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    Estado de Direito

    1. Noção

    Estado de Direito (Rechtsstaat, État de droit, Stato di diritto, Estado de derecho) é uma expressão extremamente difundida, sem prejuízo das incertezas sobre o seu conteúdo. Convoca uma memória que remete para diferentes percursos, com concretizações específicas: “palavra de combate” (Kampfbegriff), com diversas adjetivações (formal e material; também democrático, social e ambiental/ecológico), mobilizada no plano interno, mas também ao nível internacional e supranacional, falando-se de comunidades de direito (vide, por exemplo, o Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses contra Tribunal de Contas – C-64/16, EU: C: 2018, 117, n.º 31,  dizendo-se expressamente que “[a] União é uma União de direito”).

    Entendemos por Estado de Direito uma forma de organização política, caraterizada pelo primado do Direito, assente na divisão de poderes e na garantia dos direitos fundamentais, que mergulha raízes na modernidade e que se exprime em diferentes modelos (Rechtsstaat e État legal, por exemplo: cf. CANOTILHO, 2003, 93-97). Em sentido jurídico-político, contrasta, na Europa Continental, com o Estado de Polícia (Polizeistaat), desenvolvido pela cameralística alemã e pela science de la police francesa, enquanto modo intervencionista do Estado absoluto. Recusamos, pois, um conceito muito amplo de Estado de Direito, ainda que com diferentes modos de concretização, também sustentado entre nós. Paulo Merêa (MERÊA, 2004, 242) fala de Estado de Direito, mas pondo inicialmente a expressão entre aspas, reconhecendo que “a soberania da lei, […] verdadeiro distintivo do Estado de Direito, não tinha garantia jurídica perfeita”, e acrescentando que, face à concentração de funções, “a sujeição de todas as atividades do rei à lei não passava de uma segurança precária” (MERÊA, 2004, 243). Martim de Albuquerque (2012, 126-137) contrapõe Estado de poder (ilustrado na obra de Maquiavel) e Estado de Direito da doutrina peninsular renascentista. Indo assumidamente mais longe do que Merêa, defende que se recortou uma verdadeira “carta dos direitos humanos” e também de “direitos fundamentais dos povos” (ALBUQUERQUE, 2012, 137).

    Não obstante o contributo da Rule of Law para o Estado de Direito – são significativas as convergências –, nem por isso há identidade entre as figuras. Por um lado, a âncora da ideia de Rule of Law tem raízes históricas profundas na história britânica, mas a sua sistematização é resultado de um labor com expressão paradigmática em autores como Albert Venn Dicey (sem prejuízo da terminologia Rule of Law ser anterior: cf. BINGHAM, 2010, 3, mencionando o papel de Blackburn), devendo ser articulada com a supremacia parlamentar (LEYLAND, 2016). As três dimensões de Rule of Law no clássico de Dicey são as seguintes: a primeira realça a prevalência do Direito em relação ao arbítrio do poder político, conjugando certeza do quadro normativo e a sua convocação por tribunais ordinários; a segunda aponta para a igualdade de todos os destinatários perante o Direito, o que, contudo, não exclui a existência de um sistema de imunidades (LEYLAND, 2016, 66); finalmente, não havendo uma “constituição codificada” – ao contrário do que, às vezes, se ouve, o Reino Unido tem uma Constituição e esta é parcialmente escrita –, os tribunais assumem um papel no recorte e na realização dos direitos (LEYLAND, 2016, 67). Este retrato clássico não está, no entanto, imune a críticas (para uma síntese, de novo LEYLAND, 2016, 68-71), não devendo esquecer-se que já não vivemos na sociedade oitocentista de Dicey (pense-se, por exemplo, na relevância dos direitos económicos, sociais e culturais para a realização da dignidade da pessoa humana). O papel do common law é também uma marca diferenciadora em relação ao quadro europeu constitucional.

