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    Vitória, Francisco de

    Francisco de Vitoria nasceu em 1483, em Burgos. Em 1505, entrou no Convento dominicano de São Paulo, naquela mesma cidade, onde permaneceu até 1508, altura em que foi enviado para estudar no Colégio de São Tiago, também da Ordem dos Pregadores, incorporado na Universidade de Paris. Em 1509, foi ordenado presbítero, tendo também terminado os estudos em Artes, ou Filosofia, realizando depois os estudos em Teologia, entre 1509 e 1513. Ali ensinou Filosofia, entre 1513 e 1516, e Teologia, entre 1516 e 1522, tendo obtido em março daquele último ano o grau de licenciado e em junho o de doutor. Foi então chamado para lecionar no Colégio dominicano de São Gregório de Valhadolide, no qual deu aulas entre 1523 e 1526, ano em que concorreu, com sucesso, à cátedra de prima de Teologia na Universidade de Salamanca, onde ensinou até à data da sua morte, que sobreveio a 12 de agosto de 1546.

    A maioria dos autores vê naquele período de formação em Paris a principal influência exercida sobre o seu pensamento, nomeadamente por via do humanismo que então aí se vivia, enquanto movimento de afirmação e ampliação do horizonte próprio do pensamento e da ação humanos (iniciado ainda na Idade Média, especialmente com a renovação escolástica desencadeada por Tomás de Aquino e João Duns Escoto), do qual resultou um requestionamento da natureza, do alcance e da relação dos poderes temporal e espiritual, aos quais se conferia agora uma cada vez maior independência (até ao ponto de, em breve, se começar a pensá-los a partir da ideia de autonomia). É neste contexto, na verdade, que importa reconhecer o acolhimento que Vitoria ali deu ao nominalismo moderado de João Mair e, sobretudo, ao tomismo renovado de Pedro Crockaert, a exemplo do qual viria a impor – aliás, com grande esforço –, nos cursos de Teologia que lecionou em Valhadolide e em Salamanca, o estudo da Suma Teológica de Tomás de Aquino preferencialmente ao dos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo.

    Porém, dever-se-á mais fortemente valorizar o influxo que o seu pensamento recebeu, já em Espanha, do aceso debate que aí então se travava em torno das questões teológicas, filosóficas, políticas e económicas postas pela conquista, exploração e evangelização do novo mundo, no qual, prudente mas decisivamente, participou e ao qual deu resposta filosoficamente original e fecunda. Só assim pode descobrir-se, com efeito, a unidade que interiormente informa as suas obras, tanto no que diz respeito às preleções ou conferências que anualmente proferiu na universidade, nas quais apresentou e defendeu as teses que de algum modo inauguram a moderna história dos direitos humanos, como no que respeita aos comentários e tratados que preparou a partir das suas lições, nos quais expõe os princípios e as razões que fundam e explicam essas mesmas teses.

    Logo no início da primeira das suas duas preleções Sobre os Índios, com efeito, que, por prudência, foram das últimas que proferiu, Vitoria pergunta “se é lícito batizar os filhos dos infiéis contra a vontade dos pais, […] disputa ou preleção empreendida por causa destes bárbaros do novo mundo, aos quais vulgarmente se chama índios, que há quarenta anos vieram ao poder dos espanhóis e antes eram desconhecidos do nosso mundo. Relativamente aos quais a presente disputa terá três partes: na primeira, trataremos [de saber] por que direito vieram os bárbaros ao poder [ou à autoridade] dos espanhóis; na segunda, o que podem os príncipes espanhóis em relação a eles nas coisas temporais e nas civis; na terceira, o que podem em relação a eles quer os príncipes, quer a igreja, nas coisas espirituais e nas que dizem respeito à religião” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960).

    Parece-me ser clara, neste contexto, a importância preparatória que a preleção Sobre o Poder Civil, proferida em 1528, as duas preleções Sobre o Poder da Igreja, em 1532 e 1533, a preleção Sobre o Poder do Papa e do Concílio, em 1534, e a preleção Sobre a Simonia, em 1536, assumem em relação às duas preleções Sobre os Índios, proferidas em 1539, porquanto questionam e redefinem a natureza, o fim e o modo dos poderes temporal e espiritual, muito especialmente do imperador e do papa, radicalmente postos em causa pela descoberta de um novo mundo, no qual nunca tinham estado o Império Romano ou a Igreja Católica. O mesmo pode dizer-se, na verdade, da preleção Sobre Aquilo a Que Está Obrigado Quem Chega ao Uso da Razão, proferida em 1535, na qual se define essencialmente o ser humano a partir do uso concertado da razão e da vontade, de tal modo que as disparidades que existencialmente se verificam entre os homens não resultam de uma diferença de natureza, mas de civilização, devendo assim estabelecer-se entre eles, nas questões morais e nas religiosas, uma relação, não de domínio, mas de educação. E é ainda deste modo que deve compreender-se a preleção Sobre a Temperança, proferida em 1537, na medida em que trata longamente o tema da antropofagia, incluindo uma parte sobre a prática deste costume por alguns índios do Iucatão, ou do México, na qual se questiona se é lícito aos príncipes cristãos, pela sua própria autoridade, ou por mandato do papa, declarar-lhes guerra para defesa dos inocentes (parágrafos que, por prudência, suprimiu na cópia que entregou aos seus alunos, os quais somente no século XX viriam a ser redescobertos).

