Universalismo [Dicionário Global]
Universalismo [Dicionário Global]
O universalismo é a perspetiva que toma o conjunto da realidade como critério último de validade de qualquer (pro)posição, tanto buscando esse universal como já constituído, como tentando edificar esse consenso universal. Comporta ainda, etimologicamente, um significado religioso múltiplo que aqui não se aborda, por ser extrínseco à radicação do termo na história e teoria dos direitos humanos (essencialmente laica, de feição social e jurídica maioritariamente moderna).
Conceito relacionado com o âmago dos direitos humanos desde a formulação destes, no Iluminismo, comporta uma filiação teórica remota com o pensamento filosófico que aqui não podemos explorar, envolvendo os conceitos de “universal” e de “categoria”. Dessa pré-História conceptual, “universalismo” comporta uma polemicidade inevitável e um estatuto como que meta-conceptual, um constructo teórico que não é sequer “tipo-ideal”, antes sim um pressuposto dos conceitos que definem a conceptualização dos direitos humanos.
Na própria história dos direitos humanos, “universalismo” evoluiu, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, expressão ainda marcada por um Iluminismo de carácter enciclopedista, para uma conceção processual e não tanto normativa, o que não significa que tenha sido operada uma desvinculação completa entre universalismo e universalidade, antes sim uma enfatização do método sobre o resultado – permanecendo este último termo preponderante enquanto teleologia dos direitos humanos em sentido pleno.
Metodologicamente, o universalismo encontra-se em contraste com conceções do real que se definem pela exclusão da alteridade (em nome de tradição, raça, etc.), às quais logicamente se opõe, oposição que, para não ser vítima do mesmo processo de autofechamento, inclui essas conceções antagónicas como partes do processo em direção à universalização dos direitos humanos. Um universalismo consequente com os seus pressupostos teóricos não se desenvolve em negação de alternativas, mas na sua subsunção. Isto não implica nenhuma dialética particular, tendo assumido historicamente várias manifestações (desde a imposição dos direitos humanos pela força até à sua permeabilidade a subversões teóricas e práticas as mais diversas).
Axiologicamente, além de subsumir posições particularistas (éticas específicas, religiosas ou não), mantém um nexo com o chamado “relativismo” (usualmente um termo aplicado em sentido moral, a custo de grandes ambiguidades). Neste ponto, convém observar que não é incompatível com éticas que advoguem a impossibilidade radical de uma posição objetiva, i.e., de uma metaética universalista. Com efeito, é dentro desse pressuposto universal que tais posições críticas são concebidas, e o seu alcance mais fecundo não consiste tanto em negar o universalismo como em matizá-lo. A diferença entre a negação dos direitos humanos como “ideologia burguesa” e a sua crítica como “sintoma” reside em grande medida nesta diferença (ver, e.g., Marx e Nietzsche).
Muito deste debate filosófico entronca em questões jurídicas, as quais constituem uma tradição teórica autónoma, a única com uma continuidade tão longa quanto a filosófica e a religiosa. Na sua vertente institucional, encontramos sempre o plano jurídico como decisivo na afirmação dos direitos humanos (e sua universalidade, concebida seja em que modo for). Ao longo da História, podemos identificar numerosos antecessores ou precursores dos direitos humanos (a Magna Carta, textos fundadores das revoluções Americana e Francesa, o enciclopedismo, para nomear apenas alguns), e, em todos eles, as realidades sociais que os geram ou os definem são concebidas em linguagem jurídica, mais ou menos filosófica, espiritual e politizada. No passado (Burke) como no presente (crítica à ordem internacional mantida pela Organização das Nações Unidas), também as contestações mais bem-sucedidas aos direitos humanos, em geral, e à sua universalidade ou universalização, em especial, assumem uma forma jurídica, necessária para contrapor alternativas. Essa componente institucional do debate sobre direitos humanos, sobretudo depois de 1945, adquire relevo jurídico particular quando o alcance político do universalismo é reduzido e a sua pertinência filosófica é muito abstrata. Assim, o universalismo persiste relevante sobretudo como conceito-regulador no horizonte de sentido dos direitos humanos, um “espírito da Lei”, mais do que a sua “letra”. Deste modo, embora tenha uma dimensão metodológica que o define, a pertinência do universalismo na história dos direitos humanos remete mais para o estatuto teórico dos direitos humanos do que para o dos seus beneficiários diretos, os quais dependem, para a sua dignidade, mais da normatividade jurídica e da sua aplicação a cada caso concreto.
Bibliografia
Autor: Carlos Leone