     

    2.Memória e percurso

    2.1. Em geral

    A ideia de Estado de Direito é tributária de diferentes contribuições e tradições. Numa história muito longa – rectius, nos antecedentes, podemos encontrar raízes no pensamento grego clássico. Assim, a noção de isonomia (a apontar para a igualdade de todos perante a lei), um governo das leis e não dos homens, e, em termos de rostos, as contribuições de Platão e Aristóteles, por exemplo, incorporam-se nesse percurso. Esta cultura clássica permitiu equacionar a questão que encontramos espelhada em Aristóteles (Política, 1286a 7-9): “A nossa investigação começou por indagar se é mais vantajoso ser governado pelo melhor dos homens ou pelas melhores leis”. Na modernidade, depois da afirmação do absolutismo, ganhará corpo a ideia de constitucionalismo moderno, que conhecerá um conjunto de densificações na doutrina oitocentista e onde se inscreve a ideia de Estado de Direito.

    Em sentido próprio, o Estado de Direito é uma construção recente na história da humanidade. Não tendo uma certidão de nascimento com uma data precisa, em regra, considera-se que é filho do século XIX ou, no máximo, do final do século XVIII (RIDOLFI, 2017, 27-28, quanto ao uso da expressão Rechtsstaat), com temporalidades (e mesmo características) diferentes consoante os países (no caso francês, cf. CHEVALLIER, 2023, 21-22, com referências à obra de Leon Duguit, Maurice Hauriou e Carré de Malberg). Há que distinguir entre os pródromos do Estado de Direito – onde se incluem nomes como Immanuel Kant (para uma síntese, cf. AMARAL, 2005, 142-145), mas também Wilhelm von Humboldt, por exemplo – e a sua elaboração dogmática. Na construção oitocentista alemã do Estado de Direito, este assume um fundamento material – a liberdade e a propriedade, de que a teoria de Robert von Mohl é claro exemplo (GRIMM, 1987, 298). Sem prejuízo de referências anteriores, credita-se a R. von Mohl a elevação de Rechtsstaat a “uma verdadeira noção científica” (HUMMEL, 2002, 117-118; sobre Robert von Mohl, desenvolvidamente, considerando também os antecedentes em Adam Heinrich Müller e Carl Theodor Welcker, e não deixando de analisar a obra de Friedrich Julius Stahl, cf. RIDOLFI, 2017), com um percurso que não é possível aqui aprofundar, atendendo aos limites de espaço compatíveis com este Dicionário.

    Repare-se que, na doutrina italiana do século XIX, se dá conta das dificuldades de uma adequada tradução de Rechtsstaat, encontrando-se, nas traduções de obras de Otto Bähr e Rudolf von Gneist, respetivamente, “Stato giuridico” e “Stato secondo il diritto” (RIDOLFI, 2017, 11).

    A grande matriz do Estado de Direito em termos de Europa continental é, como se antecipou, alemã e ainda aí com diferenças, por exemplo, quanto ao controlo judicial da atividade da Administração: ou uma garantia assente na jurisdição ordinária (Hamburgo, por exemplo) ou uma tutela por via de uma jurisdição específica (modelo da justiça administrativa, v.g. Baviera). Na luta contra o arbítrio do poder – uma ideia que aponta para um Estado racional e vinculado pela lei –, assumirá especial importância a figura da reserva de lei, inicialmente entendida como uma reserva em termos de “liberdade e propriedade” (Freiheit und Eigentum), que, no percurso de desenvolvimento do Estado de Direito, se alargou. O princípio da legalidade da Administração (que hoje melhor se diria princípio da juridicidade) deixou de ser visto como mero limite de atividade da administração e passou a ser compreendido também como fundamento da atividade administrativa (no sentido de precedência de lei e de conformação positiva da ação da Administração).

    O Estado de Direito demoliberal foi dando lugar, numa sociedade técnica de massas, a um Estado social de direito (para uma sumária caracterização da circunstância, veja-se MONCADA, 1966, 207-210; desenvolvidamente, sobre as mudanças do Estado nesse tipo de sociedade, SOARES, 1969). Atualmente, vivemos ainda numa sociedade da técnica (“tecnociência”), mas esta não corresponde já ao modelo típico de sociedade de massas, sendo marcada por uma hiperindividualização e uma revolução digital que não deixam de desafiar o Estado de Direito.

