Amor [Dicionário Global]
Amor [Dicionário Global]
Amor, palavra que diz muito, tema que está sempre presente em qualquer sociedade. Sentimento classificado de várias formas e que deveria ser experimentado por todos. No entanto, na sociedade contemporânea, com a marcante ausência de convívio social, de carência de interação, a maneira de dar e receber afetos ganha novos contornos. Alicerçada pela cultura das mídias, dos eletrônicos de uma forma geral, falar em Amor parece fora de tempo, anacrônico. Contudo, é imperativo o direito ao Amor.
Em tempos de guerra, os que sofrem de forma direta, ou indiretamente por ela, deveriam ter o direito ao Amor, ao Amor fraterno. Aquele mesmo sentimento que temos pelos nossos irmãos de sangue ou os eleitos como se fossem. Mas, não são todos que tem de presente o sentimento de Amor. Este não pode ser imposto, uma vez que deve nascer em um ambiente de total liberdade, sem prezar por raça, credo, situação social ou qualquer coisa desse gênero. Notamos, pois, que o Amor por ser paradoxal, não se sustenta preso, amarrado a um único objeto. Portanto, por ser livre é capaz de atingir a todos. O que impede essa força exercida pelo sentimento é a sociedade e suas vicissitudes, superando em paradoxos o próprio sentimento de amor. Desse modo, as relações de amor se tornam frágeis e compostas, sobretudo, pelos medos e vazios de indivíduos que são destituídos de afetos. Destarte, se as relações afetivas dependem do ambiente virtual, os marginalizados novamente ficam de fora de sentir o Amor, nesse caso, pela falta de instrumentos, material que potencialize e permita a interação virtual. Em tempos de crises globais, principalmente humanitárias, é necessário trazer o Amor para o debate, e permitir estabelecer relações entre o sujeito e o espaço social que ele ocupa. O Amor tornou-se, progressivamente, um Direito de todos.
Um dos primeiros a se ocupar com o tema do amor de forma mais profunda foi Platão (428/427, a. c.), nos diálogos de O banquete: ou elogio do amor (2003). O filósofo enfatiza a ambiguidade desse sentimento que, sendo filho de Poros (riqueza) e de Penia (pobreza), segundo a mitologia grega, é por natureza paradoxal/contraditório em si. O Amor é pobre porque deseja, e é rico porque não cessa de desejar. Depois de Platão, mas sendo todos leitores dele, vários estudiosos se dedicaram ao tema do amor como aquilo que dá sentido à vida, sendo soberano e belo além da vida; se sobressaindo a tudo e todos, tornando-se o comandante das emoções humanas. Platão ainda afirma que o Amor é uma espécie de Deus maior, importante para a busca da felicidade, o que dá virtude ao homem, e que por ser filho do recurso e da pobreza sempre convive com a necessidade. Isso corrobora a ideia de Amor como sentimento paradoxal que guia, governa e desgoverna o sujeito.
Ao longo da História da Cultura Ocidental, o Amor foi-se impondo como um factor de realização existencial e, por isso, um direito. Em ponto de fuga, é ele que está na génese mítica da Europa, princesa fenícia raptada por Zeus apaixonado metamorfoseado de touro…é ele que (se) impõe (a)o par, lhe confere uma história acidentada e dá origem a uma ordem política (império).
Desde a cultura trovadoresca e as medievais e lendárias Cortes do Amor, passando pela percepção do feminino e do masculino em jogo de espelhos (expressivamente equacionado entre Guillaume de Lorris e Jean de Meung, no séc. XIII, e Cristina de Pisano, no séc. XV) e pela cartografia da relação (Carte du Tendre, XVII e siècle), a concepção do amor foi-se subtilizando através da dicotomia amor vs. paixão, sendo o segundo o sentimento temido pela sua imprevisibilidade e descontrolo, ameaça da ordem social, matéria que a ficção romântica explorará.
À percepção do amor interpessoal directo e linear que marca a tradição, gerado no primeiro encontro do par, a modernidade trará a complexificação, inscrevendo nele o terceiro elemento, favorecedor da relação (mediatização externa) ou obstaculizador da mesma (mediatização interna): René Girard observa-o nessa triangulação alternativa cuja tensão será directamente proporcional à importância desse outro elemento para o par amoroso. Depois, a reflexão sobre o amor prossegue pelas sendas das diferentes perspectivas disciplinares, a caminho da fragmentação (Roland Barthes, Georg Simmel, Duras, Lacan), da banalização (Niklas Luhmann), da multiplicação (Anthony Giddens), da confluência (Anthony Giddens), da liquidez (Zygmunt Bauman) ou da dissolução (Marshall Berman).
