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    Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos [Dicionário Global]

    Surgida no rescaldo das eleições de outubro de 1969, a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) resultava da capacidade operativa alcançada pela oposição cujo dinamismo, apesar das diferenças prevalecentes, consubstanciava-se na cooperação estreita na Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Concluído o sufrágio, a mesma plataforma oposicionista abraçava uma causa eivada de transversalidade cuja índole aglutinante induzia ao alargamento das bases sociais de apoio concebidas durante a campanha eleitoral para obter um perímetro de atuação mais amplo. Tratava-se de confrontar o regime com as contradições respetivas, enfatizando o incumprimento reiterado da constitucionalidade emanada pelo mesmo, através das instâncias políticas e sancionada pelo plebiscito. A CNSPP empenhava-se na demonstração da inconsistência entre o discurso político ou institucional e a praxis consagrada por legislação especial regulamentadora do tratamento dispensado a quem discordava com as orientações dominantes, desconforme aos princípios da moral cristã como aos rudimentos mais elementares do Direito.

    Tais eram as premissas da carta dirigida ao presidente do conselho, a 15 de novembro de 1969. Tratava-se de um documento de apresentação da nova entidade, dos membros e propósitos subjacentes e metodologias de atuação. Segundo enunciava, pretendia obstar à “experiência vivida, da trágica e injusta situação dos presos políticos e do quadro jurídico em que tal situação se insere” (CASTRO et al., 1972, 8). Essas as motivações dos subscritores da missiva, um universo constituído por 48 individualidades – P.e Abílio Tavares Cardoso, P.e Agostinho Jardim Gonçalves, Álvaro Ferreira Alves, António José da Silva Júnior, António José Dimas Almeida, António Rocha e Melo, Armando de Castro, Arménio dos Santos Ferreira, P.e José Augusto Pereira Melo, Fr. Bento Domingues, Fr. Bernardo Domingues, Cecília Areosa Feio, Eduardo Nery, Fernando Abranches Ferrão, Fernando Lopes Graça, Fernando Soares David, Francisco Lino Neto, Henrique de Barros, Ilse Rosa, José de Sousa Esteves, P.e José Felicidade Alves, Luís Brás Teixeira, Luís Filipe Lindley Cintra, P.e Luís Manuel Moita, Manuel de Castro Monteiro, Manuel Denis Jacinto, Manuel João da Palma Carlos, Manuel Machado Sá Marques, Manuel Rodrigues Lapa, Manuela Bernardino, Fr. Marcos Valentim Vilar, Maria do Carmo Tavares d’Orey, Maria Eugénia Varela Gomes, Maria Gabriela Figueiredo Ferreira, Maria Keil, Maria Lúcia Miranda dos Santos, Maria Manuela Antunes, Mário Brochado Coelho, Maria Cristina Araújo, Fr. Martinho Franco de Carvalho, Nuno Teotónio Pereira, Óscar Lopes, Raul Rego, Rogério Paulo, Rui Feijó, Sofia de Mello Breyner Andresen e Vasco Belmarço da Costa Santos (CASTRO et al., 1972, 10) – conhecidas pelo oposicionismo ao Estado Novo, fosse pela discordância com os princípios basilares do Estado Novo, fosse pela militância em estruturas políticas da oposição, fosse ainda pela querela suscitada pelas guerras em África cujas repercussões mobilizavam ativamente os católicos progressistas e originavam uma clivagem no seio da Igreja Católica portuguesa.