     

    • Portugal: breves notas

    Em Portugal, e sem prejuízo de uma investigação específica em termos de história do conceito, que aqui não cabe, quanto à expressão Estado de Direito, interessa-nos o Estado como instituição e não o estado como condição da sociedade, sinónimo de quadro jurídico existente ou outros usos atestados na doutrina e nos debates na esfera pública. Por exemplo, na obra de Vicente Ferrer Neto Paiva aparece na aceção de condição da ordem jurídica (PAIVA, 1850, 31). Num debate na Câmara dos Deputados, Martens Ferrão, em 1855 (Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza, n.º 367, 28 de maio de 1855, 367), afirmava: “hoje […] o direito penal não expressa outro principio, mais do que o restabelecimento ou a reabilitação para a sociedade e para o indivíduo, que não deve ter outro fim, que não seja o restabelecimento do estado de direito na sociedade e no indivíduo; é necessário ver no sistema das prisões um meio de moralizar, um meio de se procurar a emenda do culpado, e a restituição dele à ordem social, para que possa prestar à mesma sociedade os serviços que lhe deve como seu membro”.

    Algumas ideias-chave do Estado de Direito aparecem expressas nas vestes de defesa do constitucionalismo: separação de poderes e a garantia dos direitos fundamentais (o “sistema constitucional”), com o desenvolvimento da responsabilidade política e jurídica, por exemplo. Ao longo da segunda metade do século XIX e no século XX, por via da leitura de fontes francesas e alemãs, mas também italianas e espanholas, Estado de Direito não é expressão desconhecida entre nós, sem prejuízo de preenchimentos distintos.

    Na 1.ª República, no Senado (Diário do Senado, Sessão n.º 132, de 24 de novembro de 1922, p. 9), encontramos, em 1922, a propósito das expropriações e do papel dos jurados na fixação das indemnizações, uma referência à doutrina (sem que o orador refira o nome do “notável professor”) que dá conta da alteração do quadro jurídico francês e em que se lê “O júri representou a transição do absolutismo para o estado do direito”.

    No Estado Novo, quer no plano dogmático quer na intervenção política, assiste-se à sua qualificação como Estado de Direito, não raro como sinónimo de Estado de legalidade administrativa. Enquadramento vivamente contestado atendendo ao quadro político e ao panorama de violação dos direitos fundamentais, ao “desfasamento […] total em relação à Declaração [Universal dos Direitos do Homem]”, como foi sublinhado, poucos meses antes da Revolução de Abril, por ocasião da celebração dos 25 anos da Declaração (CARNEIRO, 1974, 18).

    Em 1959, no âmbito dos debates por ocasião da revisão da Constituição de 1933, veja-se a intervenção de Afonso Pinto (Assembleia Nacional, Diário das Sessões, n.º 131, 8 de julho de 1959, relativo à sessão de 7 de julho, 1155; cf. também as pp. 1157-1158): “Quanto ao primeiro ponto – garantia da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração – lê-se em parecer da Câmara Corporativa o seguinte: ‘Não se desconhece naturalmente que a fiscalização jurisdicional serve um interesse público da maior importância – a defesa da legalidade –, ao mesmo tempo, que através dela se protegem, subsidiária ou reflexamente, os particulares cujos direitos ou interesses são afetados pela atuação ilegal dos agentes administrativos’. […] Já tive oportunidade de referir que, em face da nossa Constituição, o Estado Português é um verdadeiro Estado de Direito”.

    No plano doutrinal, na tradução de Die Principien der Politik, de Franz von Holtzendorff (1829-1879), professor em Munique, publicada em 1885 no Brasil, lê-se que “no nosso tempo, […] predomina a ideia do Estado jurídico (Rechtsstaat), segundo a qual tudo se deve fazer de conformidade com as leis, e nada em desacordo com elas […]” (cf. também 160, 164-165). Em Portugal, no final da monarquia constitucional, Marnoco e Sousa tratava do Estado de Direito a partir da doutrina alemã (SOUSA, 1910, 26): “a doutrina do Estado de Direito, apresentada por Bahr e desenvolvida principalmente por Gneist”.

