. 7.º desta, acrescentando que “todos têm direito ao aborto seguro e legal”. A resolução contou com 324 votos a favor, 155 contra e 38 abstenções. Segundo o Parlamento Europeu, as proibições existentes em alguns Estados-Membros “afetam desproporcionalmente mulheres em situação de pobreza”, em particular as pertencentes a grupos minoritários. O Parlamento Europeu condenou “veementemente […] o retrocesso nos direitos das mulheres e na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos nos Estados Unidos e em alguns Estados-Membros da União Europeia”, expressando solidariedade e apoio às mulheres dos Estados Unidos e a todos os que realizam o aborto e o defendem.

    A aprovação da resolução pelo Parlamento Europeu ocorreu depois de o Supremo Tribunal dos Estados Unidos ter revogado o acórdão “Roe vs. Wade”, que garantia o direito ao aborto em todo o país, sustentando que essa não era uma competência da federação, mas dos Estados federados (cf. SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, 2022). Os deputados europeus recomendaram então o envio de uma delegação aos Estados Unidos para avaliar o impacto da decisão do Supremo Tribunal e apoiar os movimentos sociais no país. Já a 30 de janeiro de 2024, também sob o impacto da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, a Assembleia Nacional francesa (EURONEWS, 2024) aprovou uma alteração constitucional visando estabelecer a “liberdade garantida” das mulheres a recorrerem a uma interrupção voluntária da gravidez.

    Se é certo que a CRP, nesta matéria, não mudou, assiste-se em Portugal a esforços de associações em favor da liberdade de escolha, no sentido de aumentar os prazos legais para a realização da interrupção voluntária da gravidez (FARIA, 2024). Certo é que este é um debate presente em vários países em pleno século XXI, em contextos de crescente polarização política, em que as chamadas “questões fraturantes”, designadamente as relacionadas com a proteção da vida humana, são um fator de forte divisão política e social. Vejamos também como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), cujas decisões vinculam o Estado português, interpreta o art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), de 1950, que consagra o direito à vida.

    A CEDH foi adotada pelo Conselho da Europa a 4 de novembro de 1950 e entrou em vigor a 3 de setembro de 1953, tendo sido o primeiro instrumento jurídico a dar cumprimento a alguns dos direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a torná-los vinculativos. Portugal tornou-se membro do Conselho da Europa em 1976, quando era primeiro-ministro Mário Soares e ministro dos Negócios Estrangeiros José Medeiros Ferreira, tendo então ratificado a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, que entrou em vigor a 9 de novembro de 1978. À época, o Estado português reconheceu também o TEDH como a entidade responsável pela aplicação da Convenção. Esta última foi alterada diversas vezes e complementada com outros direitos para além dos estabelecidos no texto original.

    Dispõe o art. 2.º, n.º 1, da Convenção que “O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei”. E o n.º 2, alíneas a) a c), prevê que “não haverá violação do artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado absolutamente necessário”, seja “para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal”, “para efetuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente” ou “para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição”. Estamos, assim, perante um caso em que o direito positivo exceciona factos à proibição de se tirar a vida a outrem. A pena de morte é admitida, o que coloca a questão de saber como pode sê-lo sem colocar em causa o direito à vida.

    Segundo a jurisprudência deste tribunal, é impossível conceber qualquer programa de proteção dos direitos humanos sem considerar o direito à vida – todos devem ver o seu direito à vida reconhecido pelo Direito, como se pode ler no texto da Convenção (COUNCIL OF EUROPE/EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2022a) –, mas este não é aparentemente um direito absoluto, uma vez que comporta exceções. Ao consagrar exceções a um direito humano e fundamental, o que, como vimos, Gomes Canotilho e Vital Moreira não admitem, referindo, por exemplo, que a pena de morte contraria o direito constitucional absoluto à vida, poder-se-á perguntar porque o faz a Convenção. Este é um exemplo de como o direito positivo levanta dificuldades à compreensão do direito à vida, dado que que exceciona ou admite situações que nem todos aceitam. É assim com a pena de morte, tal como é com a interrupção voluntária da gravidez ou a eutanásia. A razão principal é que o direito positivo é expressão do poder dos Estados, que varia nos planos diacrónico e sincrónico conforme a sua orientação ideológica, incluindo a interpretação dos tribunais, mesmo que os particulares possam opor o direito à vida aos próprios Estados.

