Interesse Público [Dicionário Global]
Interesse Público [Dicionário Global]
A expressão “interesse público” é regularmente utilizada na praça pública, em especial no campo da política, mas não apenas. Para dizer o mínimo, isto sucede, quase sempre, sem maior esclarecimento do que fundamenta (ou não) um “interesse” do género; ou sucede, ainda, de modo ambíguo ou suficientemente vazio para se poder adequar a qualquer situação. Esta circunstância não é assim tão diferente do que acontece com os próprios direitos humanos, tantas vezes utilizados em vão ou pela conveniência do momento.
Em Portugal, não distintamente diferente do geral das restantes realidades nacionais, não é ocasional o leitor cruzar-se com qualquer uma destas utilizações menos claras, inclusive no que tange a um cruzamento entre aquele “interesse” e estes “direitos”, isto é, os direitos humanos como do interesse público ou até o interesse público como um direito geral.
O problema de uma utilização e de outra é semelhante, se ali se pode levantar a questão sobre o que constitui um “direito” e o que é isso de ser global, aqui, qualquer um dos termos começa por causar embaraço, tanto o “interesse” como o “público”, embora mais o primeiro destes. Afinal, o que é isso de um “interesse” que pode ser global?
No espaço aqui reservado não se ambiciona delinear uma resposta para a questão colocada, mas tão-somente um levantamento do debate político-filosófico mais influente acerca da possibilidade de um “interesse público”, com o seu ápice nos anos de 1960, e fechar com um aporte para a atualidade. Mas ainda antes de elencar alguns dos seus protagonistas, não é possível prosseguir sem referir alguns dos autores anteriores e clássicos no que se refere a alguns dos conhecidos “registos” que apontam a um “interesse” como este em pauta.
É este o caso de Platão e Aristóteles, quase sempre arrumados com Hegel, no que pode ser entendido como um “registo unitário” (cf. HELD, 1970, 135 e ss.), entendendo-se a unidade de um interesse global, já não individualizado ou mesmo quando ainda individualizado, com o Estado (e, ainda, Agostinho e Tomás, se no lugar do Estado se encontrar a Igreja). Adivinhando-se os seus problemas na quase supressão do indivíduo.
Rousseau é normalmente visto como o antepassado de uma posição que visa o “bem comum”, com isso advogando a possibilidade de alguma coisa existir de inalienavelmente “comum”, mesmo quando não seja percebida pelos interessados (cf. HELD, 1970, 99 e ss.). Não é, portanto, coincidência que os seus seguidores, mais recentes ou não, se esforcem por livrar do constrangimento colocado por uma “vontade geral”, a qual pode ficar fora do controlo, em favor de uma minoria que a possa supostamente decifrar.
Bentham dá origem ao “registo agregativo”, por via do seu entendimento de uma sociedade como um “agregado” através do qual não se pode medir mais do que aquilo que a maioria prefere, sendo isso o “interesse” mais global possível (cf. HELD, 1970, 63 e ss.). Proposta que não pode satisfazer aqueles que não apenas não aceitam um primeiro ponto de partida mais individualizado, como aqueles que encontram no utilitarismo de fundo um problema, especialmente a partir da identificação das necessidades com as preferências (interesses).
Por causa de alguns dos autores de que vamos falar nas próximas linhas, vai tornar-se patente que também Kant pode ser encontrado nos antepassados do debate. Não obstante, não cabe agora maior nota sobre o filósofo, uma vez que nenhum “registo” dos mais significativos lhe fica diretamente associado.
Marx também pode ser (e, por vezes, tem sido) convocado para o debate. No entanto, para que essa convocação seja pertinente, é crucial esclarecer os termos do próprio debate, especialmente a premissa recorrente da propriedade privada (razão pela qual a discussão tem sido mais comum no campo político liberal do que noutros) e a existência de um espaço comum, público, que necessita de ser distinguido do privado. A falta desse esclarecimento pode resultar numa visão simplista, posicionando o autor contra o “interesse público” ou a favor de um tipo específico, frequentemente entendido como o “unitário”. Em vez de soluções simplistas, apontar para uma compreensão histórica e dialética na relação desse “interesse” com o seu contexto parece ser o caminho mais apropriado.
Posto isto, retomemos o rumo. Comecemos pelo que se considera uma das principais espoletas teóricas do debate em mãos.
Em 1955, quando Lippmann publica Essays in the Public Philosophy, giza, num capítulo precisamente intitulado de “public interest”, o que entende por este “interesse” – um balanço de “equações” ajustáveis entre o possível e o desejado –, enquanto lançava o seguinte desafio: “o interesse público pode ser presumido como aquilo que os homens escolheriam se vissem claramente, pensassem racionalmente, agissem de forma desinteressada e benevolente” (LIPPMANN, 1955, 42).
