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  • Alcorão [Dicionário Global]

    Alcorão [Dicionário Global]

    O substantivo “Alcorão” e o seu sinónimo “Corão” designam o livro sagrado do islão, ao derivarem da expressão árabe al-Qurʾān, que significa “a Recitação” ou “a Recitação Eloquente”, ou ainda “a Junção”. Na religião islâmica, o Alcorão é a palavra incriada de Deus (Allāh), revelada em língua árabe através de Muḥammad (Maomé), profeta do islão que viveu na Península Arábica entre c. 570 e 632. A revelação do Alcorão ocorreu entre 610 e 632, estabelecendo o árabe como idioma sagrado do islão. A própria revelação aconteceu, segundo a tradição islâmica, com a intervenção do anjo Gabriel e através de diferentes modalidades, tanto na cidade de Meca (onde Muḥammad nasceu), como em Medina (onde faleceu), como ainda em outras circunstâncias consideradas milagrosas. O Alcorão é o “livro” (kitāb) que encerra a revelação da palavra de Deus à humanidade, sendo Muḥammad o selo da profecia, a fechar uma sucessão de profetas do islão – enviados e mensageiros de Deus – que se estende, desde o primeiro ser humano, Adão, até ao próprio Muḥammad, e que inclui, entre outros profetas, Abraão, Moisés e Jesus “filho de Maria” (V, 17).

    Todos os profetas e livros sagrados transmitiram à humanidade a mensagem do “monoteísmo” (tawīd) e o mandamento da “entrega/submissão” do ser humano a Deus, conceito expresso em árabe pela palavra islām (islão), que dá o nome a esta religião, conforme o próprio texto alcorânico refere (V, 3). O Alcorão compõe-se de 114 suras (singular sūrah, “capítulo”, “parte”) cujos “versículos” (āyāt) são diariamente recitados (e meditados) por cada muçulmano/a (muslim/muslimah, “rendido/a Deus”), nas demais ocasiões da vida e do culto. Importante será também ter em conta que o texto do Alcorão tem validade ritual e científica, em âmbito islâmico, unicamente na versão original em árabe, sendo que as traduções podem ser entendidas apenas como interpretações sem validade doutrinária, úteis para uma primeira abordagem à divulgação do livro em contexto profano e não arabófono.

    Sendo o Alcorão o livro que se pronuncia de forma inequívoca para orientar a humanidade no discernimento entre o bem e do mal, ele é também designado de al-furqān, “o Discernimento” ou “o Critério”. Ele é considerado pelos muçulmanos enquanto livro que contém o fundamento de toda a doutrina islâmica, quer expressa de forma explícita, quer alegórica ou oculta.

    O Alcorão é o texto que estabelece a orientação fundamental do islão em matéria de direitos humanos, em primeiro lugar ao definir a antropologia e a ética islâmicas. O “ser humano” (insān), sendo “servo” (‘abd) de Deus, é ao mesmo tempo o “vice-regente”, no sentido de “legatário” (alīfah, “califa”) do próprio Deus – “um califa de Deus na Terra” (II, 30) – por Deus honrado. O ser humano ocupa, portanto, uma posição central e uma função especial e nobre na criação. Toda a vida humana é inquestionavelmente “sagrada/inviolável” (VI, 151). Além disso, a nobre e bondosa “natureza primordial” do ser humano (firah; XXX, 30) é comum a todos os homens e mulheres, muçulmanos e não muçulmanos, que neste sentido são iguais, na sua essência e dignidade, perante Deus. O especial papel na criação do ser humano apela este a ter, em cada circunstância, uma atitude misericordiosa, responsável, equilibrada, bondosa e justa perante a inteira criação, incluindo crentes e não crentes, animais e a chamada Natureza.

