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  • Vieira, Padre António [Dicionário Global]

    Vieira, Padre António [Dicionário Global]

    Sempre que alguém ao longo da história humana pensou e defendeu com palavras e gestos um projeto de humanidade mais justa e fraterna, em sentido amplo e/ou em sentido geograficamente mais localizado, contribuiu, à sua medida e no seu contexto, para o longo caminho de reflexão e ação precursor de ideais que vieram a ser mais tarde codificados nas cartas e declarações de direitos do Homem e de direitos humanos.

    O padre António Vieira (1608-1697) é uma dessas figuras da história da cultura brasileira e portuguesa, que se notabilizou pela oratória sagrada falada e escrita e pela sua ação concreta na crítica a sistemas sociais de injustiça, corrupção, desigualdade, opressão e discriminação. Vieira foi uma personalidade multifacetada (jesuíta, missionário, pregador, diplomata, conselheiro político), tendo ficado mais célebre pelo contributo dado em favor do aperfeiçoamento da língua portuguesa e pelo poder da sua palavra proferida em contexto de pregação religiosa e fixada por escrito em diferentes géneros literários, a saber, escritos parenéticos, escritos epistolográficos, escritos proféticos, escritos político-sociais, poesia e teatro. A sua mestria no cultivo da língua fez escola e colheu a admiração de escritores e pensadores, dos séculos vindouros até aos nossos dias, entre os quais podemos destacar Fernando Pessoa, que o classificou como o imperador da língua portuguesa, e José Saramago, que considerou que a língua portuguesa nunca foi tão bela como quando foi falada e escrita por aquele jesuíta. Se a marca da língua é um dos pontos mais fortes e mais conhecidos da sua carreira de escritor e homem de ação, não foi menos intenso e relevante o empenho desassombrado de Veira em causas sociais e políticas que hoje podem ser lidas, em alguns aspetos, como precursoras da dimensão associada à valorização e defesa da dignidade humana que fundará a posterior enunciação de relevantes conteúdos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

    Com efeito, o carácter humanizante que a obra do padre António Vieira assume em diversos dos seus aspetos tem levado à aproximação entre o pensamento vieiriano e a temática dos direitos humanos. A problemática da escravatura, a questão sobre a igualdade entre os homens, ou a afirmação de um Quinto Império global, capaz de aproximar todos os povos do mundo sob o desígnio de uma fraternidade universal, constituem linhas de leitura que têm vindo a ser tratadas enquanto exemplo de um pensamento em abertura para os direitos humanos no cômputo global da obra deste jesuíta. Castro (2009), Viegas (2004), ou Reis (1999) configuram estudos que tratam esta aproximação. Mais recentemente, Franco et al. (2018; 2019) procederam à recolha e ao enquadramento de um núcleo considerável de fontes vieirinas passíveis de documentar a importância dada por este missionário jesuíta às questões da igualdade e da justiça entre os homens, tendo por fundamento a dignidade humana.

    Este famoso pregador de Seiscentos, formado no Colégio da Companhia de Jesus de Salvador da Baía, no Brasil, tornou-se figura de destaque no quadro político-religioso coevo, tendo atravessado praticamente todo o século XVII (chegou a completar 89 anos de idade).

    O interesse de Vieira em compreender a realidade do seu tempo, também enquanto ator fundamental, quer junto da corte portuguesa, quer no palco internacional, junto de outras cortes europeias, ou no espaço missionário transatlântico (FRANCO, 2009), acaba por entroncar também, de alguma forma, na reflexão e no debate encetados no quadro da designada Escola Ibérica da Paz (Escola de Salamanca) (CALAFATE, 2015-2020), composta por um conjunto de religiosos que lecionaram entre as universidades de Salamanca, Évora e Coimbra e se abalançaram a discernir sobre as questões subjacentes ao domínio dos povos ultramarinos pela parte das potências europeias. Um dos principais debates em que assentava essa teorização constituiu-se, em particular, a partir da indagação em torno do conceito de “guerra justa” e se por essa via seria legítimo impor novas formas de organização e governação a culturas que, por muito rudimentares que fossem ao olhar europeu, também tinham as suas formas próprias de ordenação; e, caso não houvesse essa abertura ao exterior por parte dos povos selvagens, poderiam os conquistadores mover guerra contra os insurretos, bem como subjugá-los e fazê-los seus escravos? Esta reflexão aprofundada sobre a ética colonial e sobre o modo como os soberanos cristãos impunham o seu poder aos povos recentemente conhecidos, com base em fundamentações teológico-políticas europeias, contribuiria em muito para lançar as bases e desenvolver também o campo do designado Direito internacional (FREITAS, 2015, 41 ss.). Como nos apontam Franco et al. (2019, 37), Vieira “[…] inscreve-se nesse ambiente intelectual, marcado por um forte debate entre as elites eclesiásticas e juscanónicas, que tinham a responsabilidade de fornecer os argumentos para enquadrar, legitimar ou condenar práticas que implicavam a definição de molduras jurídicas adequadas”.