    É tão relevante a inclusão do direito à vida no catálogo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais de uma constituição política ou de um tratado internacional, como a definição de exceções ou limites à sua aplicação. Em qualquer caso, é a definição de um Estado, independentemente de ser ou não democrático, no exercício do seu poder político e legislativo. Vale, por isso, procurar perceber como o TEDH interpreta o art. 2.º da Convenção. Seguimos de perto o guia do art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, na sua versão de 31 de agosto de 2022 (COUNCIL OF EUROPE/EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2022b, especialmente os n.os 6 a 18), cujas conclusões nos podem surpreender, mas que confirmam a tese geral: apesar do disposto na letra da Convenção, seja por via da aprovação de protocolos adicionais pelos Estados ou por via da interpretação do Tribunal, a pena de morte não é aceitável nem aplicável.

    A interpretação que o Tribunal faz do art. 2.º da Convenção é orientada pela ideia de que a Convenção deve ser vista como um instrumento para a proteção das pessoas, de modo que as suas salvaguardas sejam práticas e eficazes (caso McCann e outros v. Reino Unido, § 146). O art. 2.º, por ser uma das disposições mais fundamentais da Convenção, não admite, em tempos de paz, quaisquer derrogações ao abrigo do art. 15.º (Derrogação em caso de estado de necessidade), e mesmo as derrogações em tempo de guerra devem ser limitadas. Entende o Tribunal que os arts. 2.º (Direito à vida) e 3.º (Proibição da tortura – “Ninguém será sujeito a tortura nem a tratamentos ou penas desumanos ou degradantes”) consagram um dos valores básicos das sociedades democráticas que compõem o Conselho da Europa (Giuliani e Gaggio v. Itália, § 174), a saber, a proteção da vida humana com dignidade, pelo que as suas disposições devem ser interpretadas de forma estrita (McCann e outros v. Reino Unido, § 147). Os artigos referidos consagram obrigações para os Estados. O art. 2.º contém duas obrigações substantivas: a obrigação geral de proteger através da lei o direito à vida e a proibição da privação intencional da vida, ainda que delimitada por uma lista de exceções (Boso v. Itália (dec.), 2002). Acrescenta o guia relativo à interpretação do art. 2.º que, tendo em conta o seu carácter fundamental, este artigo impõe aos Estados a obrigação de realizarem uma investigação eficaz sobre alegadas violações da parte substantiva (Armani Da Silva v. Reino Unido, 2016, § 229).

    Especificamente sobre a admissibilidade da pena de morte, entende o Tribunal que o art. 2.º, n.º 1, da Convenção deve ser interpretado à luz dos protocolos n.os 6 e 13 da Convenção. No guia (COUNCIL OF EUROPE/EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2022b, 20) pode ler-se a posição do Tribunal: “Quando a Convenção foi redigida, a pena de morte não foi considerada uma violação das normas internacionais. Foi, portanto, incluída uma exceção ao direito à vida, de modo que o artigo 2.º, n.º 1, dispõe que ‘ninguém será privado da sua vida intencionalmente, salvo na execução de uma sentença de um tribunal após ter sido condenado por um crime pelo qual esta pena está prevista na lei’. No entanto, registou-se posteriormente uma evolução no sentido da abolição completa, de facto e de jure, da pena de morte nos Estados-membros do Conselho da Europa (Al-Saadoon e Mufdhi c. Reino Unido, 2010, § 116)”.

    Com efeito, o protocolo n.º 6 da Convenção, adotado a 28 de abril de 1983 e que entrou em vigor a 1 de março de 1985, aboliu a pena de morte, exceto em relação a “atos cometidos em tempo de guerra ou de ameaça iminente de guerra”. Ora, todos os Estados-Membros do Conselho da Europa assinaram e ratificaram o referido protocolo, com exceção da Rússia, que o assinou mas não ratificou (Al-Saadoon e Mufdhi v. Reino Unido, 2010, § 116).

