Cidade-Manifesto [Dicionário Global]
Cidade-Manifesto [Dicionário Global]
O movimento das praças públicas, entre 2011 e 2016, testemunha o processo de mundialização das mobilizações sociais e políticas nas metrópoles ocidentais, depois das ocorridas no contexto de emancipação nacional da Primavera Árabe. Estes movimentos surgem depois de uma década de manifestações gigantes que deram visibilidade, à escala mundial, a causas transnacionais e a modos de luta convencionais (petições, emissões nos média tradicionais e alternativos, manifestações de rua) e inéditos, com recurso a redes sociais e digitais.
As reivindicações antiglobalização das contracimeiras e dos fóruns altermundialistas de Porto Alegre, no Brasil, centraram-se nas questões globais da justiça social, da igualdade económica, da sustentabilidade ambiental, dos fenómenos migratórios de grande escala, etc. Estas foram espetacularizadas e mediatizadas à escala planetária, no final dos anos 90 do século passado. Estes movimentos sociais revelam “un type de (contre)-public, tout en étant un moyen d’exposer devant un public donné une injustice qui devrait réparée ou un changement qui devrait être opéré” (FRASER, 2001, 130). Além disso, ruas, alamedas, praças, lugares de encontro dos movimentos sociais, são concebidos, a partir do final dos anos 70, pela esfera política como espaços públicos urbanos. Eles concentram particularidades como a acessibilidade para todos, a impropriedade do seu uso privativo (pertencendo ao domínio público) ou ainda a manutenção do anonimato do outro (suspendendo o jogo das filiações social, confessional e cultural) (JOSEPH, 1996). Esta conceção da cidade como elemento da esfera pública (no sentido habermasiano) é um pré-requisito para a ocupação de lugares públicos cujos equipamentos facilitam tanto a sua acessibilidade como a sua apropriação para uso político coletivo.
Para uma reconquista do direito à cidade
Os reportórios de ação destes movimentos parecem idênticos e internacionalizam-se, de Manhattan a Paris, passando por Madrid – principalmente os dos Occupy Wall Street, em Liberty Square, em 2011, dos Indignados, na praça da Porta do Sol, no centro de Madrid, no mesmo ano, e o Nuit Debout, na Praça da República, em Paris, em 2016 –, mas reatualizam figuras de uma “utopia concreta” (largamente influenciada pelos legados da Internacional Situacionista, dos ideais de Henri Lefebvre, ou das posições utópicas do grupo Utopia e Barbárie). Inspiram-se, além disso, em formas de compromisso político do passado, dos anos 60-70 do século XX. E vão igualmente buscar ideias aos repertórios de ação dos militantes e ativistas americanos que lutam contra a energia nuclear, o VIH, e pela promoção dos direitos das minorias sociais, culturais e económicas. Põem assim em prática uma democracia direta local, cujos princípios se inspiram, mais ou menos, nas teses anarquistas ou do anarco-sindicalismo europeu.
As praças, para alguns, “verdadeiramente públicas” (ZASK, 2018), resultam, portanto, da apropriação dos espaços públicos no centro das cidades, de uma reconquista territorial por parte dos cidadãos citadinos, até ao momento empurrados para a periferia e os subúrbios. Esta reapropriação social e política é uma das palavras de ordem omnipresentes – retomada a baixo custo – no manifesto Le Droit à la Ville, de Henri Lefebvre (1968), cuja influência direta, ofuscada durante muito tempo, não deve mascarar a importância do seu papel nas reivindicações que atuam no coração dos movimentos das praças públicas. Nesta crítica marxista do fenómeno planetário da urbanização das cidades, Lefebvre parte da constatação, sublinhada por Laurence Costes, de que “la dimension fonctionnelle domine au détriment du social (la valeur d’échange se substitue à la valeur d’usage), de l’appropriation par ses habitants, de l’urbanité des lieux. Les formes de ségrégation ‘spontanée’ ou ‘programmée’ participent à l’éparpillement des populations, à la désintégration de la ville comme œuvre collective. Dans tous les secteurs de la vie sociale, la ségrégation pénètre la vie urbaine, la dissocie, la fait éclater. Les populations sont éparpillées ou projetées selon leur groupe social, leur ethnie, leur âge, ainsi se constituent des ‘ghettos’ ou des ‘zones’: ceux des intellectuels, des étudiants (campus), de la richesse (les quartiers résidentiels), des pauvres et travailleurs immigrés (bidonvilles). Cela reflète la nouvelle société urbaine en train de se constituer; loin des ‘olympiens’ au centre, les populations ouvrières sont rejetées hors des centres-villes, à distance des équipements, ‘la masse’ est répartie dans les banlieues et les périphéries, ‘ghettos plus ou moins résidentiels’: l’appropriation de la ville lui a été ôtée, le temps lui échappe” (COSTES, 2010, 9).
