Lincoln, Abraham 2

Lincoln, Abraham 2
A vida de Abraham Lincoln (1809-1865) é, até hoje, uma das mais instigantes, facto provado pela continuação, ao longo de mais de um século e meio depois da sua morte, do trabalho de investigação académica e historiográfica à volta da sua figura. A fim de que o seu legado não seja esquecido, o vigésimo-sexto presidente dos Estados Unidos da América (1861-1865) conta com uma Sociedade Histórica, The Abraham Lincoln Historical Society, criada por um grupo de estudantes da University of Massachusetts History Club, que acreditam ter sido ele um dos mais influentes presidentes da história americana devido ao seu sucesso em derrubar a mais abominável das instituições do país: a escravatura; e com uma biblioteca, a Abraham Lincoln Presidential Library, em Springfield, Illinois; para além do icónico Lincoln Memorial (1922) no National Mall, em Washington, D.C., no qual encontramos a sua imensa estátua de 19 pés de altura, protegida por um templo constituído por 36 colunas que simbolizam cada Estado na “União”, à altura da sua morte. A altura da estátua por certo representa não só um presidente de alta estatura fisicamente, mas metaforicamente o alcance da sua visão num contexto conturbado da história política do seu país: a guerra civil (1861-1865). Provalvelmente menos visitado é o Emancipation Memorial (1876), também conhecido por Freedman’s Memorial ou Emancipation Group, um monumento em Lincoln Park no bairro Capitol Hill de Washington, D.C. Este monumento retrata Abraham Lincoln com uma cópia da Proclamação da Emancipação libertando um escravo, baseado na figura de Archer Alexander. O ex-escravo é retratado aos pés do presidente com um joelho no chão, prestes a levantar-se, de punho cerrado, sem camisa e algemas quebradas. O que torna este memorial interessante é o facto de ter sido financiado pelas remunerações de escravos libertos.
Interessante é também o facto de Lincoln, resumido em geral como um homem “comum e extraordinário”, ser alvo de um surpreendente leque de aparições no cinema e na televisão que retratam o presidente em todas as formas e variações – de anjo guia a assassino enlouquecido. Desde 1911 que a figura de Abraham Lincoln apareceu em cerca de 300 filmes e diferentes programas de TV, o que o torna uma “personagem” mais prolífica do que James Bond ou Sherlock Holmes. O primeiro retrato considerado verdadeiramente notável de sua vida teve lugar num filme de 1915, de D. W. Griffith, The Birth of a Nation. The Birth of a Nation é mais notório hoje devido ao seu racismo explícito, apresentando ainda uma representação perturbadora do assassinato de Lincoln, a 14 de abril de 1865, pelo ator John Wilkes Booth, enquanto o presidente assistia à peça Our American Cousin, no teatro Ford em Washington, D.C. O seu assassinato, no final de uma guerra civil que saiu cara ao país, foi um evento traumático que afetou profundamente muitos americanos. O legado de Lincoln na cultura popular encontra-se repleto de complexidades e contradições como atesta igualmente o trabalho académico sobre a sua vida e pessoa.
Filho de uma família humilde de lavradores, a verdade é que Lincoln não se sentia orgulhoso das suas origens, as quais lhe rendiam pouca respeitabilidade intelectual (GUELZO, 2004: 87). Ao futuro advogado, político e presidente não agradava o trabalho agrícola e, menos ainda, as restrições limitadas da cultura rural. A rudeza, violência e alcoolismo dos vizinhos também não lhe agradavam para além de não gostar do seu pai, o qual descreveu como não sabendo muito mais “in the way of writing than to bunglingly sign his own name” (LINCOLN, 1860: 61). Este desprezo pelo pai devia-se, sobretudo, ao abuso físico que este lhe infligia, especialmente depois da morte da sua mãe, quando Lincoln tinha apenas nove anos, e durante o seu segundo casamento. O futuro presidente deixa a casa do pai perto de Decatur, no Estado de Illinois, assim que atinge a maioridade, rumando em direção à cidade de Nova Orleães. Aí chega em 1831, como parte da tripulação de um barco de um proprietário de má fama de Illinois, Denton Offutt. Ofutt gostou tanto de Lincoln que o contratou para trabalhar na sua loja num outro entreposto promissor em New Salem, Illinois. Lincoln embarca, assim, na sua primeira carreira como lojista, o que acabou por não ser uma carreira particularmente bem-sucedida, uma vez que duas lojas em New Salem faliram. Daí, muda-se, em 1837, para Springfield, onde estuda Direito e se torna sócio de um dos mais bem reputados advogados do Estado, John Todd Stuart. Para além de começar a exercer advocacia, Lincoln torna-se membro de um partido político antítese do agrarianismo jeffersoniano seguido pelo seu pai.