    Já o protocolo n.º 13, que aboliu a pena de morte em todas as circunstâncias, foi adotado a 3 de maio de 2002 e entrou em vigor a 1 de julho de 2003. Em 2010, todos os Estados-Membros do Conselho da Europa, com exceção do Azerbaijão e da Rússia, tinham assinado o protocolo, e, entre os que o tinham assinado, apenas três não o tinham ainda ratificado (Al-Saadoon e Mufdhi v. Reino Unido, 2010, § 117). Entende o Tribunal que o número significativo de Estados que assinaram e ratificaram os protocolos e a prática consistente daqueles na observância da moratória sobre a pena capital indiciam fortemente que o art. 2.º foi alterado de modo a proibir a pena de morte em todas as circunstâncias (Al-Saadoon e Mufdhi v. Reino Unido, 2010, § 120).

    Entende assim o Tribunal que a redação da segunda parte do art. 2.º, n.º 1, da Convenção não é um obstáculo para que se considere a pena de morte, à luz do disposto no art. 3.º, um “tratamento ou pena desumana ou degradante” e seja, por isso, proibida pela Convenção. Aquilo que poderia parecer uma diferença abissal entre a CRP e a CEDH afinal não o é, nem em relação à pena de morte, nem relativamente às questões do início e do final de vida, como se expõe de seguida.

    Em relação ao início de vida, vale destacar três ideias da jurisprudência do TEDH: i) diferentemente do art. 4.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos, que dispõe que o direito à vida deve ser protegido “em geral, desde o momento da conceção”, o art. 2.º da CEDH é omisso quanto às limitações temporais do direito à vida e, em particular, não estabelece uma proteção da vida de “todos” (“toute personne”) (Vo c. França, § 75); ii) dada a ausência de um consenso europeu sobre a definição científica e jurídica do início da vida, o Tribunal entende que compete aos Estados definir a questão, por se encontrar na sua margem de apreciação (Vo v. França, § 82); iii) no processo Evans v. Reino Unido, em que a requerente se queixou de que a legislação britânica autorizava o seu ex-parceiro a retirar o seu consentimento ao armazenamento e utilização de embriões criados em conjunto, o Tribunal concluiu que, ao abrigo da lei inglesa, um embrião não tinha direitos ou interesses independentes e não podia reivindicar – ou ser reivindicado em seu nome – o direito à vida nos termos do art. 2.º, e que, portanto, os embriões em questão não tinham direito à vida, na aceção do art. 2.º (§§ 54 -56).

    relativamente ao termo da vida, destacamos duas notas: i) o Tribunal entende que do art. 2.º da Convenção não decorre o direito individual de pedir a morte provocada, seja por um terceiro ou com a assistência de uma autoridade pública, sublinhando a afirmação recorrente da obrigação do Estado de proteger a vida (Pretty v. Reino Unido, § 39); ii) o Tribunal entende que a Convenção deve ser vista como um todo, pelo que as disposições conjugadas do art. 2.º e do art. 8.º obrigam as autoridades nacionais a impedir que um indivíduo tire a própria vida, se a decisão não tiver sido tomada livremente e com plena compreensão do que está em causa (Haas v. Suíça, § 54).

    Vimos exemplos de instrumentos jurídicos e de situações em que existe uma significativa convergência do pensamento jurídico português e europeu, o que não é sinónimo de unanimismo. A lei é interpretada por seres humanos que têm as suas mundividências próprias e diferentes abordagens, as quais influenciam o processo interpretativo. O valor que se atribui à vida influi sobre a forma como se concebe o direito à vida. E não existe um consenso sobre o significado e as implicações do direito à vida na organização da sociedade.