    Nesta perspetiva, os seres humanos, sendo todos “filhos de Adão” (VII, 26), são todos irmãos e são todos igualmente “honrados” por Deus (cf. XVII, 70). Tal ecoa nas palavras de Muḥammad, que esclarecem, de forma coerente com o Alcorão, um ponto fundamental sobre os direitos humanos no islão, ou seja, a inequívoca ausência de racismo na doutrina islâmica: “Toda a humanidade vem de Adão e Eva; um árabe não é superior a um não árabe, nem um não árabe é superior a um árabe; um branco não é superior a um negro nem um negro é superior a um branco, exceto em piedade e em bons atos” (cf. IV, 1). O mais “excelente exemplo” (XXXIII, 21) de ser humano, assim como de indivíduo respeitador, promotor e defensor dos direitos humanos, é considerado, no islão, o próprio profeta Muḥammad. Este é descrito no Alcorão como sendo um indivíduo portador de “excelente carácter” (LXVIII, 4), “nobre” (LXIX, 40), “doce e misericordioso” (IX, 128, cf. XXI, 107), “verídico” (III, 86) e “esclarecido” (XLIII, 29).

    A própria “lei” (sharīʿah), assim como a “jurisprudência” (fiqh), islâmica fundamenta-se em primeiro lugar, e necessariamente, no Alcorão, apesar de o estudo deste livro sagrado não ser a única fonte em que estas matérias se baseiam em termos de interpretação e aplicação. Com efeito, a jurisprudência islâmica inclui outras fontes e elementos metodológicos fundamentais, para além do texto do Alcorão, nomeadamente, segundo a maioria dos académicos muçulmanos, a sunnah (“hábito”, ou seja, os ensinamentos do profeta Muḥammad, baseados nas “narrações” ou ditos – aādīth – sobre/de Muḥammad), e ainda o consenso entre os jurisconsultos, assim como o raciocínio analógico. Uma abordagem científica aos direitos humanos no islão deveria, portanto, ter em conta esta metodologia integrada, e não limitar-se à interpretação exclusivista, superficial e literalista do texto alcorânico.

    Apesar disso, é inequívoco que, tanto a dignidade humana, como os direitos dos seres humanos, são  fundamentados na revelação divina do Alcorão, isto é, a nível teológico e metafísico, refletindo-se esta fundamentação no plano da criação e do mundo. Não se trata, portanto, de direitos naturais ou convencionais, mas de direitos estabelecidos por Deus e que, por estas razões, são considerados sagrados e invioláveis. Neste sentido, a lei islâmica (sharīʿah, literalmente “estrada”, “caminho”) tem como um dos seus objetivos principais a fundamentação do comportamento humano nos princípios da revelação, inclusivamente através da proteção do bem-estar de todos os seres humanos, independentemente da sua etnia ou religião e de outras diferenças, individuais ou coletivas. Tal se traduz, a nível jurídico, na salvaguarda de cinco interesses humanos universais, logo nos cinco objetivos fundamentais da própria lei islâmica: 1) a preservação da religião (inclusivamente não islâmica); 2) da vida (logo, da saúde); 3) da linhagem familiar (logo, da família); 4) das provisões (e propriedades privadas); 5) do intelecto (logo, da saúde mental).

    A questão da sacralidade e inviolabilidade da vida humana é explicitada em vários versículos e passagens do Alcorão, entre os quais, estes: “quem tomar a vida de um ser humano […] será como se tivesse matado toda a humanidade; e quem salvar um ser humano, será como se tivesse salvo toda a humanidade” (V, 32); “não tomais a vida do ser humano, que Deus proibiu matar, exceto por meio de [uma sentença emitida por tribunal, conforme] justiça” (XVII, 33). Neste último caso, apenas um tribunal oficial, instituído pelo Estado e tendo em conta todos os elementos sapienciais e jurídicos envolvidos, poderá avaliar a situação e eventualmente emitir uma sentença, através de um justo processo (cf. AL-YAQOUBI, 2016).

    A dignidade e honorabilidade de cada ser humano é igualmente afirmada em várias passagens, entre as quais, estas: “que nenhum homem ridiculize outro […] e que nenhuma mulher ridiculize outra […]. Não vos difameis uns aos outros e não vos injurieis” (XLIX, 11); “não espieis e não calunieis” (XLIX, 12).