Com esta ideia, uma vez que o ser humano nem sempre ou poucas vezes parece corresponder a tal padrão, o que ficava sublinhado era o carácter acentuadamente aporético do debate, apesar de o autor acreditar que “os adultos vivos partilham, temos de acreditar [diz], o mesmo interesse público”.
Na década seguinte, uma revivescência do debate, senão mesmo uma tentativa de resposta à afirmação lippmanniana, pode ser encontrada numa coletânea da “Nomos” – The Public Interest (1962) –, a qual contém uma boa maquia de artigos de referência sobre o pensar de um “interesse público”. Nesta obra, aparecem incluídos textos clássicos para o levantamento de dúvidas e propositura de elementos para uma reflexão com vista a este “interesse”.
Por exemplo, num dos capítulos aí incluídos, Schubert (1962, 171-172, 175) vai entender que não existe uma teoria sistemática para o “interesse público”, para ele semelhante “interesse” não é mais do que um “rótulo” atribuído indiscriminadamente a uma miscelânea de compromissos particulares do momento.
Schubert foi leitor de Sorauf, autor que também aparece na mesma coletânea, com um capítulo de onde se pode retirar a expressão “trapalhada (ou confusão) conceptual”, precisamente a propósito de um “interesse público”.
Sorauf (1962, 83 e 85-86) começa logo por afirmar que o “interesse público” é um conceito “obscuro”, “confuso” e “não consensual”, referindo que a discórdia não existe somente por causa de uma definição em si (ou falta dela), mas por não se acordar sobre o que se define, se se trata de um “objetivo”, de um “processo” ou de um “mito”. Com o que o autor vai considerar uma junção do “is” (ser) com o “ought” (dever ser), vai denunciar uma confusão entre o real e o normativo, porquanto, umas vezes, o “interesse público” parece ser algo que, do público, é empiricamente atestável, e, outras vezes, parece só estar a ser tratado como um objetivo.
Do outro lado da moeda, do ponto de vista favorável a um “interesse público”, podemos encontrar Brian Barry. Este autor, além de também aparecer na mesma coletânea, vem a publicar a sua principal obra dez anos depois de Lippmann ter lançado o repto de que se deu conta, trata-se de um escrito seminal sobre o assunto, Political Argument (1967 [1965], especialmente a partir das pp. 173 e ss.).
A partir daí, o autor (BARRY, 1967[1965], 190) estipula uma nova base de entendimento para o debate geral, precisamente quando definia o “interesse público” como: “os interesses que as pessoas têm em comum qua [enquanto] membros do público”. A questão, para a generalidade dos pensadores que o seguiram (e seguem), comentam ou trabalham outros sentidos da mesma matéria, ocupa-se de saber como se pode definir, ou o que é realmente, esse “interesse”, uma vez que se garanta que os indivíduos se apresentam enquanto membros do mesmo público e não de outro modo.
Flathman, um ano depois, lança a sua obra que ainda hoje é uma ferramenta significativa para qualquer proposta que queira pensar o “interesse público” de uma perspetiva normativa. O autor apresenta uma descrição de aspetos normativos para tal “interesse”. Por conseguinte, existe sempre algum tipo de ideal moral a envolver o entendimento acerca de um “interesse público”.
Se voltarmos à Nomos, voltamos a encontrar outro texto fundante, neste caso para um “registo procedimental”, em parte, mais tarde, influente em Rawls e Habermas, mesmo que não diretamente repescado do seu autor. Trata-se do texto de Lasswell. Aqui a remissão essencial é feita para os “procedimentos”, para os “meios”, e não para o “princípio” ou até o “fim” da decisão. Se os procedimentos forem justos ou moralmente aceitáveis, então, o “interesse público” não tem como não ter sido levado em conta.
Não obstante a riqueza do debate registada à época, e apesar de uma curva ascendente, este embate teórico teve o seu ápice seguido de um quase apagão logo no início dos anos de 1970. Tal se deveu à publicação de The Theory of Justice (1971) de John Rawls.
A alusão que aí é feita a uma “posição original”, sobretudo no que tange à proposta de uma deliberação a coberto de um “véu de ignorância” (RAWLS, 1999 [1971], 118-123), veio a ser, de um modo geral, aceite, para quase todos os contendentes, como uma solução (ainda quando apenas aceite como parcial) para o enigma lippmanniano, mesmo que não se referissem a este ou se opusessem à proposta. Esta “posição” acabou por constituir o espaço almejado para o “ato desinteressado e benevolente” em prol de um “interesse público”.
