Teixeira, Judith [Dicionário Global]
Teixeira, Judith [Dicionário Global]
O início do século XX em Portugal é conhecido como uma combinatória instável de reivindicação de liberdade e repressão social. Herança da cultura francesa (com a Belle Époque), dos novos ideais estéticos e culturais advindos com os “ismos” e dos loucos anos 20, surge nas camadas das elites portuguesas um desejo pela libertação de padrões de comportamento, que será combatido por movimentos conservadores. Nesse cenário, emergem círculos de elite de mulheres intelectuais que reivindicam a sua plena realização no plano da cidadania ativa e participante ao lado dos homens. Algumas, motivadas por esse contexto (cf. KLOBUCKA, 2019; CUROPOS, 2019; CASTRO & CRUZ, 2023), reclamam, de maneira mais exposta ou discreta, o direito à realização afetiva e sexual do amor lésbico.
É nessa senda que surge Judith Teixeira (Viseu, 25/01/1880-Lisboa, 17/05/1959), sem filhos, cujo espólio permanece perdido – uma parte dos manuscritos da autora foi comprada por Cláudia Pazos Alonso na Livraria Histórica e Ultramarina em Lisboa, na década de 90, e doada à Biblioteca Nacional de Portugal, em 2023. Inicialmente escondida sob o pseudónimo de Lena de Valois em algumas poesias e em dois contos publicados no Jornal da Tarde (“Alma simples (Fé)”, de 21/10/1918, e “Lali”, de 10/01/1919), Judith Teixeira adotará, depois, o apelido do segundo marido, o advogado Álvaro Virgílio de Franco Teixeira, com quem se casou a 22 de abril de 1914, no Bussaco. O seu primeiro casamento foi com Jaime Levy Azancot, que a acusaria de adultério e abandono do lar (como revelado aquando da publicação da obra da autora pela editora &etc, em 1996).
Na sociedade da época, em que o papel da mulher era o tradicional, doméstico, com direitos muito limitados, e em que as mulheres se começavam a organizar para reivindicar o direito ao voto, à instrução, ao trabalho, à administração dos bens e à lei do divórcio, Judith Teixeira causou escândalo, estigmatizada com o tema sáfico: foi uma das escritoras mais ousadas a representar o desejo lésbico e a sua consumação carnal, e fê-lo justamente na altura da polémica da “Literatura de Sodoma”, desencadeada pela crítica de Fernando Pessoa às Canções (1921) de António Botto na Revista Contemporânea, em 1922, seguida de um opúsculo de Raul Leal (Sodoma Divinizada, 1923) e de Decadência (1923), de Judith Teixeira, publicações precedidas e sucedidas por artigos de jornais contra e a favor dos autores e das suas obras. Judith emerge, pois, como autora bem na efervescência dos chamados “loucos anos 20”, numa sociedade que surge à velocidade das máquinas, com as aspirações de liberdade, num “período de otimismo, progresso e excentricidade, perpetuando no imaginário coletivo uma época de loucura, durante a qual germina (ironia das ironias) a semente de um autoritarismo de consequências devastadoras” (MAGALHÃES, 2021, 10), assistindo-se ao despontar de um movimento reverso de conservadorismo. No caso da poetisa, essa repressão vem exatamente dos estudantes das escolas superiores de Lisboa, que se unem para tentar proibir a venda de obras com temática queer (para recorrer a um conceito atual) ou, como segundo eles, “imoral”.
Os textos da polémica “Literatura de Sodoma”, à exceção dos de Judith Teixeira, foram recolhidos e publicados por Zetho Cunha Gonçalves (2014).
O primeiro foi de Fernando Pessoa (“António Botto e o ideal estético em Portugal”, de julho de 1922), que afirma ser Botto o único “esteta” português, isto é, a seguir o “ideal helénico”. Refletindo sobre os conceitos de “perfeito” e “imperfeito”, flutuantes, faz uma ressalva ao afirmar que, para o cristianismo, só Deus e a alma são perfeitos, afirmando ser a civilização helénica essencial à artística, dado que, para ela, fazer arte seria tornar o mundo mais belo, uma vez que uma obra constitui uma beleza objetiva que poderá juntar-se às outras já destacadas. Isto porque, para os helénicos, a vida é imperfeita, pelo que tentavam substituir pela perfeição da arte a imperfeição da vida, só sublime num determinado tempo feliz, assim momentaneamente sentido. Acresce que, ainda na perspetiva de Pessoa, a obra de arte de um esteta é destituída de metafísica e de moralismo, pelo que as Canções de Botto revelam elevada intelectualidade, cuidado na forma e no ritmo, falta de espontaneidade emotiva: estava informada de reflexão crítica e de ideais de beleza física e de prazer, independentes de qualquer (i)moralidade.