O direito à cidade milita pela instauração de novos direitos humanos ajustados aos cidadãos-citadinos: reconquista dos centros históricos das cidades, reapropriação dos espaços públicos urbanos para usos populares múltiplos (incluindo os festivos), fim dos espaços segregados social e economicamente, etc.
Deixem-nos falar!
As praças públicas tornam-se lugares de experimentação e inovação política hic et nunc. Erigidas como fazendo parte do espaço público pelos urbanistas e os autarcas, elas tornam-se emblemáticas da busca e da promessa de uma democracia de proximidade.
Estes movimentos aproximam (e.g., o Nuit Débout, na Praça da República, em Paris), “dans le même espace-temps, deux formes qui étaient plutôt alternées au sein des apprentissages politiques au XXe siècle, nocturnes et diurnes, café et manifestation” (BACIOCCHI et al., 2016, 255).
Na Occupy Wall Street (OWS), porta de entrada do movimento, a assembleia geral constitui o principal órgão de decisão durante a ocupação. Mais de mil pessoas por dia, no auge da ocupação do Liberty Park, em Manhattan, observaram, escutaram, tomaram a palavra, transmitiram as suas ideias (usando o “microfone do povo”). Estas praças tornam-se lugar de uma socialização de nível político, podendo assim os ocupantes entender o processo de democracia direta e igualmente os limites das tomadas de decisão em grande escala, que são muito frequentemente consideradas ineficazes.
No seio das assembleias gerais, o procedimento democrático utilizado consiste na procura do consenso (e não da via maioritária), um consenso em ação “modificado”, para o qual é suficiente a aprovação de 90% das vozes: “[…] avec cette méthode d’action collective, la discussion et l’intention de favoriser des compromis sont aussi essentiels que le résultat” (BRAY, 2024, 109). Este modelo de decisão por consenso, sem que um líder seja designado ou eleito, supõe que, implicitamente, os indivíduos adiram a um certo número de normas sociais (respeito pela vez de falar, elaboração de consensos não partidários, etc.). Isto dá a possibilidade de cada um experimentar individualmente o seu posicionamento e o seu compromisso com as opiniões e ideias avançadas, sem chegar propriamente às propostas partidárias. Desde a segunda semana, assiste-se a uma oposição entre a área principal da assembleia geral, montra do laboratório político e da sua aprendizagem, e os bastidores em que se encontram os militantes e ativistas que tomam as decisões essenciais tendo em vista a organização e a sobrevivência do movimento. Estes criam spokecouncils, reuniões por meio das quais os grupos nomeiam delegados que apresentam as decisões tomadas pelo grupo maior. Este tipo de reunião nasceu durante as lutas contra a construção da central nuclear de Seabrok, em New Hampshire (GRAEBER, 2009, 43), e este modo de ação disseminou-se nos movimentos altermundialistas e no dos zapatistas de Chiapas. Estas assembleias restritas permitem o funcionamento da logística que preside à ocupação dos lugares e praças públicas.
As lutas mundializadas e localizadas
Manifestar, ocupar e agir coletivamente em certas praças públicas nos centros históricos das cidades e metrópoles reabilita a memória das lutas passadas, enquanto reatualiza o imaginário político insurrecional. A rua é sinónimo de povo e dos grandes movimentos de emancipação política.
Em Paris, o leste parisiense e o triângulo Bastilha-República-Nação, desde o final de 1934, foram o espaço das lutas populares à esquerda, enquanto o oeste parisiense é identificado com as reivindicações à direita no xadrez da política (TARTAKOSKY, 2022, 368-369). Os monumentos edificados nas praças dão corpo ao espaço público como marcador de identidades passadas e memoriais. A arquitetura dos lugares e as facilidades contemporâneas dos espaços públicos tornam favoráveis estas formas de apropriação das praças públicas. O regresso à cidade dentro do urbanismo operacional de Paris transforma a paisagem urbana. Assim, entre 1972 e 2002, o número de praças parisienses passou de 280 a 440. A praça é concebida como uma piazza italiana, fazendo do adro de Beaubourg (construído por referência à Piazza del Campo de Sienne) um dos emblemas desta renovação municipal.