    Enquanto testemunhos representativos dessa preocupação de Vieira pela questão da escravatura, perfilam-se, entre outros, os designados “Sermão XX” e “Sermão XXVII” de Maria Rosa Mística, que fazem também prova da consideração vieiriana pela ideia de igualdade, decorrente da mesma origem divina de todos os homens sobre a Terra. Sendo, pois, toda a humanidade filha de Deus, quaisquer distinções que se façam não deverão colocar em causa essa mesma igualdade humana, apesar de, como assinala o pregador, ela ser constantemente negada entre os próprios homens: “Fê-los Deus a todos de uma mesma massa, para que vivessem unidos, e eles se desunem; fê-los iguais, e eles se desigualam; fê-los irmãos, e eles se desprezam do parentesco […]” (VIEIRA, 2013-2014, II, IX, 158).

    Um dos principais motivos explorados por Vieira para fazer prova dessa injusta desigualdade, considerando em especial o quadro de escravatura, é o tratamento distinto tantas vezes dado aos homens segundo as suas diferentes cores de pele: “Mas se a cor preta pusera pleito à branca, é certo que não havia de ser tão fácil de averiguar a preferência entre as cores, como a que se vê entre os homens. Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza” (VIEIRA, 2013-2014, II, IX, 169). Também em torno da questão da cor, merecem idêntico destaque passos como aquele que surge no “Sermão da Epifania”, onde Vieira dá nota das diferenças entre a cor de pele dos homens a partir de uma lógica geográfica, sendo a escravatura injustificada desse ponto de vista entre homens de diferentes latitudes, e, nesse sentido, contribuindo de alguma forma aquilo a que hoje se poderia apontar como uma fundamentação “antirracista” (FRANCO et al., 2019, 46): “As Nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do Sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, e homens, que cuidar eu que hei de ser vosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?” (VIEIRA, 2013-2014, II, I, 383).

    Para o jesuíta, à luz dos critérios teológicos por que interpretava a realidade do seu tempo, tornava-se impossível distinguir criaturas iguais por natureza, apesar de estarem as mesmas também reservadas a existências tão diversas quanto a liberdade ou o cativeiro: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão, e da mesma Eva? Estas Almas não foram resgatadas com o Sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem, e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo Céu? Não os aquenta o mesmo Sol?” (VIEIRA, 2013-2014, II, IX, 341). Não obstante, apesar dessa crítica vieiriana em torno das diferenças instituídas entre os homens, torna-se relevante assinalar a interpretação dissonante que o pregador faz entre o cativeiro indígena e o cativeiro africano. Enquanto crítico acérrimo da escravatura indígena, Vieira deixaria marca notória nos seus sermões: os povos indígenas eram tão dignos de soberania quanto todos os outros, e a razão natural a todos igualava. A legislação que viria a lume sobre a liberdade dos índios acabaria por fazer ressoar as suas invetivas antiesclavagistas, em especial plasmando-se nos casos da lei da liberdade dos índios, de 1655, de D. João IV, ou, mais tarde, na lei da liberdade dos índios do Pará e Maranhão, de 1680. Quanto aos escravos pretos de origem africana, Vieira não deixou igualmente de tecer considerações muito críticas sobre o estado opressivo em que eram mantidos cativos os escravos provenientes do lado oriental do Atlântico, apesar de não ter sido tão radical e ter aberto para o cativeiro africano um caso de exceção, ainda que obrigatoriamente assegurado por “uma moldura ética no uso de escravos” e um tratamento digno de seres humanos (FRANCO et al., 2018, 17).

    Vieira ocupou-se de igual modo de outra questão concernente a desigualdades instituídas, tendo pugnado pela supressão das denominações discriminatórias de cristãos-novos e cristãos-velhos (cf. VIEIRA, 2013-2014, IV, II), que viria a ser consagrada em lei no século XVIII (Carta de lei josefina-pombalina de 25 de maio de 1773). Constituiu-se ainda um dos mais duros críticos da Inquisição do seu tempo, denunciando os critérios de injustiça com que esta instituição laborava, tendo conseguido a suspensão (ainda que breve) da mesma, depois de ter experimentado também ele prisão nos cárceres do Santo Ofício (cf. VIEIRA, 2013-2014, III, II e IV).

