Antunes, Padre Manuel [Dicionário Global]
Antunes, Padre Manuel [Dicionário Global]
Humanista, personalista cristão, produz uma vasta obra que enaltece o respeito pela dignidade humana, numa perspetiva partilhada entre aquele que aufere direitos e aquele que é sujeito de deveres, que, na verdade, invertendo continuamente as suas posições, serão um e o mesmo, permitindo que essa dignidade seja o fundamento último de respeito por todos os seres humanos.
Vida e formação
Jesuíta, professor, pedagogo, ensaísta, crítico literário (1918-1985), nascido no seio de uma família cristã, na vila da Sertã, de parcos recursos económicos e culturais, supera as barreiras, em matéria de ascensão social, advindas da sua condição de nascimento, desde logo, na escola primária, através da sua inteligência invulgar, destacada pela sua professora Virgínia Manso.
No princípio da década de 1930, é recrutado, pelo P.e José Lérias para o seminário da Companhia de Jesus e inicia o seu longo e exigente caminho de desenvolvimento intelectual, evidenciado pela mobilidade, pela interdisciplinaridade e articulação de saberes. Em 1940, com apenas 22 anos, publica o seu primeiro artigo na revista Brotéria, “A poesia modernista de Orpheu a Altitude”, na qual vem a ser um dos seus mais reputados diretores, fazendo notar a sua capacidade de análise, de síntese, de crítica, de abertura e visão, que caraterizam toda a sua vasta publicação.
Obtém a licenciatura em Filosofia, em 1943, e cumpre o Magistério, entre 1943 e 1946, ensinando aos estudantes da Companhia de Jesus, no Seminário da Costa, em Guimarães, Retórica Latina e Língua Grega, Língua e Literatura Gregas e Humanidades Latinas. Segue-se o ingresso no curso superior de Teologia, entre 1946 e 1950, em Granada, considerada a última etapa de carácter intelectual, que conclui com distinção e louvor, tendo completado a sua formação religiosa na Bélgica, em Namur, e, em 1949, ainda antes de terminar a sua formação em Teologia, como prática comum da Companhia de Jesus, é ordenado sacerdote por D. Rafael Alvarez Lara, bispo de Guadix. Ligado à docência, forma os futuros quadros da Companhia, tendo ensinado na área das humanidades, acumulando as funções pedagógicas com as funções de bibliotecário, além de diretor espiritual dos seus formandos e daqueles que o solicitavam. Inicia o serviço docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por convite de Vitorino Nemésio, em 1957, ensinando História da Cultura Clássica e, mais tarde, História da Filosofia Antiga. Deixa marcas indeléveis aos seus cerca de quinze mil alunos que faziam transbordar o espaço do Anfiteatro I para presenciarem o seu saber e a sua arte de comunicar, num estímulo constante à humanidade do homem, procurando “abrir a cultura aos valores do espírito na esteira de uma síntese interdisciplinar sobre o homem, o mundo, o cosmos e Deus, remando contra a hiperespecialização reducionista e míope” (FRANCO & RICO, 2003, 179).
A cultura e a educação – Um projeto de formação integral do ser humano
O pensamento do Padre Manuel Antunes apresenta-se verdadeiramente humanista e humanizante, pois compreende não só uma visão do mundo, da história e da cultura como um todo, mas, ao mesmo tempo, não deixa esse conhecimento desenraizado e afastado do próprio homem, esse ser, no dizer antunesiano “sem definição”, realidade que transcende “todas e cada uma das disciplinas que dele fazem sujeito e objeto de discurso” (ANTUNES, 2007a, 311).