O rápido mediatismo rawlsiano acabou por resultar numa estranha folga intelectual do assunto: ex post facto, redundou numa miríade de comentários sobre a diversidade das teses de Rawls, no lugar de se pensar com efetividade alguma alternativa ou desenvolver outros traçados do debate anterior. É como se tivesse passado a haver, em especial no que se refere ao tema do “interesse público”, uma filosofia pré e outra pós-rawlsiana (SANTORO & KUMAR, 2018, 67 e 71).
Não obstante o plano almejado por Rawls, o desvio por ele operado do problema de um “interesse público” para um indivíduo, em ato isolado, e apartando-se (vendando-se) das suas próprias condições sociais, não pode ser compreendido sem o contexto da transição teórico-prática dos anos de 1960 para 1970, ora, o do apogeu “neoliberal”. À época os debates intelectuais eram forçados a focar-se na liberdade, mais do que noutras circunstâncias, designadamente o fundamento da desigualdade, inter alia.
É sintomático que a última grande compilação referente a um “interesse público ainda seja a de Held, a qual saiu, não por acaso, um ano antes da Magnum opus de Rawls. Mas também é sintomático que o último “registo” mais popular e recente para o “interesse público” provenha de Habermas, uma vez que este autor não pretende estar necessariamente inserido na tradição que ali teve o seu eixo, independentemente do debate que manteve com Rawls nas décadas seguintes. A elaboração habermasiana é tida como “deliberativa”: o “interesse público” aparece como uma deliberação democrática universalmente aceitável dentro de condicionantes racionais.
Afora o impacto (quase derradeiro) da proposta rawlsiana, mais tarde desenvolvida pelo mesmo autor, noutros textos e na revisão do texto original, e apesar de ele ainda continuar a ser uma das principais referências, e não apenas em termos de state of the art, o debate acerca do “interesse público” tem ganho nova vida, com vários autores a recuperar os “registos” mais populares e que se aproximaram mais de uma quase sistematização sobre o tema.
Para nomear apenas três pensadores mais recentes, indica-se ser esse o caso de Joshua Cohen e O’Flynn, e Pettit, os primeiros dois encontram-se mais orientados para o “registo deliberativo”, e o segundo, para o do “bem comum”. A continuidade de crises cíclicas na economia, e não estritamente, sobretudo o rebentar das crises ocorridas já no século XXI, veio tornar o tema novamente pertinente.
Para fechar o círculo, os “registos” podem ser diversos, como em tão curto espaço se pode atestar, mas o debate parece aceitar com suficiente consenso a necessidade de se ter na base um conjunto de direitos, de balizas mínimas para a dignidade humana, quando se avalia o “interesse público”, salvo algumas exceções mais avessas a um patamar normativo ou quasi-normativo, mesmo quando diminuto. Conquanto as dificuldades que se levantam em cada contexto histórico para cada “registo”, e às vezes até para as críticas que surgem sobre a possibilidade de um tal “interesse”, parecem persistir, em especial se se descura a historicidade (a complexidade e a relação mútua entre os diversos fatores sociais, incluindo-se os individuais, em devir) que permeia as sociedades que os debatem.
Bibliografia
ANTUNES, P. (2024). Marx e o Interesse Público. Contributo para um Debate Político-Filosófico Contemporâneo, Lisboa: Página a Página – Divulgação do Livro, SA.
BARRY, B. (1967[1965]). Political Argument. London: Routledge & Kegan Paul.
FLATHMAN, R. (1966). The Public Interest. An Essay Concerning the Normative Discourse of Politics. New York: John Wiley and Sons.
HELD, V. (1970). The Public Interest and Individual Interests. New York: Basic Books.
LASSWELL, H. D. (1962). “The Public Interest: Proposing Principles of Content and Procedure”. In K. J. Friedrich (ed.). The Public Interest (Nomos V) (54-79). New York: Atherton Press.
LIPPMANN, W. (1955). Essays in the Public Philosophy. Boston/Toronto: Little, Brown and Company.
O’FLYNN, I. (2010). “Deliberating about the Public Interest”. Res Publica, 16, 299-315.
PETTIT, Ph. (2004). “The Common Good”. In K. Dowding et al. (eds.). Justice and Democracy: Essays for Brian Barry (150-169). Cambridge: Cambridge University Press.
RAWLS, J. (1999[1971]). The Theory of Justice. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press.
SANTORO, D. & KUMAR, M. (2018). Speaking Truth to Power. A Theory of Whistleblowing. Cham, Switzerland: Springer International Publishing.
SCHUBERT Jr., G. A. (1962). “Is There a Public Interest Theory?”. In K. J. Friedrich (ed.). The Public Interest (Nomos V) (162-176). New York: Atherton Press.
SORAUF, F. J. (1962). “The Conceptual Muddle”. K. J. Friedrich (ed.). The Public Interest (Nomos V) (183-190). New York: Atherton Press.
Autor: Paulo Antunes