A banalização das manifestações de rua (TARTAKOSKY, 2022, 431) faz da ocupação das praças e alamedas um ato de repolitização das lutas mundiais, na medida em que ela volta a ser metáfora da multidão e do povo reunidos e recupera a sua carga fantasmagórica.
As lutas de informação em rede
As manifestações gigantes dos anos 2000 deram visibilidade a uma rede urbana mundial que se tornou o teatro de expressão de uma “opinião pública mundial”. Mas mostraram sobretudo a capacidade de atrair a atenção pública e mediática, multiplicada graças ao recurso às redes sociais e digitais.
É verdade que o crescimento das redes virtuais contribuiu para transformar as mobilizações informativas vistas como preliminares, ecos de ressonância ou prolongamentos dos movimentos sociais existentes na rua e nas praças públicas. Para Granjon, “attachée au mouvement altermondialiste, la forme d’activisme médiatique qui depuis le contre-sommet de Seattle (1999) connaît un rapide développement international, va trouver dans le réseau des réseaux un espace particulièrement adapté à la construction de nouvelles formes de mobilisation et d’engagement. Internet lui servira à la fois de support de coordination, de nouveau répertoire d’action collective spécifique […]” (GRANJON, 2018, 3).
A conectividade digital (através das redes digitais, principalmente) cria a possibilidade de amplificar as redes de afinidade dos grupos de militantes políticos, antes de se encontrarem offline. Estas tecnologias informáticas em rede tornam-se “a nova praça central” (TUFECKI, 2019, 51), mas ainda mais no sentido em que elas podem desempenhar um papel importante na adesão de pessoas no seio de grupos políticos, da mesma forma que as manifestações podiam (e podem) desempenhar um papel na formação de relações sociais eventualmente duradouras, tendo em mente futuros compromissos políticos.
Bibliografia
BACIOCCHI, S. et al. (2020). “Qui vient à Nuit Debout? Paris, Place de la République, avril-juin 2016. Trois méthodes pour une question”. Sociologie, 11 (3), 251-266.
BRAY, M. (2014). Occupons Wall Street – L’Anarchisme d’Occupy Walt Street. Paris: Editions Noir et Rouge.
COSTES, L. (2010). “Le Droit à la Ville de Henri Lefebvre: Quel héritage politique et scientifique?”. Espaces et Sociétés, 140-141 (1-2), 177-191.
FRASER, N. (2001). “Repenser la sphère publique: Une contribution à la critique de la démocratie telle qu’elle existe réellement”. Hermès, 31, 125-156.
GRAEBER, D. (2009). Direct Action: An Ethnography. Oakland/Edinburgh: AK Press.
GRANJON, F. (2014). “Mobilisations informationnelles et expressions citoyennes autonomes à l’ère du ‘participatif’”. In J. Denouël et al. Médias Numériques et Participation. Entre Engagement Citoyen et Production de Soi. Paris: Mare & Martin.
GRANJON, F. (2018). “Mouvements sociaux, espaces publics et usages d’Internet”. Pouvoirs, 164 (1), 31-47.
HARVEY, D. (2015). Villes Rebelles. Du Droit à la Ville à la Révolution Urbaine. Paris: Buchet-Chastel.
JOSEPH, I. (1996). “Ariane et l’opportunisme méthodique”. Annales de la Recherche Urbaine, 71, 5-13.
NAHOUM-GRAPPE, V. (2016). “Nuit Debout. Place de la République, 31-47 mars 2016”. Esprit, A (7-8), 142-149.
TARTAKOSKY, D. (dir.) (2022). Histoire de la Rue. Paris: Tallendier.
TUFECKCI, Z. (2019). Twitter & les Gaz Lacrymogènes – Forces et Fragilités de la Contestation Connectée. Caen: C&F Éditions.
VALLINA-RODRIGUEZ, N. et al. (2012). “Los Twindignados: The Rise of the Indignados Movement on Twitter”. In Proceedings of the 2012 ASE/IEEE International Conference on Social Computing (496-501). Washington, D.C.: IEEE Computer Society.
Autora: Valérie Devillard