    Em termos de ilustração, percorrendo o Boletim da Faculdade de Direito (Universidade de Coimbra) até aos anos 50 do século passado, o Estado de Direito aparece mencionado especialmente no período do Estado Novo, sem prejuízo da tradução de um artigo de Eduard Rosenthal, publicado nos últimos anos da República (ROSENTHAL, 1923-1925, onde se sustenta que se vive então “na época do ‘Estado de Direito’ – 40). Cabral de Moncada aborda a questão a partir do pensamento corporativo de Salazar e do art. 6. º, n.º 1, da Constituição de 1933 (“Promover a unidade moral e estabelecer a ordem jurídica da Nação, definindo e fazendo respeitar os direitos e garantias resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais e das corporações morais e económicas”), considerando que “a conceção duma ordem jurídica superior e transcendente […] não é senão a velha conceção do Direito natural combinada com a teoria do moderno ‘Estado de Direito’” (MONCADA, 1938-1939, 113, n.º 2). Afonso Rodrigues Queiró (1946) considerava que se articulou a fortaleza e a autoridade do Estado com um sistema de garantias, onde, além da fiscalização política da Assembleia Nacional, se previam mecanismos jurisdicionais de controlo, nomeadamente em sede de fiscalização da constitucionalidade (QUEIRÓ, 1946, 64-65). Escreve: “Procurou-se, em suma, moldar um Estado de Direito, não apenas em sentido formal (sentido que aliás se compadece com o próprio conceito de Estado totalitário), mas – e neste ponto indo na tradição do liberalismo – um Estado de Direito propriamente dito. A este conceito de Estado de Direito, consubstanciado na nossa ordem constitucional, contrapõe-se o de um totalitarismo, que se repudia, particularmente quando apoiado na instituição do partido único”.

    José Carlos Moreira, a propósito do Estado de Direito, realça também o papel do princípio da legalidade da Administração e a sua conexão com a Revolução Francesa (MOREIRA, 1949, 385; ainda sobre a relação entre Estado de Direito e “ideais ético-políticos do liberalismo”, v.g. BRANDÃO, 1941, 259). Fazendo a ponte com Locke, que considera uma importante influência de Rousseau, apresenta como “notas características e específicas do Estado-de-direito do século XIX” as seguintes: “o fundamento democrático da soberania, a supremacia da lei sobre as outras formas da atividade do Estado, os direitos individuais e naturais como finalidade e limite do poder público” (MOREIRA, 1949, 387). E, contrapondo-o ao Estado absoluto, define o Estado de Direito como “um Estado submetido ao império da lei, ou, dito de outro modo, um Estado limitado pelos direitos individuais e naturais” (MOREIRA, 1949, 390). O que seria particularmente conseguido em sede de poder judicial (MOREIRA, 1949, 393) e que o leva a afirmar que “apesar do seu regime autoritário, Portugal realiza, através de um sistema judicialista, o ideal do Estado-de-direito, em um grau nunca atingido pelos Estados, que se ufanam com o título de liberais e parlamentares” (MOREIRA, 1949, 408).

    José Manuel Cardoso da Costa assinala o peso que a teoria e a dogmática alemãs continuaram a ter, “com atenção […], em particular, aos novos horizontes e perspetivas nela abertos, ou a ela impostos, pela edificação do renovado Estado-de-Direito democrático e social de Bonn” (COSTA, 1989, 2). Esta influência transparece numa ideia de Estado de Direito que não o identifica com o Estado de legalidade, em que “[e]m face do legislador […] os cidadãos estão protegidos apenas pelo processo constitucionalmente prescrito para a formação da lei” (QUEIRÓ & MELO, 1967, 221). Na esteira da doutrina alemã que se afirma no pós-Guerra, mas com raízes anteriores, os direitos fundamentais são reconhecidos e não atribuídos pelo poder político, assumindo um papel essencial os direitos fundamentais, não apenas contra a Administração, mas também contra a Legislação (QUEIRÓ & MELO, 1967, 222). Neste sentido, o Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, procurando-se uma releitura da Constituição de 1933 (de novo, QUEIRÓ & MELO, 1967, 222), sem prejuízo das dificuldades resultantes de preceitos como o § 2.º do art, 8.º. Neste caso, em claro contraste com a Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), uma corrente defendia que, na prática, os direitos fundamentais acabavam por ficar nas mãos do legislador; contudo, outra linha, sem prejuízo de admitir uma importante margem de conformação autónoma por via de decisão político-legislativa, considerava como limite a salvaguarda do núcleo essencial das liberdades fundamentais (de novo, QUEIRÓ & MELO, 1967, 227, referindo depois em nota que, embora só consagrada na Lei Fundamental, do ponto de vista dogmático essa barreira – conteúdo essencial – era anterior, valendo no quadro da Constituição de Weimar: QUEIRÓ & MELO, 1967, 228, n.º 14). Não obstante, na ausência de uma cultura política de liberdades e de democracia, num Estado com uma poderosa polícia política, este tipo de discurso conhece limites efetivos, apesar dos esforços em contrário (cf. também, por exemplo, MIRANDA, 1968, 94, que entendia estar-se perante um Estado de Direito, reconhecendo, sem embargo, que, face à combinação de “institutos liberais e institutos autoritários e sabendo-se que se têm acentuado os segundos”, havia riscos de “atender [mais] aos preceitos autoritários”).