    A proteção da família  é instituída em vários versículos do Alcorão, inclusivamente através de indicações como esta: “sede bondosos com vossos pais; não mateis vossos filhos por [receio de] pobreza. Nós iremos prover a vós e a eles. Não vos aproximeis das obscenidades, sejam elas abertas ou escondidas” (VI, 151). Nesta passagem, assim como em outras do Alcorão, assinala-se a descontinuidade entre o islão e as anteriores regras pré-islâmicas dos idólatras árabes, pelas quais, por exemplo, era sistemática a violência sobre as crianças. Esta descontinuidade aprecia-se inclusivamente em matéria de direitos das mulheres, às quais, pelo islão, passam a ser reconhecidos, entre outros, o direito a divorciar (cf. II, 229; IV, 128) e a herdar (IV, 7).

    Em ralação ao direito à proteção de propriedade privada, este é universalmente assumido pelo Alcorão: “E não consumais injustamente vossas riquezas entre vós [i.e., um do outro], nem as dai em suborno às autoridades para consumirdes pecaminosamente parte dos bens alheios, enquanto vós sabeis [que isso constitui pecado]” (II, 188).

    Algumas proibições instituídas pelo Alcorão, como, por exemplo, a de consumir substâncias “intoxicantes” (V, 90) devem ser igualmente entendidas no sentido de tutelar os direitos humanos, nomeadamente no que respeita à preservação do intelecto e da saúde mental.

    Quanto à liberdade religiosa, a doutrina islâmica manda que os fieis das outras religiões reveladas por Deus, como o judaísmo e o cristianismo, têm de ser respeitados nos seus direitos, não podendo ser prejudicados, inclusivamente nos territórios administrados por muçulmanos. O culto dos não muçulmanos é, neste contexto, garantido pelo chamado “pacto de proteção e convivência” (immah) que qualquer governo islâmico é chamado a estipular com as outras comunidades religiosas (“gentes do livro”, ahl al-kitāb; cf. V, 68). Este pacto baseia-se em primeiro lugar nas orientações alcorânicas, entre as quais: “não há compulsão na religião” (II, 256); “a vós a vossa religião, a mim a minha” (CIX, 6); “os que creem e os que abraçaram o judaísmo e os cristãos e os sabeus, todos os que creem em Deus e no último dia e praticam o bem obterão uma recompensa de Deus e nada terão a recear e não se entristecerão” (II, 62). Note-se, além disso, que ao longo da História a liberdade de culto foi estendida, pelo direito islâmico, a outras religiões ditas não abraâmicas, como, por exemplo, o budismo e o hinduísmo.

    De forma geral, no que respeita ao comportamento do crente muçulmano perante os outros seres humanos, crentes ou não crentes no Deus Único, o Alcorão indica um princípio ético de equidade, gentileza e não hostilidade, que se estende aos não muçulmanos e até aos idólatras (por extensão, aos ateus), desde que estes não agridam a comunidade islâmica: “Deus não vos proíbe de tratardes com benevolência e justiça os que não combatem a vossa religião nem vos expulsaram das vossas casas. Deus ama os justos” (LX, 8). Em todo o caso, mesmo no contexto de uma situação social que se apresente como polémica, o Alcorão apela a “testemunhar com justiça” (V, 8) e à “reconciliação entre as pessoas” (IV, 114), ou seja, à prática da veridicidade assim como da paz, e à supremacia do Direito na resolução das disputas.

    No que respeita à adesão dos países habitados maioritariamente por muçulmanos à Declaração Universal dos Direitos Humanos emanada pelas Nações Unidas em 1948, a quase totalidade dos Estados correspondentes votaram a favor, exceto a Arábia Saudita (que se absteve) e o Iémen. Ao longo das décadas, os países maioritariamente muçulmanos “têm participado do sistema de definição dos direitos humanos no contexto das Nações Unidas”. (ALUFFI BECK-PECCOZ, 2005). Em algumas circunstâncias, representantes destes países avançaram observações relativamente a determinados aspetos da referida Declaração, considerados parcialmente incoerentes com o espírito da religião islâmica, inclusivamente em matéria de liberdade religiosa. A este respeito, um argumento apresentado por interlocutores muçulmanos é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em vez de refletir em todos os seus aspetos aqueles valores e necessidades que são verdadeiramente universais, apresentaria, em alguns aspetos, o ponto de vista da mentalidade e da cultura de uma específica civilização – o chamado Ocidente, inclusivamente na sua vertente imperialista e colonialista – não tendo suficientemente em consideração a especificidade do islão, nomeadamente o contributo do islão em matéria de direitos humanos (cf. ALUFFI BECK-PECCOZ, 2005).