    O aproveitamento de Vieira enquanto figura precursora dos direitos humanos no século XVII tem concitado, no entanto, algumas considerações de sinal contrário (cf., e.g., BARREIROS et al., 2020; CARDIM, 2020), reflexão crítica e argumentação que se tornou mais evidente nos últimos anos, no quadro de um alargado questionamento e debate em torno do legado e da ação de figuras nacionais e internacionais que foram protagonistas no contexto de uma História moderna e contemporânea marcada pelas relações entre impérios e colónias (cf., e.g., MARQUES, 2020, 74-78, 165-169). De facto, não se pode deixar de ver neste jesuíta também um homem do seu tempo, sendo sempre necessário matizar as leituras que fazem de António Vieira um defensor dos direitos humanos e compreender os seus limites.

    Não obstante, os contornos de Vieira, a partir do seu contexto histórico próprio, permitem-nos identificar perspetivas ousadas e ainda pouco defendidas, na esteira do que pensava um grupo muito restrito de intelectuais da época. Essa reflexão crítica mais avançada encontrava-se também a ser desenvolvida no círculo da referida Escola Ibérica da Paz, bem como entre outros autores que se reviam nesta linha de defesa da igualdade de todo o género humano, com vista à busca de justiça e dignidade para toda a humanidade.

    O carácter humanizante da obra vieiriana fica bem expresso, de igual modo, nesse caminho para uma utopia universalista, patente na conceção do Quinto Império, onde todos os homens e nações se preparavam para viver em paz e tolerância, sob o signo da fraternidade do reino de Deus consumado na Terra, “utopia católica” idealizada por Vieira, que acabaria, ela própria, alvo da Inquisição (FRANCO, 2006). Na elaboração desta utopia generosa em diversas obras proféticas, entre as quais a História do Futuro e a Clavis Prophetarum (A Chave dos Profetas), Vieira quis abranger toda a Terra e toda a humanidade, admitindo a integração dos diversos povos do mundo com diferentes tradições culturais e cívicas respeitadas nas suas diferentes expressões, em benefício de uma harmonia global assente na justiça e na fraternidade promotora de uma paz e de uma concórdia duradouras numa relação sustentável com a natureza (CANTEL, 1960). É que, na verdade, sob o alto desígnio desse projeto-esperança, tinha o mesmo Vieira a clara perceção de ser aquela uma proposta ousada, mas na qual profundamente acreditava: “Se é sonho eu durmo, e se é loucura eu sou louco, e, em qualquer destas suposições, quando não haja de ser felicidade verdadeira para todos, basta que seja alívio e consolação para mim” (VIEIRA, 2013-2014, I, III, 194).

    Sendo anacrónico apor a designação tout court de “direitos humanos” a determinadas causas vieirianas, não deixa, no entanto, de ser possível, no âmbito de uma história das ideias, no quadro da longa duração, identificar, na obra do padre António Vieira, passos precursores que apontam no sentido da unidade da humanidade, independentemente de determinadas idiossincrasias, bem como da igualdade entre os homens e da dignidade humana, merecedora do mesmo cuidado e respeito em qualquer lugar onde se manifesta, princípios que vieram a ganhar destaque no quadro do pensamento político global e que, na atualidade, se configuram em direitos fundamentais no âmbito do Estado de Direito, expressão legal da figura dos direitos humanos.

    Bibliografia

    Impressa

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    CANTEL, R. (1960). Prophetisme et Messianisme dans l’OEuvre d’Antoine Vieira. Paris: Ediciones Hispano-Americanas.

    CASTRO, H. de (2009). “A problemática dos direitos humanos na crítica de Vieira à Inquisição”. In J. E. Franco (coord.). Entre a Selva e a Corte: Novos Olhares sobre Vieira (211-228). Lisboa: Esfera do Caos.

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    FRANCO, J. E. et al. (2019). “Igualdade das raças, escravatura e dignidade do trabalho humano”. In J. E Franco & C. Fiolhais (dirs.). Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa – Primeiros Textos sobre Igualdade e Dignidade Humanas (vol. 14) (35-59). Coord. D. Pires et al. Lisboa: Círculo de Leitores.

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    VIEIRA, A. (2013-2014). Obra Completa (30 vols.). Dir. J. E. Franco & P. Calafate. Lisboa: Círculo de Leitores.

     

    Digital

    BARREIROS, I. B. et al. (2020, 2 fev.). “O padre António Vieira no país dos cordiais”. Público, https://www.publico.pt/2020/02/02/sociedade/ensaio/padre-antonio-vieira-pais-cordiais-eterna-leveza-anacronismo-guardiaes-consenso-lusotropical-1902135 (acedido a 22.09.2020).

    CARDIM, P. (2020, 25 jun.). “Para uma visão mais informada e plural do padre António Vieira”. Expresso, https://expresso.pt/opiniao/2020-06-25-Para-uma-visao-mais-informada-e-plural-do-padre-Antonio-Vieira (acedido a 22.09.2020).

    Autores: Susana Mourato Alves-Jesus

    José Eduardo Franco

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