     

    1. Estado de Direito: um conceito ocidental?

    Uma das objeções que se pode fazer à ideia de Estado de Direito é sustentar que se trata de um conceito ocidental, basicamente europeu, incapaz de responder à diversidade cultural do mundo. Contudo, o facto de algumas ideias-chave do pensamento da contemporaneidade terem surgido no quadro da herança judaico-cristã não significa que não sejam válidas e justificáveis sem as raízes religiosas. O Estado de Direito é uma invenção essencial para a limitação da violência, esse traço recorrente na história da humanidade, quer se convoquem explicações mais assentes na natureza humana (antropologia pessimista ou realista, no limite traduzida em termos etológicos ou sociobiológicos) quer se privilegie o carácter mimético e a ideia de “bode expiatório” (exemplarmente, a obra de René Girard, v.g. GIRARD, 2023).

    Num mundo marcado por “modernidades múltiplas” (EINSENSTADT, 2011), de que forma é que a pertença a determinados círculos “civilizacionais” afeta a receção e as possibilidades da consagração do Estado de Direito noutros? Num simplificador e redutor “choque de civilizações” (HUNTINGTON, 1999), estaríamos perante um conceito sem raízes nesses países e cuja consagração num texto constitucional olvidaria a inexistência de uma cultura político-constitucional de suporte.

    Na verdade, um dos problemas é o da aplicação do conceito de Estado de Direito fora do discurso ocidental. Exportado para diferentes Estados, o princípio marca expressamente presença, por exemplo, nas constituições de vários países africanos (incluindo de língua oficial portuguesa), sendo elemento estruturante das suas ordens jurídicas. No entanto, se esta presença em sede de texto constitucional é recente na história dessas comunidades políticas, é pertinente perguntar se não haverá “equivalentes funcionais” nessas sociedades, no que toca aos seus modos de organização pré-coloniais e nas estruturas políticas que se mantiveram, em paralelo ou mesmo em articulação com os poderes tradicionais. Ou seja, quanto às teses que entendem que democracia e Estado de Direito são meras imposições (neo)coloniais, contrárias ao espírito destas sociedades, alguns trabalhos revelam raízes e tradições, importantes dimensões culturais para o alicerçar destas entidades políticas, que realizam valores como, v.g., a limitação do poder. Recorde-se Amartya Sen: em termos gerais, convocando contributos africanos e asiáticos para a democracia (SEN, 2004); em sede de teoria da justiça, recordando o pensamento indiano (SEN, 2012). Um aprofundamento da questão exigiria um trabalho de contextualização, que aqui apenas se pode ilustrar com uma obra centrada nos Ioruba (Nigéria), em que se analisam mecanismos tradicionais de Rule of Law (BEWAJI, 2016).