    Como “cidadãos responsáveis” (CASTRO et al., 1972, 9), enjeitavam o silêncio sobre o tratamento infligido aos presos políticos, caracterizado como de “ordem a destruir física e moralmente as suas pessoas” (CASTRO et al., 1972, 9), com consequências gravosas “ao mesmo tempo que afeta, por forma dramática e muitas vezes irremediável, a situação das famílias atingidas” (CASTRO et al., 1972, p. 9). Sublinhavam ainda o carácter indefeso das vítimas da prepotência do poder executivo português. Assim, os signatários e membros fundadores da CNSPP delineavam sumariamente as linhas de ação a desenvolver: trazer a gravidade da situação subjacente aos presos políticos ao debate público e evidenciar o papel do Estado Português; Solicitar a revogação da moldura legislativa que atribuía a entidades administrativas e ou policiais competência de instrução de processos criminais, função desejavelmente exclusiva de juízes integrados em tribunais; Apelar ao fim do processo penal especial e a abolição das medidas de segurança aplicáveis aos presos políticos; Realizar um inquérito sobre as condições de vida dos presos políticos nos diferentes estabelecimentos; Instar a libertação de todas as pessoas detidas por motivos políticos e medidas de respetiva “reintegração na vida da comunidade nacional, como reparação devida às vítimas de uma legislação injusta e condição prévia e indispensável para o saneamento da vida política do país” (CASTRO et al., 1972, 9-10).

    A novel entidade socorria-se do art. n.º 199 do Código Civil, sobre as comissões especiais, para assumir uma configuração compatível com o enquadramento jurídico português. Esse intento seria prontamente refutado pelas autoridades, decisão fundada na recusa em reconhecer a existência de presos políticos. Sem fundamentos legais, a CNSPP era entendida como um organismo de índole política destinado unicamente a prolongar a vigência da CDE. Para este articulado contribuía decisivamente o número elevado de membros conhecidos pela filiação nos valores marxistas (ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, PIDE/DGS, SC CI (1), 5040, PI 1, NT 1287, 133). Consequentemente, a CNSPP submergia numa semiclandestinidade, circunstância que não impedia a presença pública assídua, até de natureza institucional, consubstanciada nos pedidos de esclarecimentos constantes, dirigidos às diversas instâncias governativas.

    Esse procedimento, exercido entre 1969 e 1972, constituiu um dos motes da afirmação da CNSPP na esfera pública, secundado pela responsabilização das instâncias governativas por detenções ilegais, pela violência sobre os detidos, pela incomunicabilidade dos presos, temáticas abordadas nas missivas dirigidas ao presidente do Conselho. Segundo advogavam, era imprescindível a ampla participação da sociedade civil, através do envolvimento direto das ordens profissionais – de advogados, engenheiros e médicos – em prol da proteção dos presos políticos. Na derradeira exposição ao presidente do Conselho, a CNSPP dedicava-se à reforma orgânica da DGS, materializada no dec.-lei n.º 369/72. Na perspetiva da CNSPP, tratava-se de um novo atentado à constitucionalidade vigente, indutora da supressão do “direito dos cidadãos às necessárias garantias de defesa no processo penal”, ou seja, emergia um “estatuto de desarmamento jurídico do cidadão português perante a polícia política” (CASTRO et al., 1975, 37). Restava unicamente a extinção da DGS.

    A falta de resposta ou mudanças ao regime adotado para os presos políticos ditou o fim das exposições ao presidente do conselho, o apelo dirigido à Presidência da República e a elaboração ampla de comunicados destinados ao público. A 1 de maio de 1972, exortavam o Presidente da República a encetar um novo ciclo compatível com o exercício pleno da legalidade, até então negada aos presos político. Nesta exposição solicitavam a amnistia, entendida como um “ato de justiça” (CASTRO et al., 1972, 221).

    Simultaneamente, procurava mobilizar a opinião pública e aumentar a base social da causa. Em março de 1970, a CNSPP iniciava a publicação circulares destinadas aos membros e ao público. Até 1974, deu à estampa mais de 20 boletins informativos dedicados à reconstituição do movimento dos detidos, com base nos dados recolhidos pelas estruturas distritais e concelhias da Comissão. Procurava-se igualmente o acompanhamento de proximidade entre os presos políticos e as famílias, quebrar regimes de isolamento, prestar apoio jurídico e médico.