A segunda peça da polémica é uma réplica de Álvaro Maia, jornalista e crítico, onde surge pela primeira vez a expressão “Literatura de Sodoma” (“Literatura de Sodoma. O sr. Fernando Pessoa e o ideal estético em Portugal”, de outubro de 1922). Maia inicia o seu ensaio referindo que hesitou em escrever o texto e acusando Pessoa de parcialidade, dizendo que a sua opinião não será baseada em princípios religiosos e morais, mas helénicos, e justificando a sua intervenção com a proeminência de Pessoa à época e com a sua total discordância relativamente à sua defesa das Canções de Botto: sem arte nem beleza, considera a obra uma “miséria impressa” e afirma que a relação amorosa e sexual entre dois homens referida na obra é uma apologia daquelas aberrações sexuais que levaram Deus a sepultar Sodoma e Gomorra sob um dilúvio de enxofre e fogo. Além disso, considera ainda um tremendo lapso a associação do ideal estético helénico à obra de Botto.
Seguem-se textos de Pessoa e do seu heterónimo Álvaro de Campos, de Raul Leal, do próprio António Bottto e do líder conservador e antigo diretor da Federação Académica de Lisboa, Pedro Theotonio Pereira, aluno do 4.º ano de Matemática da Escola Politécnica. Assim, em fevereiro de 1923, esta polémica irá parar aos jornais com mais intensidade, sobretudo devido a Sodoma Divinizada e Decadência. Por um lado, Raul Leal defende a obra de Botto e reflete a partir de conceitos metafísicos da conceção de Deus e divindade, relacionando a emoção luxuriosa (profana, terrena, alheada de Deus, de alguns luxuriosos, ou mística e divina, se os sujeitos forem místicos em pura exaltação, sentindo Deus em todas as coisas) com o pederasta (se ele for um místico que sinta “Deus em Unidade Pura”). Leal conclui com a afirmação de que António Botto não satisfaz o seu ideal de luxurioso e pederasta místico, mas não deixa de sublinhar que é um grande poeta (cf. SILVA, 2023). Por outro lado, Judith Teixeira, em Decadência, canta versos de índole lesboerótica e afetiva, descurando a camuflagem do tema mantida por muitas escritoras portuguesas (caso de Virgínia Victorino). Por exemplo, a expressão do erotismo feminino em “A minha amante”, aludindo a comentários alheios sobre essa relação (“Dizem que eu tenho amores contigo!”) é ousadia censurada: o desejo feminino era encarado como uma “tara perversa,”, ainda mais entre duas mulheres, onde parece ser manifestação do “génio do mal” (TEIXEIRA, 2015, 82).