    1. Relação entre Estado de Direito e direitos humanos

    Sendo a Dignipédia uma obra centrada nos direitos humanos, importa sublinhar as relações entre estes e o Estado de Direito enquanto forma institucional. Comecemos por uma precisão: estamos perante um uso amplo de direitos humanos, havendo que distinguir diferentes perspetivas (ANDRADE, 2019, 15-35): filosófica, onde assume centralidade a questão da sua fundamentação, em parte reconduzível às abordagens jusnaturalistas, que, contudo, não a esgotam; jus-internacionalista (campo do direito internacional dos direitos humanos); finalmente, para o corte nacional (nos Estados Federais, também para os Estados-Membros), fala-se de direitos fundamentais, expressão que cobre hoje também uma entidade supranacional, como atesta a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

    Sem o reconhecimento de um catálogo de direitos não se pode falar de Estado de Direito; mas, também, sem ele, enquanto quadro institucional que possibilita a realização de direitos, estes não passariam de letra morta.

    Algumas ideias integram o património do Estado de Direito: pense-se no princípio da legalidade (rectius, da juridicidade da Administração), compreendendo dimensões como a prevalência ou primazia da lei, a precedência de lei em relação à atividade regulamentar e, claro, a reserva de lei.

    Central é também o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança. Se a segurança é uma tarefa central do Estado moderno, a ideia de segurança jurídica impõe-se não apenas nas relações interprivados, mas também ao próprio Estado. A oposição do liberalismo contra o despotismo assenta no combate ao arbítrio, magnificamente ilustrado na figura da rainha em Alice no País das Maravilhas e no seu “cortem-lhe a cabeça!” (CARROLL, 2004, 109).

    O Estado de Direito é verdadeiramente um “Estado de direitos fundamentais” (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, 83; também, mais desenvolvidamente, OTERO, 2007, 525-527, que prefere falar de um “Estado de direitos humanos” (526-527), na medida em que a segunda expressão se lhe afigura “mais rigorosa”, ao apontar para a centralidade da pessoa humana num tempo que considera de “debilitação da ‘fundamentalidade’ dos direitos fundamentais” (527)).

    Do ponto de vista institucional, os tribunais (nacionais e europeus) desempenham um papel essencial na tutela do Estado de Direito. Há hoje uma rede interjudicial que convoca não apenas os tribunais nacionais (no caso dos direitos fundamentais, com especial relevo para o Tribunal Constitucional, destacando-se ainda o lugar da sua jurisprudência na densificação de uma série de princípios), mas que se abre também a Estrasburgo (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, rebatizado “dos Direitos Humanos”) e Luxemburgo (Tribunal de Justiça da União Europeia; sobre este ponto, ver, por exemplo, LENAERTS, 2022).

     

    1. Estado de Direito: alguns desafios numa sociedade em rede

    O tema da crise do Estado de Direito (ou da Rule of Law) é recorrente, mesmo no quadro da União Europeia: pense-se, por exemplo, nas discussões em torno das chamadas “democracias iliberais”, nomeadamente na Hungria. Acresce que, em muitos países, medidas adotadas durante a pandemia vieram questionar os alicerces do Estado Constitucional.  Em geral, a “nova mudança estrutural da esfera pública” (HABERMAS, 2022) é um dos aspetos que condiciona o Estado de Direito, que é também democrático, social (para alguns, já pós-social: SILVA, 1996, 122-135) e ambiental.

    A digitalização traz desafios ao tipo Estado constitucional de direito. Mesmo não considerando agora uma apocalítica tecnocientífica –, no limite, a desaparição do ser humano –, refira-se, por exemplo, o desenvolvimento de mecanismos de vigilância, capitalista (ZUBOFF, 2020) ou não (pense-se na República Popular da China), capazes de limitar significativamente as liberdades.

    Outro ponto que tem gerado tensões, especialmente em certas ordens jurídicas, prende-se com o papel do poder judicial. Uma coisa é defender o jurisprudencialismo e o papel do juiz na realização do Direito (NEVES, 2012); outra é sustentar um ativismo judiciário – judex legibus absolutus?, pergunta-se, recorrendo a título de Bernd Rüthers (RÜTHERS, 127) – que desrespeita a autonomia do político, nomeadamente o campo do poder legislativo e a consequente escolha democrática.