Jornalistas como John Locke Scripps e Charles H. Ray, que conheceram Lincoln pela primeira vez na década de 1850, quando a sua carreira política começou a ascender em Illinois, viram nele apenas um respeitado advogado ferroviário e político, casado com uma mulher que pertencia à família política mais influente do Estado e que no Oitavo Circuito Judicial lhe havia construído uma impressionante rede de amigos e apoiantes políticos (MEARNS, 1858: 218). Lincoln desconfiou sempre não apenas das pessoas que poderiam expor as suas origens humildes, mas daqueles que queriam usar os aspectos menos convencionais da sua vida contra si, principalmente no que dizia respeito à sua religião, ou melhor, à falta dela. Não há evidência durante a década de 1840 de que Lincoln tenha frequentado alguma igreja em Springfield, tendo sido descrito pelos seus amigos como um religioso “céptico” ou mesmo um “infiel” (GUELZO, 2004: 88).
Advogado e político decerto dotado de pragmatismo, a quem os valores conservadores do Sul não atraíam, Lincoln presidente fica para a História por uma das suas maiores proezas e contribuições para os direitos humanos, a Proclamação de Emancipação, também conhecida por Proclamação 95, nos Estados Unidos, a 22 de setembro de 1862, iniciando o processo de abolição da escravatura em todo o território confederado. De acordo com as fontes históricas sobre a personalidade de Lincoln na Casa Branca, este foi um homem que combinou agudeza política com uma pitada de humor. Tal é atestado na descrição de Salmon Chase, na altura Secretário das Finanças, que se declarou genuinamente intrigado no dia em que Lincoln apresentou a Proclamação de Emancipação ao seu gabinete, e a prefaciou com uma leitura de “um capítulo” do humorista Charles F. Browne (“Artemas Ward”) “que ele [Lincoln] achou muito engraçado. Leu e pareceu gostar muito…” (apud DONALD, 1954: 149). A sua morte imprevisível levou a uma amarga disputa sobre como levar a cabo a Reconstrução, deixando tanto os sulistas brancos quanto os afro-americanos profundamente insatisfeitos com os resultados da União e perguntando-se como o resultado poderia ter sido alterado não tivesse Lincoln sido assassinado – um outro legado do presidente para o futuro da História centrada na sua presidência: a narrativa contrafactual, baseando-se na criação e especulação do que poderia ter acontecido (NORMAN, 2017: 43).