    No contexto deste debate, em 1981 e 1990 foram emitidas, respetivamente, a Declaração Universal Islâmica dos Direitos Humanos (pelo Conselho Islâmico da Europa) e a Declaração do Cairo sobre os Direitos Humanos no Islão (pela Organização da Conferência Islâmica), em que se apreciam, comparativamente, identidades de visão, proximidades e algumas diferenças, em relação a alguns aspetos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. As referidas duas declarações emitidas no seio da comunidade islâmica têm, contudo, um caracter particular ou não vinculante a nível jurídico, antes constituindo duas etapas de um debate religioso, (multi)cultural, ético e político que continua no século XXI e que se compõe de várias e heterogêneas posições. A falta de uma única posição oficial da comunidade islâmica, nesta como em outras matérias, tem várias causas. Entre elas, oportuno será considerar a falta de uma liderança institucional unitária ou maioritariamente aceite no contexto da comunidade islâmica, a verificar-se desde a destituição do califado (1924) no contexto da queda do Império Otomano. Tal reflete-se, nesta como em outras questões interpretativas (e tendo em consideração outras causas, inclusivamente de ordem metodológica e hermenêuticas), numa pluralidade de posições, não reconduzíveis a uma única posição oficial, ainda um século depois daquele acontecimento.

    Apesar desta aparente falta de unidade interpretativa, o sistema de valores do Alcorão constitui de forma inequívoca, e maioritariamente aceite na comunidade islâmica, em matéria de “direitos humanos gerais e comuns”, um dos fundamentos hermenêuticos implícitos e estruturantes do Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado em 2019 pelo Papa Francisco, líder cristão da Igreja Católica Romana, e o grão-imame Aḥmad al-Ṭayyib, líder da Mesquita e da Universidade de al-Azhar, possivelmente a autoridade institucional doutrinária mais representativa das posições da maioria dos muçulmanos à data de formulação do documento. Trata-se de valores como os da fraternidade, igualdade, solidariedade, justiça, equilíbrio, lealdade, sacralidade da vida, liberdade, segurança e justiça. O incipit do documento é, a este respeito, esclarecedor da visão comum entre islão e catolicismo – logo, da assumida coerência entre Alcorão e Bíblia – em matéria de orientação religiosa sobre os direitos humanos: “Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e a espalhar sobre ela os valores do bem, da caridade e da paz”.

    Bibliografia

    Impressa

     AL-YAQOUBI, S. M. (2016). Refuting Isis (2.ª ed.). Herndon: Sacred Knowledge.

    Alcorão – Livro Sagrado do Islã (2011). Trad. M. Challita. Rio de Janeiro: BestBolso.

    ALUFFI BECK-PECCOZ, R. (2005). “Diritti umani”. In M. Campanini (org.). Dizionario dell’Islam. Milano: Bur.

    O Nobre Al-Qur’an (2018). Trad. A. M. Ibrahim. Durban: Islamic Dawah Movement.

    ORGANISATION OF ISLAMIC COOPERATION (2008). “Cairo Declaration on Human Rights in Islam: Done at Cairo, 5 August 1990”, Refugee Survey Quarterly, 27 (2), 81-86.

    Digital

    ISLAMIC COUNCIL OF EUROPE (1981). “Universal Islamic Declaration of Human Rights, adopted by the Islamic Council of Europe on 19 September 1981/21 Dhul Qaidah 1401”, http://hrlibrary.umn.edu/instree/islamic_declaration_HR.html (acedido a 8.11.2023).

    KELLER, N. (2001). “The Adab of Islam”. Masud, http://www.masud.co.uk/ISLAM/nuh/adab_of_islam.htm (acedido a 8.11.2023).

    “The Last Sermon Of Prophet Muhammad (p.b.u.h.)” (s.d.). International Islamic University Malaysia, https://www.iium.edu.my/deed/articles/thelastsermon.html (acedido a 8.11.2023).

    PAPA FRANCISCO & GRÃO-IMAME DE AL-AZHAR AHMAD AL-TAYYEB (2019). “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-francesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html (acedido a 8.11.2023).

    Autor: Fabrizio Boscaglia

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