Linear, mediatizado, confluente, fragmentado, líquido ou ‘gasoso’, o amor, nas suas múltiplas manifestações e faces, exige o direito a ser sentido e vivido. Porém, a sua modalização variará com os protagonistas e as suas circunstâncias, ou seja, com as identidades individuais e as colectivas (no momento e no seu histórico). É aí, nessa convergência plena de imponderabilidade, que ele se manifesta e concretiza. A contemporaneidade traz-nos a crise das identidades e a transformação dos papeis e das relações de género, alicerces da vivência amorosa, que abolirá a exclusividade afectiva e/ou sexual e abrirá o par à alteridade numa geometria e geografia variável, (in)suspeitada e/ou consciente.
Sejam quem forem os protagonistas e as suas circunstâncias, o amor é um sentimento exigente, que reclama realização, operador de mudança do status quo, compaginável ou não com a ordem social.
As relações de amor nunca foram estáticas e impecáveis. Nem no passado e nem na contemporaneidade. Sobremaneira, podemos observar, por exemplo, em todos os textos literários, sejam eles dos séculos anteriores ou os contemporâneos que, as histórias de amor não têm final feliz. Contudo, não quer dizer que o par amoroso não tenha sido feliz. Aqui entramos em um outro lugar que é sobre a permanência do estado amoroso. Outro fator importante que aparece como impedimento amoroso é o capitalismo (Bauman), as relações humanas seguem o valor do mercado, e essa amarra não combina com um sentimento que por si só é libertário. O Amor no mercado teria como finalidade organizar uma sociedade, unir patrimônio ou construir patrimônios. (Antony Giddens). Quando entramos nesse lugar social, outro fator importante sobre o Amor é observar que o masculino sempre foi privilegiado e favorecido no campo das relações amorosas. A mulher sempre foi responsável por manter as relações afetivas em harmonia, deixando, assim, de efetivamente viver um Amor.
O Mito do Amor puro tenta sublimar e ou ignorar os desejos do corpo, principalmente do corpo feminino que devia ser guardado imaculado para a procriação e eternização de um desejado amor maior, infinito. Nesse caso, o desejo feminino e o modelo social se chocam. Amor pede liberdade que é próprio de sua concepção. No entanto, a liberdade feminina desestrutura a sociedade perfeita, afetando a moral masculina.
Sobre a segurança do Amor, vale salientar que antigamente não havia amor seguro/duradouro, mas havia relacionamentos, predominantemente, sustentados e mantidos a todo custo pela figura feminina. E essa configuração não mudou por falta de amor, pelo contrário, mudou por vontade de amar.
Dessa forma, as amarras desejadas ou propostas por um Amor eterno não têm lugar no mundo contemporâneo. O Amor não se sustenta de forma maniqueísta, ele transita na linha tênue que há entre amar e odiar. Portanto, o sentimento de amor permanece como sempre foi, mas socialmente (nas relações contratuais) as coisas mudaram e continuarão a mudar, conforme o mercado/sociedade. Sendo o sentimento sem barreiras, mas a organização social insiste em deixar muitos de fora dessa vivência, seja do Amor erótico, seja o Amor fraterno. Observamos que, em tempos capitalistas, as relações amorosas e as questões económicas se tangenciam. As diferenças são sempre marcadas pela sociedade e seus espaços de defesa de uma suposta moralidade. As relações higienizadas, e o desejo do corpo é transformado em uma necessidade com finalidade de procriação, perdendo assim a verdadeira essência do que seria a erotização natural do corpo de um homem e uma mulher. (Bataille).
Tema caro a esse mundo globalizado, o Amor gira em torno da existência humana, que acentua formas de subjetivismo, que situam o humano assaltado por angústias, por sentimentos de melancolia e tocados pela solidão e consciência da finitude da vida e de si mesmo. Amar tira, por algum tempo, o sujeito desse lugar de angústia. Todos deviam ter o direito de viver livre amorosamente, sexualmente, ninguém deve ser impedido de viver de forma plena o seu amor pelo sujeito escolhido. Essas proibições e interferências reforçam o mito dos amantes infelizes e sua persistência na contemporaneidade.
O envelhecimento e a solidão, questão da morte em vida, da compreensão do estado de clausura em um corpo debilitado, ilustra o reflexo de um tempo em que o humano se estabelece enquanto sujeito solitário. E nesse universo, onde tudo caminha para o fim, o mito do amor se faz presente e pode alimentar a ideia de futuro. O Amor, assim como o humano, tem sua finitude.