    A heterogeneidade da Comissão assegurava a cobertura ampla e diversificada dessa ação. Os fundos da PIDE/DGS permitem aferir as fórmulas e mecanismos de captação do interesse público e as campanhas de sensibilização e solidariedade promovidas em prol do auxílio aos presos políticos. Impossibilitada de ter instalações próprias, a CNSPP contornava essa fragilidade com o recurso a outras instituições como o Instituto Nacional de Cultura, sito na R. António Maria Cardoso, em Lisboa, a escassos metros da sede da DGS. Esta situação persistiu até abril de 1974 e não resguardava a CNSPP da repressão da DGS, conforme ocorrido em meados de março de 1972, data em que a Polícia irrompia pela habitação de um colaborador da entidade e apreendia um conjunto apreciável de documentos além de 10.000$000, obtido através da angariação de fundos para assistir aos presos políticos e famílias. O pedido de restituição, subscrito por Manuel João da Palma Carlos, Lucília Santos e Levy Baptista, em nome da entidade, não surtiram naturalmente efeito.

    Em suma, a CNSPP foi criada em finais de 1969, na sequência das dinâmicas suscitadas pela cooperação entre múltiplas sensibilidades oposicionistas que, em múltiplos círculos, se apresentaram a eleições no mês de outubro. Escorada na defesa instante dos direitos humanos, aproveitava o ensejo causado pela substituição do presidente do conselho, o anseio pela abertura política, pela melhoria das condições económicas e sociais bem como pelo final da beligerância, tão onerosa em perdas humanas quanto eternizada pela incapacidade de alcançar a vitória militar e ou política. A CNSPP procurava ainda explorar o discurso político associado à denominada Primavera Marcelista, para enfatizar as incongruências resultantes de uma mutação substantiva da práxis em determinadas vertentes de atuação do Estado sem a observância da constitucionalidade.

    A plêiade de intelectuais, juristas, engenheiros, padres, atores, músicos, professores entre outros, caracterizados por orientações ideológicas distintas e integrantes do núcleo fundador da Comissão, empenharam-se pelo reconhecimento oficial da existência de presos políticos em Portugal, mobilizaram-se por dar a conhecer, tão ampla quanto pormenorizadamente possível, o percurso imposto aos denominados suspeitos de atividades subversivas, sujeitos às arbitrariedades da polícia política. Mais, a CNSPP esforçou-se por quebrar o monopólio de informação detido pela Direcção-Geral de Segurança acerca da identidade, do paradeiro, do estado de saúde, do tratamento dado aos presos, da situação jurídica à qual procurava corresponder com apelos incessantes ao respeito pela legalidade.

    Entre 1969 e 1974, a CNSPP procurou afincadamente dar prossecução aos propósitos subjacentes à existência, o que, naturalmente, não mereceu a anuência dos poderes políticos. Conforme uma abordagem interclassista, intrínseca à natureza da causa defendida, e na senda de iniciativas anteriores de defesa dos presos políticos, a CNSPP concentrava-se na criação de uma rede extensível à totalidade do território de soberania portuguesa de então. Centrava-se ainda na edificação de uma dinâmica capaz de superar os controlos internos e as fronteiras nacionais com o objetivo de facultar à opinião pública dos estados europeus, americanos, entre outros, uma imagem alternativa do regime português, tão mais atroz quanto decadente, uma das premissas estruturantes na avaliação da conjuntura política endógena a partir do verão de 1971.

    Bibliografia

    Manuscrita

    ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, PIDE/DGS, SC CI (1), 5040, PI 1, NT 1287, 133.

    ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO, PIDE/DGS, Del C NT 10594.

    Impressa

    CASTRO, A. de et al. (1972). Presos Políticos. Documentos: 1970-1971. Porto: Edições Afrontamento.

    CASTRO, A. de et al. (1975). Presos Políticos. Documentos: 1972-1974. Lisboa: Iniciativas Editoriais.

    NUNES, T. (2021). “Do combate pelos direitos humanos – Na senda da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos: 1969-1974”. In J. L. CAÑÓN VIORIN (ed.). Cuando los Regímenes de Excepción Se Descomponen. Justicia de Transición, Memoria y Derechos Humanos (117-149). Ciudad de Córdoba, Lago Editora.

    PIMENTEL, I. F. (2007). A História da PIDE. Lisboa: Temas e Debates.

    SILVA, E. (2020). Vencer o Medo. A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (1969-1974). Porto: Edições Afrontamento.

    VENTURA, A. (2022). Nuno Rodrigues dos Santos. Coerência e Convicção. Lisboa: Assembleia da República.

    Autora: Teresa Nunes

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