    Há outros fatores que se prendem com condicionamentos de facto, que limitam a capacidade efetiva dos Estados. Assim, em relação à dimensão social do Estado de Direito – o Estado Social de Direito –, a globalização é um dos elementos que manifestamente reduziu a margem nacional, sendo que, por outro lado, estimulou a cooperação e o desenvolvimento de uma internormatividade relevante. Também têm sido vistas como ameaça ao Estado de Direito as mudanças do capitalismo, no quadro do que tem sido rotulado, com ambiguidade, neoliberalismo. Com efeito, contrastando com o seu uso atualmente mais difundido, a história do conceito revela-se complexa, sendo convocado, no quadro do Estado Social, como sinónimo de defesa da economia social de mercado face ao liberalismo clássico (v.g. HÖFFNER, 1997; entre nós, MACHADO, 1982, 1: “[o] Estado neoliberal (ou pós-liberal) viu-se forçado a chamar a si vastíssimas tarefas de política económica e social […]”). Para uma série de Estados, a proteção do investimento internacional, nomeadamente os mecanismos de arbitragem, revela-se como uma erosão do Estado de Direito e da decisão democrática. Acresce que o desenvolvimento do que já foi denominado Estado de austeridade (MCBRIDE e EVANS, 2017) não tem contribuído para a consolidação de um Estado de Direito material.

    As respostas jurídicas ao terrorismo e a outras ameaças em sede de segurança têm sido vistas como um elemento que perturba a lógica do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, especialmente após essa entrada violenta no novo milénio simbolicamente marcada pelo 11 de setembro.

    A defesa do Estado de Direito tem sido mobilizada também no quadro das relações institucionais e internormativas entre Estados nacionais e a União Europeia. Para além da convocação da soberania popular – expressão da vontade popular (o soberanismo é um termo em crescendo no mundo bibliográfico: v.g. GUÉNOLÉ, 2022) –, a ideia de Estado de Direito democrático tem sido convocada contra decisões de Bruxelas e do Luxemburgo (o Tribunal de Justiça da União Europeia não escapa à crítica de que, em algumas das decisões, estaria em interferir excessivamente na liberdade de conformação nacional).

    1. Estado de Direito e Constituição da República Portuguesa

    O Estado de Direito é um princípio estruturante da Constituição da República Portuguesa (CRP), concorrendo para a efetivação do princípio fundante: a dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP). Na verdade, o art. 2.º tem como epígrafe Estado de Direito Democrático. Na versão originária da Constituição, o Estado de Direito era apenas convocado expressamente no Preâmbulo. Jorge Miranda (2017, 72-87, 75) explica que se poderia ter utilizado Estado Social de Direito, não fora a carga política associada a Estado Social no período pré-Revolução (o Estado corporativo era então apresentado como Estado Social), além de se pretender sublinhar a conexão democrática (já antes, cf. MIRANDA, 1978, 500). Aliás, parte dos constituintes não queria um Estado Social, mas um Estado socialista. Gomes Canotilho (CANOTILHO, 2003, 241-281), na esteira da dogmática alemã, indica um conjunto de dimensões e subprincípios concretizadores do Estado de Direito, que, com pequenas alterações, se enunciam. Quanto às dimensões (formais e materiais), refiram-se as seguintes: a) juridicidade (o direito como medida do Estado [de direito], compreendido como um “Estado de distância” (Michael Kloepfer, apud CANOTILHO, 2003, 244), garantindo a esfera de liberdade pessoal perante o Estado e face aos outros (incluindo as pessoas coletivas); b) constitucionalidade (Estado de Direito marcado pelo primado ou supremacia da Constituição – art. 3.º, n.os 2 e 3 da CRP); c) jusfundamentalidade, isto é, consagração de um sistema de direitos fundamentais, quer sejam direitos, liberdades e garantias, quer direitos económicos, sociais e culturais; d) divisão de poderes, como princípio jurídico-organizacional [arts. 2.º, 111.º, n.º 1, 288.º, alínea j) da CRP), como princípio normativo-autónomo, exigindo-se uma salvaguarda do núcleo essencial das competências e ainda como princípio fundamentador de incompatibilidades: separação pessoal de poderes ou funções (juízes: artigo 216.º, n.º 3 CRP; deputados: art. 154.º, n.os 1 e 2 da CRP), não esquecendo a divisão horizontal e a divisão vertical de poderes (neste caso, concretizada na garantia da autonomia político-regional dos Açores e da Madeira (arts. 6.º, 225.º, 288.º, alínea o) da CRP) e na garantia da administração autónoma local (arts. 6.º, n.º 1, 235.º e 288.º, alínea n) da CRP]. A este rol acrescenta-se a sustentabilidade (aqui privilegiando a ideia de Estado de Direito ambiental ou ecológico), com concretização jurídico-constitucional [art. 9.º, alíneas d) e e) e artigo 66.º da CRP] e a convocar o princípio responsabilidade – recorde-se Hans Jonas (JONAS, 2006), em particular a responsabilidade para com as futuras gerações e o novo imperativo categórico: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína” (JONAS, 1994, 46).