Frederick Douglass, o ex-escravo e líder nacional do movimento abolicionista em Massachusetts e Nova Iorque, profere um discurso intitulado “Oration in memory of Abraham Lincoln”, discurso este que ficou para a História, no dia da sua inauguração, a 14 de abril de 1876. Nele, Douglass reconhece que não se pode esquecer que tal manifestação nesse dia não teria sido “tolerated twenty years ago” (DOUGLASS, 1975: 310). O seu discurso desdobra-se em duas partes. Se, por um lado, “we are here to express, as best we may, by appropriate forms and ceremonies, our grateful sense of the vast, high, and preeminent services rendered to ourselves, to our race, to our country, and to the whole world by Abraham Lincoln” (DOUGLASS, 1975: 310), dedicando-lhe um monumento de bronze e granito que perdurará e no qual as gerações futuras possam ler “something of the exalted character and great works of Abraham Lincoln, the first martyr President of the United States” (DOUGLASS, 1975: 311); por outro, Douglass não deixa esquecer a verdade, e essa verdade “compels me to admit, even here in the presence of the monument we have erected to his memory, Abraham Lincoln was not, in the fullest sense of the word, either our man or our model. In his interests, in his associations, in his habits of thought, and in his prejudices, he was a white man” (DOUGLASS, 1975: 312). Na visão de Douglass, provavelmente a mais justa, Lincoln “was preeminently the white man’s President, entirely devoted to the wealfare of white men”, sendo os homens e mulheres negros, os escravos, na melhor das hipóteses, os seus enteados, e os brancos, os seus filhos (DOUGLASS, 1975: 312). A contradição percebida pelo abolicionista é a de que embora Lincoln tenha subido ao poder com um princípio, nomedamente a oposição à continuação da escravatura, os seus argumentos no apoio a esta política tinham como motivo e base a sua devoção patriótica aos interesses da sua raça, ou seja, a emancipação dos escravos foi consequência da necessidade de unir o país: “for while Abraham Lincoln saved for you a country, he delivered us from a bondage” (DOUGLASS, 1975: 313). Não tivesse sido Lincoln um homem de contradições e complexidades e Douglass não teria admitido que a melhor forma de compreender as suas ações é olhar para o contexto mais abrangente em que o homem político se viu envolvido: “We saw him, measured him, and estimated him; not by stray utterances to injudicious and tedious delegations, who often tried his patience; not by isolated facts torn from their connection; not by any partial and imperfect glimpses, caught at inopportune moments; but by a broad survey, in the light of the stern logic of great events, and in view of that divinity which shapes our ends, rough hew them how we will, we came to the conclusion that the hour and the man of our redemption had somehow met in the person of Abraham Lincoln. It mattered little to us what language he might employ on special occasions; it mattered little to us, when we fully knew him, whether he was swift or slow in his movements; it was enough for us that Abraham Lincoln was at the head of a great movement, and was in living an earnest sympathy with that movement, which, in the nature of things, must go on until slavery should be utterly and forever abolished in the United States.” (DOUGLASS, 1975: 313-314) Dadas as condições em que o seu país se encontrava, a tarefa de Lincoln em organizar os cidadãos que compunham uma América dividida não foi deveras fácil. No entanto, o presidente conseguiu ter sucesso nas duas missões da sua vida: salvar o seu país da desintegração e da ruína e libertá-lo do crime da escravatura. Se Lincoln, de acordo com Douglass, tivesse posto a abolição como a sua prioridade, teria afastado dele uma classe poderosa de americanos e tornado a resistência à rebelião impossível. Deste modo, podemos olhar para as ações humanitárias de Lincoln pela lente pragmática de um dos maiores interessados na abolição da escravatura e nos direitos de igualdade do seu povo: “Viewed from the genuine abolition ground, Mr. Lincoln seemed tardy, cold, dull, and indifferent; but measurring him by the sentiment of his country, a sentiment he was bound as a statesman to consult, he was swift, zealous, radical and determined” (DOUGLASS, 1975: 316).
O assassinato de Lincoln foi, assim, encarado por Douglass como uma grande perda para o país. Num discurso sobre o impacto do seu assassinato, Douglass descreve Lincoln como o primeiro presidente que “rose above the projudice of his times” (Milwaukee Daily). O abolicionista e os defensores da igualdade racial acreditavam que a visão de Lincoln sobre raça tinha progredido de tal modo que este se tinha tornado tanto o presidente dos brancos como dos negros. Se Lincoln não tivesse morrido dessa forma trágica e cruel – “unspeakable calamity” –, ele teria apoiado o sufrágio universal para os afro-americanos e teria estado do lado dos republicanos no Congresso que favoreciam a justiça para os oprimidos. Em 1883, Frederick Douglass profere outro discurso por ocasião do vigésimo-primeiro aniversário da emancipação no distrito de Columbia, no qual assinala o seu descontentamento com a direção que os direitos dos afro-americanos tinham tomado depois da morte de Lincoln. De acordo com Douglass, a mensagem e a missão do ex-presidente teriam de ser continuadas para que a total liberdade pudesse ser desfrutada por todos: “What Abraham Lincoln said in respect of the United States is a true of the colored people as of the relation of those States. They can not remain half slave and half free. You must give them all or take from them all” (DOUGLASS, 1975: 320).