Sendo a educação uma das pedras angulares do seu pensamento, enquanto pilar estruturante de uma sociedade mais justa, fraterna e humana, o processo educativo adquire sentido enquanto instrumento para uma formação integral da pessoa, salientando a importância do conceito de educação permanente, enquanto “educação que concerne o homem todo e todo o homem” (ANTUNES, 2008a, 110), naquilo que diz respeito a todas as dimensões da sua personalidade, integrando a dimensão física, mental, afetiva, profissional, estética, moral, e a dimensão religiosa, permitindo pensar o homem de forma integral no equilíbrio entre o uno e o múltiplo. A educação permanente permite, pois, uma maior simbiose com a sociedade, sendo a educação um “processo sempre in fieri… na convicção de que, se não nos fizermos, seremos feitos” (ANTUNES, 2008a, 115). Desta forma, o projeto educativo é, ele próprio, “um projeto de cultura, um projeto de homem e de sociedade a construir” (FRANCO, 2008, 8), o que faz com que a educação vá muito para além daquilo que é o domínio escolar, integrando a construção de um projeto de formação integral do ser humano. Assim, faz um apelo à valorização das aspirações de todos e de cada um, num mundo pluralista que é o nosso, consubstanciado naquilo que considera ser uma educação englobante, que privilegie a relação dialética entre a ciência e a sabedoria, bem como entre os factos e os valores, salientando o poder operado pela educação, na medida em que “sem o poder da educação, todos os outros poderes correm o risco de se tornarem vãos ou até nocivos” (ANTUNES, 2008a, 152). Disso nos deu conta, por exemplo, no texto que intitulou “Uma educação para amanhã”, onde enumera e explica, na sua perspetiva, que primados deverão ser tomados em consideração para essa desejada educação a construir: o “primado da formação sobre a informação”; das ciências do homem sobre as ciências da natureza”; “do permanente sobre o transitório”; “da imaginação sobre a razão”; da socialização sobre a individualização”; “da personalização sobre a “massificação” (ANTUNES, 2008a, 115 ss.). Pretende-se uma valorização integral do homem pela educação e não apenas uma pedagogia setorizada, virada ao que é imediato, racional, alienante, homogeneizante. Assim, na sociedade contemporânea inventiva, a educação tende para a prospeção, no sentido de “formar para imaginar para edificar” (ANTUNES, 2008a, 118), para que o homem consiga viver como homem e consiga dialogar no seio das várias culturas do nosso mundo global, construindo o caminho para uma existência integral, na qual o particular e o universal, possam ter um lugar harmonioso, de construção e de elevação. Desta forma, conhecendo-se a si mesmo, o homem pode implicar toda a ciência, e, de facto, é sobre aquilo que não muda, ou muda de forma menos acelerada, aquilo que é eterno no homem, que deverá ser o ponto central da educação – uma educação segundo os valores, da qual dependerá a sobrevivência da civilização e da própria humanidade, perante a era de hedonismo vivida, onde o ter prevalece sobre o ser, “onde o homem mais do que nunca se vê só” (ANTUNES, 2007b, 20).
Neste sentido, não é surpreendente encontrarmos também, na sua obra, uma reflexão cuidada em torno da superficialidade, do facilitismo e do tecnicismo, que vem caracterizando o mundo atual. A ascensão de novas formas de ser e de estar em sociedade, associadas ao desenvolvimento técnico, não são em si adversas, antes pelo contrário: trouxeram o progresso e a melhoria das condições de vida a diversos níveis. No entanto, uma sobrevalorização acentuada não deixa de ser nociva. Para o Padre Manuel Antunes, o valor da técnica não é questionável – tanto que à pergunta “Será possível reconciliar a Técnica e a Misericórdia?” responde “Deve ser possível” (ANTUNES, 2008a, 88). Questionável é apenas o lugar cada vez maior que lhe reservam na sociedade, em galopante destaque, a ponto de obnubilar a centralidade do próprio homem e das relações humanas. Neste sentido, o desenvolvimento do chamado homo misericors (ANTUNES, 2008a, 83), aberto ao mundo, aberto ao outro, desempenhará um papel fundamental na sociedade, procurando compreendê-lo nas suas diferenças: “É uma vontade de sair de si, da prisão do próprio ‘eu’, para transformar o mundo e se transformar em si mesmo em permanente e incansável reciprocidade” (ANTUNES, 2008a, 87), contribuindo para o processo de desalienação do homem. A constante procura do todo em cada parte desvenda-se, assim, no pensamento antunesiano, como uma chave para a compreensão e para a valorização humana, desde uma dimensão mais geral, até àquela mais particular, sob a forma de um “pensamento acutilante, prospetivo e lúcido sobre o passado, presente e futuro” (FRANCO, 2011, 9).
A contemporaneidade de Padre Manuel Antunes na defesa dos direitos humanos
Apesar de, ao percorrermos a vasta obra do Padre Manuel Antunes, não encontrarmos, efetivamente, muitas referências diretas ao tema dos direitos humanos, strictu sensu, não deixa o insigne jesuíta de produzir diversas considerações sobre a necessária valorização do homem e da sua eminente dignidade, sobre um essencial balanço entre deveres e direitos, ou sobre a recapacitação e valorização humana por meio da educação, da cultura, e da solidariedade.
Acerca da dignidade da pessoa humana, diz-nos que esta deve ser preservada, acima de tudo, nas sociedades dos nossos dias, evidenciando a necessidade de existir uma “relativa subordinação da Política à moral”, para que a política não se torne manipuladora das massas, mas tenha sempre presente como fundamento a dignidade da pessoa humana “cujos fins transcendem a comunidade nacional e/ou estatal” (ANTUNES, 2008b, 479). Ao mesmo tempo, não deixa de evocar a necessidade de uma complementaridade entre direitos e deveres, no caminho de humanização da pessoa humana que por sua vez estará em condições ideais para humanizar a Terra (ANTUNES, 2008a, 180).