    Em relação aos subprincípios concretizadores do Estado de Direito, mencionem-se: a legalidade (juridicidade) da Administração – reserva de lei (arts. 164.º e 165.º da CRP), prevalência, primazia ou supremacia da lei (arts. 266.º, n.º 2; 112.º, n.os 6 e 7 da CRP), primariedade ou precedência da lei (art. 112.º, n.º 7 da CRP); segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos, a estribar exigências como a da precisão ou determinabilidade das normas jurídicas (clareza das normas e densidade suficiente da normação legal; proibição de pré-efeitos de atos normativos), que não podem ter eficácia antes de entrarem em vigor,  o que não se confunde com a questão da retroatividade (normas vigentes, mas que se pretendem aplicar a factos anteriores), esta, tema nuclear do Estado de Direito; proibição do excesso, relevante no campo das restrições a direitos, liberdades e garantias – art. 18.º, n.º 2 –, como princípio geral de atuação da Administração (art. 266.º, n.º 2 da CRP), em matéria de medidas de polícia (art. 272.º, n.º 2 da CRP), e no domínio do estado de exceção (art. 19.º, n.º 4 da CRP), assente na análise da relação entre meios (medidas a adotar) e os fins a prosseguir, aferindo-se da sua adequação, exigibilidade ou necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; proibição do défice de proteção (questão da insuficiência das medidas) e ainda a proteção jurídica e as garantias processuais (com particular concretização em termos de processo penal (arts. 28.º, 32.º e 209.º, n.º 4 da CRP) e procedimentais, incluindo o princípio do acesso ao direito (art. 20.º) e a responsabilidade civil do Estado (arts. 22.º e 271.º da CRP).

    Estado de Direito que, além de tudo o mais, é conformado, na Constituição da República Portuguesa, como um Estado aberto às dimensões internacional e supranacional (RAMOS, 2023).

     

    7. Conclusão

    O Estado de Direito, compreendido em termos materiais e não meramente formais, é estruturante do Estado Constitucional, trazendo associadas as dimensões democrática (Estado de Direito democrático) e social (Estado de Direito Social ou Estado Social de Direito), que tomam a sério a igualdade muito para lá da clássica e, à época, revolucionária igualdade formal perante a lei.

    Bibliografia

    Impressa

    CANOTILHO, J. J. G. (1999). Estado de Direito. Lisboa: Gradiva.

    CHEVALLIER, J. (2023). État de Droit. (7.ª ed.). Paris: LGDJ.

    MEIERHENRICH, J. & LOUGHLIN, M. (ed.) (2021). The Cambridge Companion to the Rule of Law. Cambridge/New York/Port Melbourne/New Delhi/Singapore: Cambridge University Press.

    MORESO, J. J. (2021). “Stato di diritto”. In C. Caruso & C. Valentini (coord.). Grammatica del Costituzionalismo (81-93). Bologna: il Mulino.

    NOVAIS, J. R. (1991). “Estado de Direito”. In Dicionário Jurídico da Administração Pública (250-257). (vol. IV). Lisboa: Almedina.

    NOVAIS, J. R. (2022). Princípios Estruturantes de Estado de Direito (2.ª ed.). Coimbra: Almedina.

    TELES, M. G. (1984). “Estado de Direito”. In Polis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado (cols. 1185-1188). (vol. 2). Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo.

     

    Digital

    KIRCHHOF, P. (2022). “Rechtsstaat”. In Staatslexikon, https://www.staatslexikon-online.de/Lexikon/Rechtsstaat (acedido a 27.02.2024).

     

    Autor: João Loureiro

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