Do mesmo modo, numa coletânea de narrativas escravas, podemos ler as suas histórias, por vezes ficcionadas e produto de uma memória longínqua, e “ouvir” a opinião sobre o presidente e interações com o mesmo: “Oooh, child, you ought to been there when Mr. Linktum come down to free us. Policemen ain’t in it. You ought to seen them big black bucks. Their suits was so fine trimmed with them eagle buttons and they was gold too. And their shoes shined so they hurt your eyes, I tell you I can’t remember my age but it’s been a long time ago” (BOTKIN, 1945/1973: 16); “When Fillmore, Buchanan, and Lincoln ran for President, one of my old bosses said, ‘Hurrah for Buchanan,’ and I said, ‘Hurrah for Lincoln.’ One of my mistresses said, ‘Why do you say, ‘Hurrah for Lincoln?’ And I said, ‘Because he’s going to set me free” (BOTKIN, 1945/1973: 17-18).
Presidente encarado, muitas vezes, como estranho e peculiar; que depois de assassinado se tornou num líder mártir, numa figura de Cristo que deu a sua vida para que a nação pudesse viver, que se sacrificou pela União (BRUNER, 1994: 405), em vida e enquanto presidente, ele não foi um grande líder nacional (WILSON, 2013: 2). No entanto, Lincoln permanece na memória de um povo, celebrado em romances, canções, poemas, peças de teatro, filmes, biografias, livros escolares, e na daqueles que por ele foram libertados das amarras esclavagistas e que hoje vivem apenas na memória dos seus descendentes e nas palavras que deixaram grifadas em livros: “I think Abe Lincoln was next to the Lord. He done all he could for the slaves; he set’em free” (BOTKIN, 1945/1973: 16).
Bibliografia
LINCOLN, A. (1860). “Autobiography written for John L. Scripps [c. June, 1860]”. In The Collected Works of Abraham Lincoln (1953) (vol. 4). R. Basler et alii (ed.), New Brunswick, NJ: Rutgers University Press for the Abraham Lincoln Association: 61-68.
BOTKIN, B. (ed.) (1945/1973). Lay My Burden Down: A Folk History of Slavery. Athens-London: The University of Georgia Press.
BRUNER, E. (1994). “Abraham Lincoln as Authentic Reproduction: A Critique of Postmodernism”. American Anthropologist, 96 (2): 397-415.
DONALD, D. (ed.) (1954). Inside Lincoln’s Cabinet: The Civil War Diaries of Salmon P. Chase. New York.
DOUGLASS, F. (1975). “Oration in Memory of Abrahm Lincoln”. In The Life and Writings of Frederick Douglass (vol. 4). P. Foner (ed.), New York: International Publishers: 309-319.
DOUGLASS, F. (1866). “Fred Douglass on Assassination and Its Lessons”. Milwaukee Daily Sentinel, March 23.
GUELZO, A. (2004). “The Unlikely Intellectual Biography of Abraham Lincoln”. Transactions of the Charles S. Peirce Society, 40 (1): 83-106.
MEARNS, D. (ed.) (1858). “Ray to Lincoln”, July 27. In The Lincoln Papers (1948) (vol. I). Garden City, NY: Doubleday & Company.
NORMAN, M. (2017). “‘Had Mr. Lincoln lived’: Alternate Histories, Reconstruction, Race, and Memory”. Journal of the Abraham Lincoln Association, 38 (1): 43-69.
WILSON, D. (2013). “Lincoln’s Rhetoric”. Journal of the Abraham Lincoln Association, 34 (1): 1-17.
Sandra Sousa
Como citar:
Sousa, S. (2022-2023). “Abraham Lincoln”. In J. Franco, P. Jerónimo, S. M. Alves-Jesus, T. C. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos. https://dignipediaglobal.pt/dicionario-global/lincoln-abraham-2 [ISBN: 978-989-9012-74-5]