    Tudo isto é ainda mais evidente, aliás, se nos lembrarmos que Vitoria tinha nove anos quando Cristóvão Colombo descobriu o novo mundo, acontecimento que fortemente impressionou toda a Europa, muito especialmente Espanha e Portugal; que em Paris leu certamente os Comentários de João Mair aos “Livros das Sentenças”, que em 1510 ali foram publicados, nos quais pela primeira vez se tratou, em ambiente universitário, a questão dos direitos dos espanhóis sobre os índios, aos quais se dizia ser legítimo aqueles imporem o seu domínio, tanto em vista da propagação da fé cristã, como da natural inferioridade dos bárbaros; que em Valhadolide, onde era então a sede da corte, teve conhecimento direto das questões das Índias, relativamente às quais a sua ordem assumiu um papel de relevo na defesa da evangelização pacífica dos índios, opondo-se, na teoria e na prática, à sua exploração desumana e desregrada; e que em Salamanca residiu no Colégio de Santo Estevão, de e para onde, desde 2010, partiam e regressavam os missionários dominicanos na América, dos quais recebeu informação precisa e circunstanciada sobre o tratamento que ali era realmente dado aos índios, como pode claramente ver-se na carta que, em novembro de 1534, ainda em ambiente privado, enviou ao seu amigo P.e Miguel de Arcos, na qual diz que, embora sem contestar, e mesmo pressupondo, o direito do imperador a conquistar as Índias, “se lhe gela o sangue no corpo” ao pensar nas atrocidades que ali são cometidas, “não perceb[endo] a justiça de uma guerra [feita,] […] não contra estranhos, mas contra verdadeiros vassalos do imperador, tal como se fossem naturais de Sevilha” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960).

    É no seguimento de uma longa, profunda, prudente e metódica reflexão, portanto, que, na primeira preleção Sobre os Índios, logo desenvolvida e completada pela segunda, também chamada Sobre a Guerra Justa, Vitoria defende como certa a conclusão “segundo a qual os índios, antes de que os espanhóis viessem até eles, eram verdadeiros donos [ou senhores das suas coisas], tanto pública como privadamente” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960), com o que claramente invalida os títulos com que costumava então legitimar-se a conquista e a ocupação da América pelos espanhóis, nomeadamente: (i) o domínio universal do imperador; (ii) o poder temporal universal do papa; (iii) o descobrimento; (iv) a rejeição da fé de Cristo, mesmo depois de razoável e suficientemente anunciada; (v) os pecados contra a lei natural; (vi) a eleição voluntária forçada, ou coagida; e (vii) uma especial doação de Deus.

    É verdade que propõe, logo a seguir, um outro conjunto “de títulos legítimos pelos quais os bárbaros puderam vir ao poder dos espanhóis” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960), com o que justifica o processo de conquista, exploração e evangelização do novo mundo, nomeadamente: (i) a natural sociabilidade e comunicação humanas e o consequente direito de comércio; (ii) a propagação da religião cristã; (iii) a amizade e a sociedade humanas, segundo as quais devem ajudar-se os bárbaros convertidos que ali sofram perseguição; (iv) a atribuição pelo papa de um príncipe cristão a um grande número de índios convertidos; (v) a libertação da tirania e a defesa dos inocentes; (vi) a eleição verdadeira e voluntária; e (vii) a aliança e a amizade entre os povos. Fá-lo, porém, com base num novo direito das gentes, independente da fé, ou da religião, e essencialmente fundado na razão, na qual todos os homens natural e voluntariamente (ou objetiva e subjetivamente) participam ou podem participar.