Se a condição queer (para usar um conceito atual) é condenada nesse contexto como perversa e maligna, mesmo com uma suposta abertura de liberdade sexual trazida com os chamados “loucos anos 20”, a autora não escapa a essa negativização e intervém na polémica no Diário de Lisboa (“A polícia e as letras. O caso da apreensão dos livros e o que nos afirma D. Judith Teixeira”, de 6 de março 1923), periódico que publica uma série de poemas seus. Declara, então, que essa não seria a última injustiça dos homens e que o seu livro pode conter “qualquer nota decadente, uma ou outra mancha de cor sensual, mais rubra, além da meta dos preconceitos, mas também lá se encontra muita ansiedade, muita dor, muita alma – e tudo é mera atitude literária” (TEIXEIRA, 1923, 5). E relembra que obras como as de Émile Zola, Filipe Trigo, o marquês d’Hoyos, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Santa Teresa de Ávila, e até a própria Bíblia, possuem o “génio sensual, sem que por isso se tenha turvado o sono dos meus opressores” (TEIXEIRA, 1923, 5). É a resposta, também, à ordem de apreensão de obras com um “ultraje à moral” do governador civil de Lisboa, concluindo que o seu livro não merece tanta “celebridade”, e a autora não tem dúvidas de que, quando as autoridades lerem a obra, irão restituí-la às livrarias. Ou seja, para Judith, o conteúdo da sua obra (inclusive o desejo sáfico) não atentaria contra os padrões sociais: por um lado, o livro já se vendia regularmente, e as pessoas que a conheciam não suporiam dela um “livro menos delicado”; por outro, havendo necessidade de moralizar a sociedade, difícil seria fiscalizar e definir “com inteireza esta palavra moralista!” (TEIXEIRA, 1923, 5). A “autora apreendida”, como refere o jornalista que não assina a nota, lembra a distinção entre vida e arte, ameaçando com o tribunal se as autoridades persistirem, ilicitamente, com a apreensão. Termina a entrevista revelando a intenção de publicar um outro livro de versos, que seria “muito sereno, muito espiritual” (refere-se a Castelo de Sombras, também publicado em 1923), e que não iria ofender a “moralidade literária da polícia” (TEIXEIRA, 1923, 5). Assinale-se que Judith Teixeira só refere explicitamente o amor sáfico nos seus versos, visto que na sua defesa a autora fala em “moralidade/imoralidade”, nunca menciona o amor entre duas mulheres, nem usa o termo “pederastia”, mesmo na sua conferência-manifesto intitulada De Mim. Conferência em Que Se Explicam as Minhas Razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral (1926).
Como bem atentou Mário César Lugarinho, “Do episódio da ‘literatura de Sodoma’ o que fica claro é o combate que uma sociedade travou consigo mesma diante da emergência da homossexualidade como um discurso autónomo e desafiador (LUGARINHO, 2003, 144).
Judith Teixeira defende, assim, o direito de liberdade sexual e amorosa (lésbico, daí a censura) na vida e na arte, contribuindo, com a sua obra, para o progresso do reconhecimento dos direitos humanos e combatendo a discriminação.
Bibliografia
Impressa
CUROPOS, F. (2019). Lisbonne: 1919-1939. Des Années presque Folles. Paris: L’Harmattan.
GONÇALVES, Z. C. (org.) (2014). Notícia do Maior Escândalo Erótico-Social do Século XX em Portugal. Lisboa: Letra Livre.
MAGALHÃES, P. G. (2021), Os Loucos Anos 20. Diário da Lisboa Boémia. Lisboa: Planeta.
TEIXEIRA, J. (1996). Poemas. Lisboa: &etc.
TEIXEIRA, J. (2015). Poesia e Prosa. Org. e estudos introdutórios de C. Pazos Alonso & F. M. da Silva. Lisboa: Dom Quixote.
Digital
CRUZ, E. & CASTRO, A. (2023). “Imagens do desejo homoafetivo feminino em Portugal no princípio do século XX”. Entheoria – Cadernos de Letras e Humanas, 10 (2), 5-29, https://www.journals.ufrpe.br/index.php/entheoria/article/view/6225 (acedido a 20.02.2024).
KLOBUCKA, A. (2009). “Summoning Portugal’s Apparitional Lesbians: A To-Do Memo. Comunicação apresentada à Association of British and Irish Lusitanists [Maynooth, National University of Ireland, setembro de 2009], https://www.academia.edu/190256/_Summoning_Portugal_s_ (acedido a 20.02.2024).
LUGARINHO, M. (2003). “‘Literatura de Sodoma’: O cânone literário e a identidade homossexual”. Gragoatá, 14, 103-145, https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33451/19438 (acedido a 20.02.2024).
SILVA, F. M. da (2023). “Breves considerações sobre os antecedentes e subsequentes embates sobre a publicação de Sodoma Divinizada, de Raul Leal”. Via Atlântica, 24 (2), 216-240, https://doi.org/10.11606/va.i2.209246 (acedido a 20.02.2024).
TEIXEIRA, J. (1923, 6 março). “A Polícia e as letras. O caso da apreensão dos livros e o que nos afirma D. Judith Teixeira”. Diário de Lisboa, 586, ano 2, 5, http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05740.004.00865 (acedido a 20.02.2024).
Autor: Fabio Mario da Silva