    A pena de morte é combatida por muitos grupos de defesa dos direitos humanos e choca a consciência de muitas pessoas, que consideram que nenhum Estado tem o direito de mandar tirar a vida a um terceiro, mas não só está consagrada na lei de vários Estados, alguns deles democráticos, como o Direito Internacional consagra essa possibilidade, ainda que de forma mitigada. E o mesmo se passa com o aborto e a eutanásia, apesar de serem considerados direitos individuais em algumas ordens jurídicas. O compromisso dos Estados e das organizações internacionais com o direito à vida é relativo. Por outras palavras, depende dos valores e interesses dos Estados, não sendo possível afirmar que os Estados democráticos se comportam tipicamente de uma forma e os Estados autoritários doutra, apesar de existirem tendências. Por exemplo, nos Estados Unidos, os Estados federados adotam políticas diferentes em relação ao aborto. Já no antigo bloco de Leste, embora a maioria dos Estados consagrasse a possibilidade legal do aborto, a Albânia tinha um regime fortemente restritivo (por pretender aumentar a população).

    A legítima defesa, consagrada como causa de exclusão da ilicitude do ato de matar no art. 2.º da Convenção, é de mais fácil compreensão por todos. Se existir uma ameaça atual e grave que coloque em perigo a vida de uma pessoa, esta tem o direito de se defender pela força, se necessário tirando a vida ao oponente. Já as outras exceções consagradas no art. 2.º da CEDH podem suscitar reações diversas por parte das pessoas, consoante a sua filosofia penal e a avaliação que fazem das circunstâncias. Tirar a vida a uma pessoa detida legalmente como forma de impedir que ela se evada do estabelecimento onde se encontra, ou para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição, pode suscitar muitas dúvidas nos cidadãos sobre a proporcionalidade do uso da força pelas autoridades públicas. E dizemos autoridades públicas porque é para isso que aponta a afirmação de que o ato de tirar a vida é feito “em conformidade com a lei”. O direito positivo salva-se a si mesmo pelo facto de ser produzido pelo Estado, o que para muitos não é suficiente.

    Voltemos ao caso da interrupção voluntária da gravidez na ordem jurídica portuguesa. O art. 24.º da CRP, cuja epígrafe é “Direito à vida”, dispõe, no n.º 1, que “A vida humana é inviolável”, acrescentando o n.º 2 que “Em caso algum haverá pena de morte”. Trata-se do primeiro artigo do capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais) do título II (Direitos, liberdades e garantias) da parte I (Direitos e deveres fundamentais) do texto constitucional. Relativamente à pena de morte, vale o argumento de Gomes Canotilho e Vital Moreira apresentado atrás, que merece acolhimento geral da doutrina e da jurisprudência, mas o mesmo já não se passa em relação à defesa da vida intrauterina.

    Diferentemente da CEDH, a CRP proíbe a pena de morte e não se pronuncia sobre a interrupção voluntária da gravidez. É a lei ordinária, concretamente a lei penal, que prevê a licitude da interrupção da gravidez, por iniciativa da mulher, em determinadas circunstâncias. Ao longo de décadas, a interpretação do art. 24.º da CRP tem suscitado forte controvérsia, com vozes que sustentam que a interrupção voluntária da gravidez, pelo menos nos termos em que tem vindo a ser definida pelo legislador ordinário, é inconstitucional e outras que dizem que a proteção da vida humana não é total e cai perante outros interesses e direitos individuais, nomeadamente a liberdade reprodutiva da mulher. Esta controvérsia é alimentada por diferentes perspetivas filosóficas dos órgãos do poder público, nomeadamente os tribunais, que várias vezes foram chamados a pronunciar-se sobre a temática da constitucionalidade do aborto voluntário, com divisões notórias entre os juízes (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, 1984, 1985, 2006, 2010), que reproduzem as da sociedade em cada momento histórico. Em 1984 e 1985, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a constitucionalidade de uma lei que permitia a realização do aborto voluntário em circunstâncias específicas (perigo de vida para a mulher, malformação do feto ou violação da mulher), enquanto em 2006 e 2010 se pronunciou sobre a constitucionalidade do aborto a pedido da mulher, independentemente da existência de causas justificativas. Em ambas as situações, o legislador previu prazos para a realização da interrupção voluntária da gravidez pela mulher, mas o programa legislativo era muito diferente. Certo é que o texto constitucional era o mesmo e que o Tribunal Constitucional dividiu-se de forma muito aproximada. Em ambos os casos, houve uma maioria tangencial de juízes a declarar a constitucionalidade da lei do aborto.