    Apesar da insuficiência desta resposta em vista de uma defesa integral dos direitos dos índios – crítica que lhe será justamente feita por Bartolomeu de las Casas –, é preciso salientar que Vitoria afirma que os índios, enquanto homens, são naturalmente sujeitos de direito, tanto pública como privadamente, sendo esse o primeiro e o principal fundamento de qualquer ordenação jurídica existente entre as pessoas e entre os povos. Veremos já a seguir a formulação exata do seu raciocínio, que constitui um marco decisivo na história do direito, de um modo geral, e do direito internacional, em particular. Ainda antes disso, porém, é importante aqui notar que é dele que decorre, ou resulta, um conjunto de direitos que Vitoria assistematicamente identifica e desenvolve ao longo da sua obra e aos quais podemos com razão chamar direitos dos homens, ou direitos humanos, a saber: os direitos individuais à vida e à integridade física e moral, à propriedade, à liberdade, incluindo a liberdade de consciência, e à educação e evangelização pacíficas; os direitos dos povos à soberania e à liberdade política, determinada pelos seus próprios príncipes e pelas suas próprias leis; e os direitos individuais e coletivos à circulação e ao comércio, à evangelização, à cidadania, ao uso dos bens comuns e à intervenção armada para defesa dos inocentes e para honrar relações de amizade ou de aliança.

    Vejamos agora o argumento de Vitoria, o qual, na verdade, é muito simples: a premissa maior diz que é sujeito de direito aquele que sofre injúria. A menor diz que só sofre injúria aquele que tem domínio sobre si mesmo e sobre os seus bens, sejam materiais ou espirituais. Conclui-se, assim, que se os índios têm domínio, ou pelo menos potência e faculdade de domínio, então têm também – e necessariamente – direito, ou potência e faculdade de direito. É exatamente neste sentido, portanto, que, ao tratar a questão dos índios, em 1539, Vitoria põe final e abertamente a questão de saber se, antes da chegada dos espanhóis, os índios tinham pública e privadamente domínio sobre si mesmos e sobre as suas coisas, com o que pretende justamente demonstrar que eles são homens e sujeitos de direito.

    A sua resposta, como vamos ver, é muito clara. Em primeiro lugar, contra aqueles que afirmavam que os índios não podiam ter domínio por causa dos seus pecados e da sua irreligiosidade, Vitoria diz que a graça ou a fé não são fundamentos do domínio, pelo que “nem por causa de qualquer pecado, mesmo mortal, nem por causa do pecado de infidelidade, pode impedir-se os bárbaros de serem, de facto, verdadeiros donos, tanto pública como privadamente” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960). Em segundo lugar, contra aqueles que afirmavam que os índios não podiam ter domínio por serem insensatos e amentes, ou idiotas, diz que é preciso investigar “se para que alguém seja capaz de domínio se requer o uso da razão”, ao que responde, primeiro, que só as criaturas racionais podem ter domínio, “porque o domínio é um direito […] e as criaturas irracionais não podem ter direito, pelo que também não podem ter domínio”; acrescenta, depois, que “as crianças, antes do uso da razão, podem ser donas […] e ter direito sobre as coisas”, tal como “os amentes, mesmo aqueles que de nenhum modo têm nem há esperança de que venham a ter o uso da razão, […] parece que podem ser donos, porque podem sofrer injúrias e, como tal, têm direito”; conclui, por último, que, “deste ponto de vista [i.e., do ponto de vista da potência da razão], nada impede que aqueles bárbaros sejam verdadeiros donos. O que se prova [, além disso,] porque, segundo a verdade das coisas, eles não são amentes, mas têm a seu modo o uso da razão, o que é evidente pelo facto de terem alguma ordem nas suas coisas, pois têm cidades ordenadamente constituídas, matrimónios definidos, magistrados, senhores, leis, artesãos, trocas, todos os quais requerem o uso da razão; tal como têm uma espécie de religião; e também não erram nas coisas que são evidentes aos outros, o que é indício do uso da razão” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960).

    É certo que, mesmo no fim desta preleção, Vitoria parece contradizer-se, porquanto propõe discutir um último título – que diz não poder completamente afirmar-se, nem condenar-se, mas sobre o qual lhe parece ser útil refletir –, segundo o qual “estes bárbaros, embora não sejam completamente amentes, como acima dissemos, contudo pouco distam dos amentes, razão pela qual parecem não ser idóneos para constituir e administrar uma república legítima, […] nem para governar as coisas familiares, […] pois carecem das letras e das artes […] e de muitas outras coisas convenientes e até necessárias para os usos humanos. Alguns dizem [, por isso,] que, para a utilidade daqueles, podem os príncipes espanhóis tomar a sua administração, […] [coisa que,] se todos forem amentes, será sem dúvida não só lícita, mas convenientíssima, […] desde que realmente se faça em vista do bem e da utilidade daqueles e não apenas do ganho [ou do lucro] dos espanhóis” (FRANCISCO DE VITORIA, 1960).