As questões relativas ao amor são uma constante quando se fala da história da humanidade. Desde tempos remotos há especulações sobre este tema, seja quando a pauta é a relação amorosa, seja quando o foco são os costumes, a etnia ou a classe social. São exemplos disso as ilustrações vistas em textos literários ou históricos ao longo do tempo, como modelo, as declarações de amor eterno nos romances românticos. Percebemos que, a cada momento histórico o homem expressa o sentimento de amor de determinada maneira; e o que vale registrar é que o mito do amor é recorrente. Mito no sentido defendido por Roland Barthes, (2007) quando afirma que o mito é um valor, é linguagem, e isso determina seu alcance.
O amor e suas vicissitudes fazem parte da evolução humana, sendo atemporal. A expressão do Amor se apresenta instigante e com grande relevância no contexto fragmentado da contemporaneidade. Pensar o Amor além do sexo, e não como um complemento deste, seria pensar o amor como pura sublimação, é a troca de uma relação de amor carnal pela relação de um amor fraternal, feito a partir da bondade, caridade e companheirismo no mesmo sentido de homem em comunhão com a sociedade; ou por outro lado entender esse Amor como uma passagem ou travessia para o crescimento humano. Além disso, o homem precisa estar em paz consigo para dedicar-se a amar o outro, para se doar ele precisa primeiro, se amar. Em se tratando da expressão do amor na literatura e na arte, ainda vale dizer que as ruínas não cessam de se acumular, o amor encontra-se destronado social e simbolicamente e nas relações amorosas impera a imagem da catástrofe, do vazio geral e da eterna busca por um sentimento que teria como função preencher esses espaços.
É importante registar que o sentimento de Amor hoje traz as mesmas peculiaridades de qualquer época, ou seja, apresenta assuntos como: paixão, prazer, inveja, adultério, ciúme, mágoa, dor, egoísmo e solidão; desesperos e demónios próprios do homem. As relações amorosas aparecem ressignificadas, marcadas por desencontros, muito mais que de encontros. Isso não implica afirmar que o assunto tenha menos importância, mas, sobretudo, que este leva em consideração vários outros fatores que vão favorecer, ou não, o desenvolvimento da relação amorosa.
Pensar o amor é pensar a relação social, pois o sujeito e suas relações afetivas estão intrinsecamente ligados às questões relativas a seu espaço. O discurso amoroso é readaptado, atualizado, ressignificado. Essa ideia da perda no momento do ganho faz parte do paradoxo amoroso; faz parte das particularidades desse sentimento contraditório e buscado sempre.
Tal condição é frustrante para o sujeito amante que busca sempre a catarse amorosa; mas, o paradigma da contemporaneidade é a dissolução amorosa e se dá pela individualidade do sujeito. Nesse tipo de relação a ideia é que um preencha o vazio do outro, e o amor se instala. Justifica-se, portanto, que o Amor é carente e necessita de outra parte para sua sustentação, mas quando isso se dá, se instala de novo o vazio do sujeito, registra-se, pois, a morte do Amor por aquele objeto. Afirmamos ainda que, todos os fracassos amorosos são iguais, e as falhas se repetem. A exposição do ser amado o condena, ele molda a palavra, mas não molda a voz, molda o discurso, mas não molda o comportamento e a falha aparece. O exílio da idealização constitui o abandono do sujeito amoroso, já que este é construído a partir desse sistema, isto é, do imaginário de quem ama.
No entanto, não se pode perder de vista que os sentimentos são inerentes ao sujeito social, são sentimentos próprios de qualquer criatura humana racional, afirmativa e paradoxal no caso do sentimento amoroso. Dessa forma, a busca pelo Amor ocorre como um procedimento necessário ao sujeito que está imbuído de uma solidão humana cósmica. Sem regras e sem modelos, a problemática amorosa transita em campos epistemológicos variados, figurando muitas vezes como matéria do insólito. Numa sociedade de lobos, onde tudo tem um preço, falar em discurso amoroso pode soar como ideia transgressora. Ainda assim, é um assunto que sustenta um debate, pois é um sentimento insistentemente buscado pelo sujeito, em um constante desejo catártico.
Embora em contextos sociopolíticos e culturais diferentes, a hipótese é que a configuração do Amor nesse novo cenário se apresenta dissonante com o desejo das comunidades. Num mundo globalizado e ao mesmo tempo individualista e egoísta, o sujeito depara-se com um mundo de comportamentos insólitos, de interesses diversos e egocêntricos que impedem os afetos a que têm direito.
Bibliografia
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GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Trad. M. Lopes. São Paulo: UNESP, 1993.
Bataille, Georges (2009). O erotismo. 3ª ed. Trad. João Bénard da Costa. Lisboa: Antígona, 1998.
GIRARD, René. Mensonge romantique et vérité romanesque, Paris, Pluriel, 2011.
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ROUGEMONT, Denis de. Os Mitos do Amor, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.
______. O amor e o ocidente, Lisboa, Vega, 1989
Autoras: Maria Aparecida da Costa
Annabela Rita