Repensar Portugal, obra publicada em 1979, constitui uma das suas reflexões de cariz político mais emblemáticas, na qual veicula a esperança de um país de novos valores, de matriz democrática, acompanhado pela renovação necessária das instituições, na procura do bem comum e da realização plena da pessoa humana. “Interrogava a pessoa humana”, e “essa interrogação reclamava, no fundo, a liberdade e a responsabilidade, a dignidade e o respeito” (FRANCO & MARTINS, 2023, 17). No caminho da justiça, liberdade e igualdade, o Padre Manuel Antunes enaltece, de forma particular, o direito e o dever da educação e da cultura. Desta equação dos direitos humanos, que se traduz no equilíbrio entre direitos e deveres, entre o universal e o particular, dando a devida importância à educação e à cultura, à solidariedade e à fraternidade, evidencia-se, ainda, o valor da igualdade, em destaque precisamente num texto dedicado à questão do “sufrágio feminino”: “uma educação e um reconhecimento de direitos, paralelos e complementares, eis aí caminhos para se chegar a uma verdadeira ‘igualdade de oportunidades’ “(ANTUNES, 2008b, 519). “Igualdade que se funda na Natureza humana, a todos comum, independentemente das condições de idade, de raça, de sexo, de fortuna, de religião, de saber, de posição social” (ANTUNES, 2008a, 304).
O Padre Manuel Antunes, há meio século, compreendeu e analisou as dificuldades de afirmação do ideal dos direitos para toda a humanidade, mas não deixou de vislumbrar e indicar alguns dos caminhos possíveis para a sua implementação: propôs-nos a superação do indivíduo atomizado, abstrato, alienado da sociedade, a superação do “homem-espuma” pelo homem de misericórdia, pelos homens e mulheres que, atribuindo valor a si próprios, por meio da educação e da cultura, atribuam igualmente valor ao outro, próximo ou distante, pelo espírito da solidariedade e do amor que deverá presidir a toda a humanidade.
O seu valor foi amplamente reconhecido, designadamente através da atribuição do título de Doutor Honoris Causa pelo reitor da Universidade de Lisboa, a 15 de fevereiro de 1981, e, a 10 de junho de 1983, foi condecorado pelo então Presidente da República, general Ramalho Eanes, com as insígnias de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada. Hoje, a reflexão do Padre Manuel Antunes continua a oferecer-nos chaves de leitura para compreendermos melhor o mundo atual, nas suas mais diversas perspetivas, filosóficas, políticas, religiosas, culturais. A intemporalidade manifesta das suas palavras ressoa para todos aqueles que queiram, também, olhar para o tema dos direitos humanos, sob a perspetiva do insigne jesuíta, e encontrar nesta mais uma ferramenta em defesa de uma humanidade mais justa e fraterna, mediante a educação, enquanto facto, necessidade e dever, que ajude “o homem a ser homem” (FRANCO, 2008, 10) e que lhe confira sentido, num processo de aperfeiçoamento permanente, de liberdade e consciência, “para que contra o homem-espuma possa vingar o homem todo e todo o homem” (ALVES-JESUS, 2022, 946). Naquilo que define como contemporaneidade, o Padre Manuel Antunes continua a ser nosso contemporâneo, permitindo a sua obra colher uma muito atual perspetiva sobre os direitos humanos.
Bibliografia
ALVES-JESUS, S. (2022). “O homem espuma contra o homem todo. Apontamentos para uma leitura sobre direitos humanos na obra do Padre Manuel Antunes”. In J. E. Franco & G. d’O. Martins (coord. científica). Repensar Portugal, a Europa e a Globalização. Saber Padre Manuel Antunes, SJ: 100 Anos (937-947). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
ANTUNES, M. (2007a). Obra Completa – História da Cultura (t. I, vol. IV). Coord. L. F. Barreto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ANTUNES, M. (2007b). Obra Completa – Religião, Teologia e Espiritualidade (t. IV). Coord. H. Rico, SJ. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ANTUNES, M. (2008a). Obra Completa – Paideia: Educação e Sociedade (t. II). Coord. J. E. Franco. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ANTUNES, M. (2008b). Obra Completa – Política e Relações Internacionais (t. III, vol. II). Coord. G. d’O. Martins. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ANTUNES, M. (2008c). Obra Completa – Biografia ilustrada (t. VII). Coord. J. E. Franco & L. M. de Abreu. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
FRANCO, J. E. (2008). “Para um projecto de educação total”. In P. M. Antunes. Obra Completa – Paideia: Educação e Sociedade (t. II) (1-11). Coord. J. E. Franco. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
FRANCO, J. E. (coord.) (2011). Um Pedagogo da Democracia: Retratos e Memórias sobre o Padre Manuel Antunes, SJ. Pref. M. J. do C. Ferreira. Lisboa: Gradiva.
FRANCO, J. E. & MARTINS, G. d’O. (2023). “Estudo introdutório”. In P. M. Antunes. Repensar Portugal: Um Manual de Mesa de Cabeceira para Políticos. Pref. C. Miranda. Lisboa: Theya.
FRANCO, J. E. & RICO, SJ, H. (2003). Brotéria 100 Anos. Fé, Ciência, Cultura. Lisboa: Gradiva.
Autoras: Susana Mourato Alves-Jesus
Ana Lúcia Ferreira