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    Misericórdias

    As expressões Misericórdias, confrarias ou irmandades da Misericórdia ou Santas Casas da Misericórdia designam confrarias compostas por leigos que prosseguiam objetivos assistenciais. Pela sua rápida difusão e impacto social e religioso, tornaram-se as mais importantes confrarias caritativas em Portugal durante a Idade Moderna.

    A história das Misericórdia inicia-se com a fundação da confraria de Lisboa, no ano de 1498, desenvolvendo-se posteriormente um conjunto de fundações por todo o território nacional e ultramarino até ao século XX, totalizando ao presente cerca de quatro centenas e meia de instituições. A fundação das Misericórdias decorreu num período em que a prática da assistência estava intimamente relacionada com a caridade; era uma resposta a interpelações evangélicas e uma forma de promover a salvação das almas, que se fazia também pelas obras e não apenas pela fé; por isso, muitas das instituições assistenciais tinham a sua origem em obras pias (ABREU, 1999).

    Segundo Ivo Carneiro de Sousa, embora estas confrarias procedessem de uma longa tradição assistencial medieval, inauguraram um movimento confraternal verdadeiramente moderno, que combinava uma dimensão fraternal vocacionada para os principais e específicos problemas sociais da época, com uma dimensão religiosa renovada, centrada numa dimensão penitencial confraternal e pública (SOUSA, 2001). Assim, na atividade caritativa das Santas Casas salientavam-se duas dimensões; uma que direcionava a confraria para o exterior, consubstanciada na assistência aos necessitados através do cumprimento das Obras de Misericórdia, e outra vocacionada para o interior da confraria, representada numa proposta espiritual a ser vivida pelos confrades e que tinha por base a penitência.

    As Misericórdias tinham uma estrutura governativa complexa assente num conjunto de 13 irmãos, os oficiais, anualmente eleitos pelo conjunto da irmandade; a sua gestão era preconizada por um Compromisso, que continha disposições relativas à vida interna da instituição e à sua ação e aos seus membros. A sua ação tinha como ideário o exercício das 14 Obras de Misericórdia, embora se tenham dedicado preferencialmente, e na fase inicial de atividade, à assistência a pobres, doentes, presos e defuntos (SOUSA, 1998). A lista das Obras de Misericórdia foi composta considerando o Evangelho do juízo final de São Mateus (Mt 25, 31-45), mas também outros textos que se encontram na Bíblia e as instruções espirituais dadas por Cristo, e surgem nos tratados e textos de teólogos e autores espirituais ao longo da história.

    As Obras de Misericórdia são ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais (Catecismo da Igreja Católica, 2447), são uma forma de reagir contra as injustiças, como tal, têm como foco as pessoas. No que respeita às corporais, constituem um programa para suprir as suas necessidades mais básicas, como seja o alimento e a bebida. Tinham ainda outros pressupostos conducentes à dignificação da pessoa humana, como o vestuário, a habitação, ainda que temporária, o cuidado dos doentes e o enterramento após a morte. As obras de Misericórdia espirituais abrem todo um outro leque de apoio aos mais necessitados de âmbito mais comportamental; têm uma incidência no próprio e no outro e vão desde o dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos, passando por perdoar as injúrias e sofrer com paciência as fraquezas dos irmãos. O Papa Francisco, na sua mensagem para a celebração do Dia Mundial pelo Cuidado da Criação, em 2016, propôs uma oitava obra de Misericórdia: o cuidado da casa comum.

    No contexto das confrarias da Misericórdia havia igualmente uma preocupação com a vida humana, que era visível num gesto concreto realizado pela confraria; durante a execução de condenados, cujas ossadas eram recolhidas pelas Misericórdias, se a corda se partisse e a bandeira da Misericórdia tocasse no seu corpo, a sua vida era poupada. As bandeiras reais eram um dos equipamentos mais paradigmáticos dos espólios artísticos das Misericórdias. Neste âmbito destacavam-se também outros objetos e espaços que eram fundamentais para o desempenho da função assistencial das Misericórdias, mas também para a divulgação da sua espiritualidade e práticas devocionais. Estes objetos e obras de arte apresentam um conjunto de características próprias, que se relacionam diretamente com a função assistencial destas confrarias, com as suas principais devoções e com o quotidiano confraternal (PINHO, 2012).

    Os necessitados, a quem se socorre por intermédio das Obras de Misericórdia, são os privilegiados da Misericórdia divina, porque encarnam o próprio Deus, como afirma o texto de Mateus 25, 40: “quantas vezes o fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes”. Exercitar as obras de misericórdia comunica graças a quem as pratica; por um lado, está-se a fazer a vontade de Deus e dá-se algo de si aos outros; por outro lado, é uma forma de apagar a pena que fica na alma pelos pecados cometidos. As obras de Misericórdia vão tornando quem as pratica parecido com Jesus Cristo, o modelo de vida, que ensinou como deve ser a atitude humana para com os outros.

    A prática da Misericórdia constitui também uma bem-aventurança: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7).

    Assim, as confrarias da Misericórdia são uma experiência confraternal laica, cuja ação incide sobre as pessoas, e tem como valores a esperança, a solidariedade e a união; neste contexto, as obras de Misericórdia são o caminho que promove a união entre Deus e o Homem.

    Bibliografia

    ABREU, L. (1999). Memórias da Alma e do Corpo: A Misericórdia de Setúbal na Modernidade. Viseu: Palimage Editores.

    ABREU, L. (2001). “A especificidade do sistema de assistência pública português: Linhas estruturantes”. Arquipélago: História, 2.ª série, VI, 417-434.

    PAIVA, J. P. (coord.) (2002-2011). Portugaliae Monumenta Misericordiarum. (vols. 1-9). Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa/União das Misericórdias Portuguesas.

    PINHO, J. B. de (2012). A Casa da Misericórdia: As confrarias da Misericórdia e a Arquitectura Portuguesa Quinhentista. Dissertação de Doutoramento em História da Arte. Universidade de Lisboa.

    SÁ, I. dos G. (1998). “Práticas de caridade e salvação da alma nas Misericórdias metropolitanas e ultramarinas (séculos XVI-XVIII): Algumas metáforas”. Oceanos, 35, 42-50.

    SÁ, I. dos G. (2001). As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel I a Pombal. Lisboa: Livros Horizonte.

    SOUSA, I. C. de (1998). V Centenário das Misericórdias Portuguesas. S.l.: CTT-Correios de Portugal.

    SOUSA, I. C. de (2002). A Rainha D. Leonor (1458-1525): Poder, Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do Renascimento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

     

    Autora: Joana Balsa de Pinho

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