    Se a questão da interrupção voluntária da gravidez é relativamente antiga, outras há que são mais recentes, mas também com tendência para se intensificarem as divergências sociais e jurídicas, como no caso da morte a pedido, ou eutanásia. Poderá ser conforme à CRP uma pessoa pedir para pôr termo à sua própria vida? Se sim, em quaisquer circunstâncias ou apenas em circunstâncias específicas? E quem define essas circunstâncias? Mais uma vez, a lei é a figura central, ao estabelecer o que é permitido, em linha com a vontade dos poderes públicos ou o sentir da sociedade. Foi o que fez o legislador português ao aprovar a lei n.º 22/2023, de 25 de maio, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e alterou o Código Penal.

    Estas divergências são simultaneamente força e fraqueza na busca incessante de proteção das pessoas, nomeadamente pelo reconhecimento pelo Estado do direito à vida, que nunca esgotará as possibilidades de uma pessoa, em consciência, poder considerar que uma determinada lei é injusta, seja em relação a si própria (por exemplo, o condenado à morte) ou em relação a um terceiro (aquele a quem é retirada a vida).

    Os discursos sobre o valor da vida são contraditórios e um fator de polarização política. É certo que existem áreas de consenso, mas noutras este é apenas parcial, expressão da lógica da vontade das maiorias políticas, que podem alterar-se. Para além do mais, as divergências registam-se em todos os órgãos do Estado, incluindo os tribunais, o que também é fator de tensão. Falando dos exemplos dados, encontramos políticos e pessoas comuns com posições genéricas muito diferentes sobre a pena de morte, o aborto e a eutanásia. Há quem seja a favor de todas essas situações, quem seja contra todas elas e quem seja, por exemplo, a favor da pena de morte e contra o aborto e a eutanásia, a favor do aborto e da eutanásia e contra a pena de morte ou a favor da pena de morte e da eutanásia e contra o aborto.

    O direito à vida é uma expressão cultural do valor atribuído à existência humana. Visa a sobrevivência da humanidade, mas é mais do que isso. É uma ideia forte presente na argumentação humana visando a tomada de decisões razoáveis sobre como viver bem.

    O 6.º mandamento do Decálogo judaico, “Não matarás”, está dirigido à possibilidade de viver bem, uma vez que a vida tem valor. Francisco Puy Muñoz, da Universidade de Santiago de Compostela refere que os dez mandamentos bastam para que uma sociedade se sustente, dado que eles são um programa de vida. Lá está, a vida como dimensão central da qual brotam os direitos, como expressão da dignidade. Este ponto é muito importante, porque, embora a dignidade seja uma categoria da Modernidade, tem as suas raízes na Antiguidade. Aliás, raízes diferentes, porque, enquanto para os gregos a dignidade resultava do reconhecimento dos feitos humanos por terceiros, para o pensamento judaico-cristão era uma expressão ética do agir reto. Esta dupla influência confluiu na ideia contemporânea do reconhecimento do outro como pessoa, com um valor incomensurável.

    Júlia Navarro escreveu o livro Não Matarás (2017), sobre a experiência traumática da Guerra Civil Espanhola, titulado pela frase “Tu não matarás, filho, porque nenhum homem é o mesmo depois de tirar a vida de outro”. Esta afirmação consubstancia uma alteração dos valores em que matar passa a ser visto como um ato insidioso, que deve ser substituído pela capacidade de coexistência e entreajuda. Recorda a morte de Abel por Caim, relatada na Bíblia (Gn 4), cuja insídia decorre do facto de ser praticada por um irmão de sangue. Se não é possível respeitar o irmão, como é possível respeitar o vizinho ou o sócio, no que ele tem de mais fundamental?

    Certo é que a vida é muito complexa. Há quem defenda o direito à vida dos animais e da natureza, enquanto outros procuram consagrar o aborto como direito humano e fundamental. Sempre existiram discursos diferentes sobre a vida e, por isso, também sobre os direitos. É possível olhar para a evolução dos direitos humanos ao longo da História precisamente porque há milhares de anos que existe uma reflexão sobre a vida. As normas de Direito humanitário, tão relevantes no século XXI, foram teorizadas em A Cidade de Deus, de S.to Agostinho, no século IV, e nas obras de Tomás de Aquino, no século XIII. Os cavaleiros templários da Idade Média tinham princípios que deveriam respeitar na guerra, uma vez que não vale tudo na guerra. A civilização ocidental foi influenciada por estes homens e pelo seu ensino, assim como por outros, com reflexos até ao tempo presente. É sobretudo isso que é preciso ter em conta quando se analisam os direitos das pessoas que vivem no tempo presente e naturalmente querem ser respeitadas na sua dignidade.