    Esta contradição, no entanto, no que tem de real e de aparente, tem de compreender-se no âmbito da prudência com que Vitoria sempre tratou a questão dos índios, nomeadamente adiando sucessivamente a apresentação e a defesa pública das suas próprias teses e evitando, na medida do possível, o confronto direto, ou aberto, com os interesses e as posições da Coroa. Se é verdade, assim, que no fim desta preleção, salvaguardando os interesses da Coroa, Vitoria parece dar um passo atrás, propondo mesmo discutir se os índios têm ou não têm o uso da razão, com o que sabia estar a abrir a porta para a continuação dos abusos perpetrados contra eles, não é também menos verdade que já antes tinha afirmado que o domínio – e o direito – não se funda no uso da razão, mas na sua potência, ou faculdade, porquanto as crianças e os amentes, que não têm parcial ou totalmente o uso da razão, têm, no entanto, domínio e direito sobre as suas coisas, o que é próprio apenas das criaturas racionais. Isto significa, portanto, que, mesmo que por via de uma diferença civilizacional possamos ter o dever de educar e evangelizar um conjunto de pessoas, ou um povo, por vezes até com o correspondente direito de os dominar, as nossas ações, nesse contexto, deverão ser sempre limitadas, no tempo e no modo, pela igualdade de natureza que original e essencialmente nos une enquanto homens, sendo esse o primeiro e o principal fundamento que as legitima.

    É na potência da razão, portanto, que essencialmente se funda o facto de os índios serem donos de si mesmos e das suas coisas, bem como de naturalmente serem homens e sujeitos de direito. A razão, porém, embora seja aquilo que principal ou essencialmente define o ser humano, é em si mesma uma potência vã, a qual não pode existencialmente reduzir-se ao ato senão por intermédio da liberdade, a partir de cujo concurso apenas se torna possível compreender e explicar a igualdade e a diferença que simultaneamente caracterizam as relações entre os seres humanos. Foi deste modo, na verdade, que o humanismo ibérico, que teve em Francisco de Vitoria a sua principal figura, abriu historicamente o caminho à moderna afirmação da autonomia da vontade, ou da liberdade como fundamento subjetivo de si mesma.

    É preciso dizer, por último, que a sua prudência era justificada, de tal modo que a sua afirmação radical da essencial humanidade dos povos do novo mundo, apesar de cuidadosamente atenuada na prática, valeu a fortíssima repreensão e a censura de Carlos V, que, em outubro de 1539, logo após as preleções Sobre os Índios, enviou uma carta ao prior do Colégio de Santo Estevão intimando-o a chamar todos os mestres e religiosos que, em aulas ou em sermões, pública ou privadamente, tivessem tratado a questão do direito da Coroa espanhola sobre aquelas Índias, obrigando-os, sob juramento, não só a dizer quando, onde e perante quem o tinham feito, mas também a entregar tudo o que tivessem escrito e/ou tivesse sido copiado sobre o tema. Daqui resultou, entre outras coisas, que Vitoria não tivesse publicado nada em vida, de tal maneira que era por vezes chamado o Sócrates espanhol. O seu legado, aliás, poderia bem ter-se perdido, não fosse o caso de os seus discípulos (de entre os quais se destacam Domingos de Soto, Melchior Cano, Domingos Bánéz, etc.), com o objetivo de descobrir a legitimidade e a universalidade da empresa espanhola na América, terem guardado, interpretado e disseminado as suas doutrinas, que assim se espalharam pelas universidades de Salamanca, Valhadolide, Alcalá, Coimbra e Évora, estando na base das doutrinas propriamente modernas de Luís de Molina e de Francisco Suárez, na Península Ibérica, bem como das de Hugo Grócio, Samuel Puffendorf e outros, já fora dela.

    Bibliografia

    FRANCISCO DE VITORIA (1932-1952). Comentarios a la Secunda Secundae de Santo Tomás. Ed. de V. Beltrán de Heredia (6 vols.). Salamanca: Los Dominicos de la Provincias de España.

    FRANCISCO DE VITORIA (1960). Relecciones Teológicas. Ed. crítica bilingue de T. Urdañoz. Madrid: Editorial Católica.

    FRANCISCO DE VITORIA (2010). De Legibus. Ed. de J. Barrientos García & S. Langella. Salamanca/Genova: Universidad de Salamanca/Universitá degli Studi di Genova.

     

    Autor: Gonçalo Pistacchini Moita

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