    Analisámos dois importantes instrumentos jurídicos, de diferente âmbito territorial, mas ambos aplicáveis na ordem jurídica portuguesa com força obrigatória geral, que consagram a proteção da vida e o direito à vida, mas poderíamos ter analisado mais. Um outro, que só indiretamente referenciámos, é a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, tributária das tradições constitucionais dos Estados europeus. Aprovada em Nice, em dezembro de 2000, a Carta é juridicamente vinculativa desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009.

    Os discursos sobre a vida e o direito à vida encontram em vários textos jurídicos, de âmbito nacional, regional ou universal, características comuns, mas também desafios que a todos dizem respeito. Neste espaço político democrático, no que se refere à problemática da proteção da vida humana, existem vários tópicos em aberto, como, por exemplo, saber quem é pessoa e como esta deve ser protegida pelo Direito ou como se balanceia a proteção da vida humana com outros interesses. Existem tradições e conceções diferentes sobre o valor da vida ao longo da História e no tempo presente, mas é necessário continuar a pensar com bons argumentos, porque só assim se poderá melhorar a ação humana, em tempos de tanta turbulência e de ameaças à humanidade.

    Bibliografia

    Impressa 

    CANOTILHO, J. J. G. & MOREIRA, V. (1993). Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Anotação ao Artigo 24.º da CRP. Coimbra: Coimbra Editora.

    NAVARRO, J. (2019). Não Matarás. Trad. Lisboa: Bertrand Editora.

     

    Digital

    COUNCIL OF EUROPE/EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS (2022a). The European Convention on Human Rights. A Living Instrument, https://www.echr.coe.int/documents/d/echr/Convention_Instrument_ENG (acedido a 11.03.2023).

    COUNCIL OF EUROPE/EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS (2022b). Guide on Article 2 of the European Convention on Human Rights. Right to Life, https://www.echr.coe.int/documents/d/echr/Guide_Art_2_ENG (acedido a 11.03.2023).

    EURONEWS (2024, 31 jan.). “Assembleia Nacional francesa aprova inclusão do aborto na Constituição”, https://pt.euronews.com/2024/01/31/assembleia-nacional-francesa-aprova-inclusao-do-aborto-na-constituicao (acedido a 11.02.2024).

    EUROPEAN PARLIAMENT NEWS (2022, 7 jul.). “Include the Right to Abortion in EU Charter of Fundamental Rights, DEmand MEPs, https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20220701IPR34349/include-the-right-to-abortion-in-eu-charter-of-fundamental-rights-demand-meps (acedido a 11.03.2023).

    FARIA, N. (2024, 10 fev.). “Aborto: Associações querem aumentar para 12 semanas o prazo legal”. Público, https://www.publico.pt/2024/02/10/sociedade/noticia/aborto-associacoes-querem-aumentar-12-semanas-prazo-legal-2080003 (acedido a 14.02.2024).

    SUPREME COURT OF THE UNITED STATES (2022, 24 jun.). “Dobbs, State Health Officer of the Mississippi Department of Health, et al. v. Jackson Women’s Health Organization et al.”, https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf (acedido a 11.03.2023).

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. “Acórdão n.º 25/84”, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19840025.html (acedido a 11.03.2023).

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. “Acórdão n.º 75/2010”, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100075.html (acedido a 11.03.2023).

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. “Acórdão n.º 85/85”, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19850085.html (acedido a 11.03.2023).

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. “Acórdão n.º 607/2006”, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html (acedido a 11.03.2023).

     

    Autor: João Relvão Caetano

    Autor:
    Voltar ao topo
    a

    Display your work in a bold & confident manner. Sometimes it’s easy for your creativity to stand out from the crowd.